O Observatório da Imprensa dedicou seu último programa televisivo ao tema da câmera oculta, que gerou uma série de artigos, alguns de grande repercussão, em sua edição eletrônica na semana passada. Pelo resumo publicado no site (ver “As câmeras ocultas no jornalismo“), a discussão privilegiou alguns aspectos legais de um caso específico – a invasão da privacidade das pessoas que negociavam propina em contratos de prestação de serviço para um hospital público, em reportagem levada ao ar pelo Fantástico no dia 18 de março, e a sobreposição do interesse público em relação ao privado, de modo que quaisquer meios seriam lícitos para denunciar uma ação ilícita.
Seria o caso, então, de indagar para que serve o ordenamento jurídico numa democracia, se ele não atende ao interesse público – de tal modo que ficamos autorizados a ignorá-lo em nome desse interesse maior.
Sobretudo quando quem age assim é essa instituição chamada imprensa, que supostamente atua em nome da sociedade – daí a conceituação de “quarto poder” – e, por isso, se autoatribui o curioso direito de estar acima de qualquer lei. Um comentário do jornalista Armando Nogueira, em antiga entrevista à revista Playboy (janeiro de 1988), resume bem: “O jornalista é o único ser capaz de olhar com altivez por um buraco de fechadura. Quem está ali, bisbilhotando, é a sociedade inteira”.
Levar a sério tal comentário implicaria, de saída, pressupor que todo jornalista é um altruísta, que age sempre de boa fé. Mais importante, significaria ignorar o contexto em que esse jornalista atua, os constrangimentos que sofre, sua precária autonomia, os interesses da empresa que o contrata.
Discurso contraditório
A reportagem que vem provocando tanta discussão foi apresentada como uma iniciativa do próprio jornalista, ou da equipe do programa no qual ele trabalha. “O Fantástico pediu a ajuda à direção de um hospital de excelência, o Hospital de Pediatria da UFRJ”, informou o repórter André Luiz Azevedo. “Iríamos assumir o lugar do gestor de compras da instituição. Acompanhar livremente todas as negociações, contratações, compra de serviços. E saber se haveria pagamento de suborno, oferta de propina, de um dinheiro que deveria ser sagrado, o da saúde dos brasileiros”.
Nobres propósitos, portanto.
Porém, as declarações do diretor do hospital, Edmilson Migowski, e finalmente o artigo assinado por ele na edição de sábado (31/3) de O Globo, sugerem um contexto diverso:
“(…) concordamos em ceder o espaço para a reportagem objetivando esclarecer um roubo de cento e vinte mil reais (R$120.000) ocorrido em julho de 2011 e denunciado para a Polícia Federal e Auditoria da UFRJ na mesma época. Seis meses após, sem nenhuma resposta, fomos dominados pela angústia da espera e vimos na imprensa, reconhecidamente o quarto poder, a saída para o impasse. Logramos êxito, apenas três dias após a veiculação da matéria soubemos que a Polícia Federal, de forma brilhante, tinha desvendado o crime e identificado o culpado. A ferramenta por nós utilizada acabou revelando outra mazela: a corrupção institucionalizada, uma ferida infectada, fétida, necrosada, que não cicatriza.”
No mesmo artigo, Migowski diz que Eduardo Faustini, o repórter que se fez passar pelo gestor de compras do hospital, “convidou – utilizando critérios que desconheço – várias empresas para participar de licitações emergenciais”.
Em suma, o objetivo do diretor do hospital era apenas esclarecer um roubo ocorrido meses antes. Ele nem desconfiava da existência de corrupção no sistema de compras, muito menos sabia dos métodos que orientam “a ética do mercado”. Na reportagem, entretanto, ele declarava:
“Todo comprador de hospital, a princípio, é visto como desonesto. Acaba que essa associação do fornecedor desonesto com o comprador desonesto acaba lesando os cofres públicos. E a gente quer mostrar que isso não é assim, em alguns hospitais não é assim que funciona”.
O que importa aqui, porém, não são as contradições no discurso do diretor do hospital, embora fosse muito útil esclarecer os seus reais interesses em autorizar aquela reportagem – afinal, o jornalismo está sempre em busca da verdade –, mas a sua justificativa em recorrer à imprensa para resolver uma questão que, pelas vias normais, não chegava a termo.
O apelo à imprensa
É recurso antigo, que remonta às origens do jornalismo moderno, e seria muito saudável se a imprensa fosse mesmo esse poder à parte, sem qualquer outro interesse que não o de servir ao público, empenhada em corrigir o que anda errado e em fazer as instituições funcionarem adequadamente.
Pensar assim não é apenas ignorar que o jornalismo produzido em grandes corporações atende a interesses jamais explicitados. Tampouco é apenas desconhecer a seletividade que necessariamente orienta o trabalho da imprensa, na escolha das pautas e no processo de edição. É também supor que os jornalistas agem sempre de acordo com os melhores princípios éticos e se certificam rigorosamente da veracidade das denúncias antes de divulgá-las.
Não custaria lembrar o caso Escola Base, que, de todos, é o mais eloquente na história recente dos desastres do nosso jornalismo, e que começou quando duas mães angustiadas, convencidas de que seus filhos estavam sofrendo abuso sexual na escolinha infantil, deram queixa à polícia mas, concomitantemente, procuraram a imprensa, duvidando da eficácia da investigação.
Definição de competências
No programa do Observatório, o deputado Miro Teixeira apoiou o uso da câmera oculta porque, “quando você está na investigação de um crime”, todos os instrumentos devem ser utilizados.
Valeria a pena perguntar quem deve ser responsável pela investigação de crimes: a imprensa ou a polícia?
É a ausência de clareza a respeito do papel que cabe a cada um que alimenta esse campo nebuloso no qual o jornalismo – especialmente o de TV – atua com desenvoltura e consegue apresentar-se como substituto das instituições, falando diretamente aos cidadãos-espectadores, embora lhe falte o poder de direito. Ora, não basta sabermos dos “malfeitos”, como está na moda dizer: é preciso saber como combatê-los, e essa parte sempre fica em segundo plano – quando chega a aparecer –, abafada pela força da imagem do flagrante.
Assim, cria-se no público um clima que combina excitação, indignação e desalento: o escândalo está à vista de todos – inclusive das autoridades – mas nada podemos fazer contra ele. Na pior das hipóteses, as autoridades são coniventes; na melhor, estão obrigadas a seguir os trâmites legais, incompatíveis com soluções imediatas. Os jornalistas, assim, ficam mais ou menos como os atores daqueles filmes policiais que ajudam a sedimentar no senso comum o desprezo ao judiciário, no conhecido roteiro “a polícia prende e a Justiça solta”.
Desprezo às instituições
Não é difícil imaginar as consequências disso em relação ao descrédito das instituições, que, num regime democrático, deveriam ser fortalecidas, inclusive e sobretudo a partir da crítica que o próprio trabalho jornalístico está obrigado a fazer – justamente, em nome do interesse público. Bem a propósito, no caso específico, ninguém questionou a aparente negligência da Polícia Federal na apuração do roubo denunciado pela direção do hospital. Se este foi o verdadeiro fato que motivou a reportagem, por que escamoteá-lo?
Em artigo publicado neste Observatório (“Tecnicamente, não houve crime“), Mauro Malin sugere a utilidade de um rastreamento das consequências das reportagens feitas através de câmeras ocultas. “Consequências administrativas e judiciais. Num dos casos mais tristemente famosos, o de Tim Lopes, as consequências humanas foram aterradoras. E se emergisse a conclusão de que aos picos de audiência corresponderam vales de condenações?”
Uma legião de espiões
Em seu editorial no Observatório na TV, Alberto Dines insistiu no compromisso do jornalismo com a permanente busca da verdade, que, por isso mesmo, exige o constante questionamento ético. “Cada passo e cada procedimento jornalístico suscita dúvidas – e não poderia ser diferente porque, sendo a imprensa um poder, suas ações só podem ser praticadas de forma atenta, rigorosamente consciente”.
O imediatismo dos tempos atuais, entretanto, contraria a hipótese de reflexão que nos levaria desfazer, por exemplo – como argumentou José Paulo Cavalcanti Filho em janeiro de 2005 neste OI (“O drama da verdade – ou discurso sobre alguns mitos da informação“) –, o equívoco de se associar democracia e informação. “Democracia é, frequentemente, não informar”, diz ele, em tom provocativo, para logo esclarecer:
“Padres não revelam o conteúdo das confissões. Médicos e advogados estão submetidos a reserva legal. Nenhum país informa efetivos de forças armadas, planos militares, documentos sobre fronteiras, correspondências de outros países. A polícia não informa a hora em que vai fazer uma operação, em um bairro qualquer. É assim em toda parte”.
Não estamos acostumados a esse tipo de questionamento. Pelo contrário, gostamos de pensar que há soluções simples e imediatas para os problemas necessariamente complexos postos pelas relações de poder no mundo contemporâneo. Gostamos de pensar que, para descobrir a verdade, basta um flagrante – seja de manobristas de carros seduzidos por moedas ou bombons “esquecidos” no interior do veículo, flanelinhas que atuam irregularmente, donos de postos de gasolina que adulteram o combustível, médicos que vendem receitas de drogas controladas ou comprovantes frios para dedução do imposto de renda ou políticos, empresários e funcionários públicos em suas negociatas.
Se gostamos de pensar assim, o uso da câmera oculta, em vez de exceção, deveria ser a regra. Não bastasse a parafernália eletrônica espalhada pelas ruas e no interior de prédios e elevadores, que nos convida a sorrir porque estamos sendo permanentemente vigiados, a popularização da tecnologia digital e a disseminação da ideia, tão sedutora quanto falsa, de que todo cidadão é um repórter permitiria supor um admirável mundo em que teríamos potencialmente um espião por pessoa.
O link ausente
Devo esclarecer que os comentários sobre o programa de TV deste Observatório foram feitos com base no resumo publicado no site. Não pude assistir ao debate no dia de sua exibição ao vivo. Contava em recuperá-lo, mas o link não estava disponível. Por quê? O programa na TV Brasil reproduzia trechos da reportagem original do Fantástico. Zelosa de seus direitos, a TV Globo, guardiã do interesse público, bloqueia a veiculação de seu material no suposto “território livre” da internet.
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[Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)]