Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O mais divertido filósofo

E lá se foi a mais fulgurante inteligência do Brasil, o nosso maior humorista, o nosso maior frasista, o nosso Bernard Shaw, o nosso La Rochefoucauld, o nosso Groucho Marx, o nosso Saul Steinberg. Com pelo menos uma vantagem sobre todos os citados: Shaw, La Rochefoucauld e Groucho não sabiam desenhar e Steinberg não era de escrever. Além de escrever, inclusive para teatro e cinema, Millôr era um esplêndido artista plástico. Gênio de muitas faces e nomes (Vão Gôgo, Volksmillor, Milton à Milanesa), foi um dos maiores pensadores do país e seu mais divertido filósofo.

Orgulhoso de ser um franco-atirador, um autodidata, especializado em coisa alguma (“Especialista é o que só não ignora uma coisa”), impermeável a ideologias (daí sua divisa: “Livre como um táxi”) e à tentação de entrar para a Academia, aprendeu tudo o que sua inteligência necessitava no Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro e, como gostava de salientar, na (fictícia) “Universidade Livre do Méier”, subúrbio carioca onde nasceu, oficialmente, em 27 de maio de 1924, e, concretamente, em 16 de agosto de 1923. Explica-se: seu pai, o espanhol Francisco Fernandez (com z), demorou nove meses para tirar-lhe a certidão de nascimento. Não bastasse, o juiz responsável pela certidão derrapou na caligrafia. E assim foi que o pimpolho Milton Fernandes virou Millôr Fernandes.

De uma criatividade assombrosa, volta e meia deparamos com uma novidade – expressões, brincadeiras, definições, sacadas jornalísticas – inventada por ele alguns ou muitos anos atrás. Se escrevesse em inglês, diziam, seria lido e festejado no mundo inteiro. Embora conhecesse como poucos a língua inglesa (graças a ele, Shakespeare e Harold Pinter nunca soaram tão bem em português), nunca se arrependeu da que o destino lhe deu e tão bem soube tratar. Dominava-a à perfeição, buscando, obstinadamente, a imperfeição: a suposta imperfeição da língua falada, coloquial. Por ser a concisão o timing do humor escrito, jamais gastou 11 palavras onde cabiam dez – e às vezes conseguia o mesmo efeito com nove. Vez por outra, porém, desobedecia a esse preceito e desembestava, sem jamais ficar enxundioso. Cometia em sua prosa toda sorte de firulas e audácias, e até o estilo anfigúrico de Guimarães Rosa parodiou numa memorável versão (ou riversão) da história do Chapeuzinho Vermelho.

Vendas em alta

Conheci Millôr no primeiro semestre de 1963, na revista O Cruzeiro. Era a maior estrela da casa, onde só aparecia às sextas-feiras para entregar as duas páginas de sua seção, o Pif Paf, e recalibrar o Q.I. da redação. Sempre de terno, de uma feita chegou sobraçando alguns rolos a mais de papel cartonado. A pedido da direção, adaptara para a revista uma sátira lançada no teatro sobre a “verdadeira” história de Adão e Eva no Paraíso. Eram 12 páginas magistrais, de humor e grafismo, que acabariam indignando alguns leitores carolas e provocando a demissão do autor. Acusado de “traidor” pela direção da revista, Millôr jogou para o alto os seus 20 anos de O Cruzeiro e meteu-lhe um processo, que afinal ganhou com o pé nas costas.

Vinte anos, mesmo naquela época, pareciam uma eternidade. E na empresa em si, aliás, foi mais do que isso, pois nos Diários Associados, o feudo jornalístico de Assis Chateaubriand a que O Cruzeiro pertencia, o menino prodígio do Méier já trabalhava desde 1938. Levado por seu tio Viola, chefe da gráfica de O Cruzeiro, começou como factótum do superintendente da empresa, Dario de Almeida Magalhães. Num concurso de contos, promovido por outra revista associada, A Cigarra, chegou em primeiro lugar e, não exatamente por isso, ascendeu ao arquivo. Atento ao talento do jovem arquivista, o diretor de A Cigarra, Frederico Chateaubriand, não pensou em mais ninguém quando precisou tapar o buraco de um anúncio cancelado em cima da hora. “Faça um negócio qualquer que ocupe duas páginas”, pediu Fred. Millôr bolou uma seção chamada “Post-Scriptum”. Agradou tanto aos leitores que ela se tornou fixa.

Alçado a secretário de redação, logo passou a acumular o novo cargo com a direção de duas outras publicações: O Guri (de quadrinhos) e Detetive (de contos policiais). A guerra na Europa ainda estava longe de terminar quando o deslocaram para O Cruzeiro. A menina dos olhos de Chateaubriand enfrentava uma crise de criatividade e coube ao versátil Millôr revitalizá-la, ocupando-se de seis seções diferentes, fazendo ilustrações, produzindo reportagens e, last but not least, as duas páginas mais lidas da imprensa brasileira da época: o Pif Paf. Quando a guerra acabou, as vendas de O Cruzeiro haviam pulado de 11 mil para 760 mil exemplares semanais, marca que só a Veja conseguiria bater, cinco décadas depois.

Um nome adequado: A Bíblia do Caos

Apresentado como “o único matutino semanal” do país, Pif Paf revolucionou o jornalismo de humor brasileiro. Embora só tivesse duas “vastíssimas páginas”, parecia um encarte, uma revista à parte. Millôr, que ao criar o Pif Paf tinha apenas 22 anos, falava e brincava com tudo: guerra, cinema, teatro, poesia, anúncios (ou reclames, como então se dizia), filosofia, esporte, rádio, medicina, o escambau. A despeito de sua professada, mas falsa, modéstia (“Sou o maior leigo do país”), já era, em 1945, um polímata, um sábio sem diploma, permanentemente desconcertante e inventivo.

Depois de todos aqueles anos em O Cruzeiro, Millôr passou 14 em Veja, seis no Pasquim, 10 na IstoÉ, mais ou menos isso no Jornal do Brasil (em duas fases) e algum tempo na Tribuna da Imprensa, Correio da Manhã, aqui no Estado de S. Paulo e Folha de S.Paulo. Lançou e editou duas publicações de curta duração (Voga, a primeira revista semanal de texto do país, que durou apenas cinco números em 1951, e Pif Paf, embrião do Pasquim que a censura militar não deixou ir além do oitavo número, na década de 1960). Quando, em 1994, resolveu-se que já era tempo de se enfeixar num único tomo o que se dispersara por tantos veículos, uma primeira seleção chegou à espantosa cifra de 13 mil tópicos, que, mesmo reduzida a 5.142, rendeu um cartapácio de 524 páginas, editado pela L&PM. Parecia a Bíblia. E nome mais adequado não lhe poderiam ter dado: A Bíblia do Caos.

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[Sérgio Augusto é jornalista e colunista do Estado de S.Paulo]