Trinta Anos de Mim Mesmo, de Millôr Fernandes. O livro não está na mão, li há 38 anos, mas tem coisas que não dá para esquecer. Por exemplo, um dos “mandamentos” do decálogo do machão: “Machão que é machão não come mel, come abelha.”
Em outro texto, longo e furioso, no mesmo livro, Millôr rebatia um crítico que tinha encrespado com a tradução dele para uma peça, acho, de Harold Pinter. Apelando de novo para a memória, acho que a implicância girava em torno da palavra tart (“vagabunda”, “piranha”), à qual Millôr deu uma versão, para o crítico, pesada demais. Millôr, claro, espinafrou o infeliz até a última célula. Aqui, um reparo. Mal comecei o texto e já fui injusto. Disse que Millôr “espinafrou” o crítico. É forte demais. Millôr tratava os assuntos mais sérios de um jeito tão leve, e com tanta clareza, que não se pode dizer que ele espinafrasse ninguém. Podia reduzir um opositor a pó, mas tudo com inabalável bom humor.
Outra inesquecível do polímata (sempre quis usar esta palavra) Millôr Fernandes foi a polêmica sobre os dizeres da bandeira de Minas Gerais. Eu jurava que isso também estava em Trinta Anos…, mas conferi e não encontrei (o livro acaba de chegar a minhas mãos; ufa, não preciso mais confiar na memória). A confusão girava em torno do lema Libertas Quae Sera Tamen. Seria Liberdade, Ainda Que Tardia, como na tradução oficial? Que nada. Na real, ou pelo menos na real visão milloriana, significa “Liberdade Ainda que Tardia, Todavia”, frase que não quer dizer absolutamente nada e foi ridicularizada por ele. Saiu na revista Veja.
Acima do provincianismo
O estado do exemplar de Trinta Anos de Mim Mesmo que tenho à minha frente é lamentável. De tanto ser lido e relido, a lombada se esfarelou. A contracapa foi para o espaço há algumas décadas e a capa está toda carcomida nas beiradas. Uma fita amarela muito pouco adesiva tenta manter junto o que sobrou.
Eu, como tantos de minha geração, li o livro com 11, 12 anos de idade. Hoje, me surpreende que tenha marcado tanto. O motivo é simples: eu não devia entender nem 1% daquilo. Alusões literárias, a artes plásticas, mais política internacional e sacanagens de todo tipo formavam o cardápio. Até uma mulher pelada em nu frontal, tirada (pirateada?) da Playboy americana. Isso no Brasil, em 1974!
Também tenho aqui ao meu lado Um Elefante no Caos, Papáverum Millôr, Livro Vermelho dos Pensamentos de Millôr, Fábulas Fabulosas (esse, li umas cem vezes também) e Novas Fábulas Fabulosas. Mas, para mim, é Trinta Anos de Mim Mesmo que condensa a essência do autor. São textos publicados entre 1942 e 1973. Trinta Anos…, com sua gama tão ampla de temas, explicita por que a morte de Millôr tem um significado para além do que ele representava como escritor, tradutor e humorista. Com ele, morre uma geração de faróis intelectuais não acadêmicos, da qual os maiores exemplos são o próprio Millôr e Paulo Francis (Ivan Lessa também, mas esse há muito escolheu o isolamento londrino). Para minha geração, Millôr e Francis representavam uma espécie de periscópio, pontificando acima do provincianismo e do isolamento brasileiros.
Millôr foi sempre Millôr
Com duas vantagens de Millôr sobre Francis. O texto leve e muito engraçado, sem abrir mão do rigor intelectual. E a iconoclastia absoluta, de fazer troça de tudo e todos, não levar nada a sério (exceto a si próprio – e como! –, diriam alguns detratores que conheço). Os mais jovens podem ter levado de Francis, morto em 1997, a imagem do conservador rabugento ou da figura um tanto exótica da TV. O que não tinha nada a ver com o Francis “de verdade”, mais interessante, a metralhadora giratória da Senhor, do Pasquim e depois da Folha.
Já Millôr foi sempre Millôr. Os jovens que o conheceram recentemente (e não sei se são muitos) tiveram contato com o mesmo Millôr que eu e meus contemporâneos, lá se vão quase 40 anos.
Se comecei a ler Millôr Fernandes aos 11 anos, posso dizer que passei os últimos 20 ou 25 anos sem acompanhar sua produção. Com certeza, perdi muita coisa boa. Mas o autor continua vivo nos livros e na internet, que ele tão precocemente abraçou. Sorte de todos nós.
***
[Álvaro Pereira Júnior é colunista da Folha de S.Paulo]