Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Apuração sob suspeita

Quando assumiu o cargo de ombudsman (public editor) do New York Times, em dezembro do ano passado, Daniel Okrent tomou uma decisão sobre o andamento de seu trabalho: escreveria apenas sobre o que fosse publicado no jornal após sua chegada ao cargo. Uma vez que entrasse em questões do passado, pensava ele, poderia não conseguir mais voltar ao presente.

No começo deste mês, esta convicção perdeu um pouco sua força. No domingo (30/5), foi completamente destruída, quando Okrent publicou o artigo ‘Weapons of mass destruction? Or mass distraction?’ (Armas de destruição em massa? Ou distração em massa?), sobre a atuação do jornal na cobertura dos motivos que levaram à guerra do Iraque.

‘Eu comecei a olhar para uma questão do passado que ainda pesa no presente: por que o Times deixou de analisar sua própria cobertura das armas de destruição em massa do Iraque?’, afirma ele. ‘Para qualquer pessoa que tenha lido o jornal entre setembro de 2002 e junho de 2003, a impressão deixada é a de que não havia dúvidas de que Saddam Hussein possuía, ou estava adquirindo, um assustador arsenal de armas de destruição em massa.’

Com a questão em mente, Okrent procurou o editor-executivo Bill Keller e o avisou de que escreveria sobre a responsabilidade do Times em levar o assunto a público. Foi informado de que uma análise interna já estava sendo feita. A análise escrita pelos editores do jornal foi publicada na edição de quarta-feira, 26/5 (veja a íntegra em http://www.nytimes.com/ref/international/
middleeast/20040526CRITIQUE.html
).

Satisfatório, mas nem tanto

Para o ombudsman, o resultado da análise foi satisfatório. Pelo menos, em grande parte. ‘Quando eu digo que os editores acertaram ‘em grande parte’ em sua nota, a crítica é quanto às explicações inadequadas das muitas práticas e imperativos jornalísticos que levaram o Times a seguir por este caminho infeliz.’

Okrent lista as práticas e imperativos que levaram o jornal a erros na correria e na excitação da cobertura da guerra. Entre eles, estão a corrida pelos furos jornalísticos, a ganância por espaço na primeira página, a falta de rechecagem de informações, o uso de fontes anônimas e a edição sem questionamentos.

Falhas e pecados

A ansiedade em conseguir ‘furar’ os concorrentes costuma levar os jornalistas a não serem cuidadosos com as informações que têm nas mãos. Na pressa, muitos dos dados não são checados corretamente. A cobertura de uma guerra requer cuidados em dobro. ‘Mas, na cobertura do Times, os leitores encontraram algumas matérias construídas sobre ‘revelações’ não comprovadas’, critica o ombudsman. O jornalismo do tipo ‘atira e corre’ também é lembrado por ele. ‘Quanto mais surpreendente é a história, mais revisada ela precisa ser’, diz Okrent. ‘Reportagens, como plantas, morrem se não forem cuidadas. Assim como as reputações dos jornais.’

Além da busca pelo furo, há também a luta pela primeira página. ‘Há poucas coisas mais desejadas com tanta ganância do que uma manchete de capa’, diz Okrent. Para consegui-la, algumas matérias crescem e ganham mais importância do que deveriam. É o caso da reportagem escrita por Patrick E. Tyler sobre uma suposta ligação descoberta entre a al-Qaeda e Saddam Hussein (‘Intelligence break led U.S. to tie envoy killing to iraq Qaeda cell’, em http://www.nytimes.com/2003/02/06/international/
middleeast/06QAED.html
), que até hoje – 15 meses após sua publicação – ainda não foi completamente comprovada.

Outra prática condenada por Okrent é a do jornalista se proteger por trás de afirmações atribuídas a fontes anônimas. O ombudsman considera que não há ‘nada mais tóxico para um jornalismo responsável’. E afirma: ‘Aquela resposta automática dos editores – ‘nós não confirmamos o que ele diz, estamos apenas reportando’ – se ajusta apenas a declarações de fontes em on. Para fontes anônimas, isso é pior do que nenhuma defesa. É uma licença para mentirosos’.

Outra falha apontada por Okrent na cobertura da guerra do Iraque foi a quebra de padrões de procedimento na feitura do Times. ‘Howell Raines, que era editor-executivo do jornal na época, nega que os procedimentos-padrão do Times tenham sido deixados de lado nas semanas antes e depois do começo da guerra. (…) Mas minhas apurações (eu falei com cerca de duas dúzias de membros da equipe do jornal que trabalharam na cobertura) me convenceram de que um sistema disfuncional permitiu que alguns repórteres, operando fora de Washington e de Bagdá, pudessem trabalhar fora dos padrões usuais adotados pelos editores.’

Em algumas ocasiões, conta Okrent, repórteres que levantavam questões relevantes sobre determinadas matérias não eram atendidos. ‘O compromisso com a apuração é uma virtude fundamental. Quando uma reportagem particular é protegida de dúvidas, isso sugere que ela realmente pode conter algo que deveria ser investigado.’

Cobertura ingênua

‘Parte da cobertura do Times nos meses anteriores à invasão do Iraque foi ingênua’, diz o ombudsman. E continuou a esbanjar falhas depois do começo da guerra. Um artigo de James Risen (‘CIA aides feel pressure in preparing Iraqi reports’ em http://www.nytimes.com/2003/03/23/international/
worldspecial/23CIA.html
), pronto dias antes da invasão americana, ficou na gaveta dos editores durante uma semana e foi publicado três dias depois do ataque, sem destaque algum.

As matérias de Judith Miller, enquanto a jornalista estava embutida (embbeded) a uma unidade militar em busca de armas de destruição em massa, ‘constituíram um contínuo minueto de afirmações alarmantes seguidas de incoerências’. Mas Okrent não concentra a culpa pelos erros apenas nos repórteres – distribui as falhas também entre os editores. Em uma das reportagens de Judith, o chamativo título ‘Especialistas americanos encontram material radioativo no Iraque’ (‘U.S. experts find radioactive material in Iraq’, em http://www.nytimes.com/2003/05/04/international/
worldspecial/04CHEM.html
), criado pelos editores, entra em confronto com o começo do texto, onde a jornalista escreve que a descoberta dificilmente poderia estar relacionada a armamentos.

Mãos à obra

‘Leitores perguntam por que o Times demorou tanto para abordar os assuntos levantados no artigo dos editores publicado na quarta-feira. Eu imagino que Keller e os outros representantes do jornal deviam estar relutantes em abrir novas feridas quando as mais antigas ainda não haviam cicatrizado completamente. Mas eu acho que a reticência deles só fez piorar a situação, porque permitiu que críticos formassem um poderoso coro.’

A nota dos editores só terá cumprido sua função, diz Okrent, se tiver aberto espaço a uma nova rodada de revisões e investigações. Ele sugere que seja produzida ‘uma série de matérias detalhando as distorções, desinformações e análises suspeitas que levaram o mundo inteiro a acreditar que Saddam Hussein tinha armas de destruição em massa em seu poder’.

‘Em 1920, Walter Lippmann e Charles Merz escreveram que o Times havia perdido a verdadeira matéria sobre a Revolução Bolchevique porque seus repórteres e editores ‘estavam nervosos com os eventos excitantes’. Isso poderia ser dito sobre o Times e a guerra do Iraque. A excitação passou; agora começa o trabalho’, conclui Okrent.