Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Manuel Pinto

‘Ao Futebol Clube do Porto ganhou de forma convincente em Gelsenkirchen, fez-se a festa e voltamos ao nosso quotidiano habitual. Para muitos com o sentimento de pertença ao clube mais reforçado do que nunca. Para outros com a auto-estima colectiva puxada para cima, depois de uma prova em que ‘teremos’ mostrado capacidade de competir com os melhores, no plano europeu.

Voltamos à vida de todos os dias, com condições de reflectir melhor sobre a cobertura jornalística de um evento excepcional como este foi. O JN deu-lhe tal relevância que colocou oito dos seus jornalistas como enviados especiais no palco do acontecimento, seis repórteres de escrita e dois de fotografia. O próprio director do jornal viajou também para a Alemanha, de onde enviou crónicas sobre o assunto, publicadas na última página, e acompanhou, na cidade de Gelsenkirchen – facto inédito na história dos 116 anos do JN, que por estes dias se comemoram – a produção de duas edições especiais de 24 páginas, com 25 mil exemplares de tiragem.

No dia do jogo, de manhã bem cedo, quando vi a primeira página deste jornal, fui surpreendido pelo ineditismo no tratamento do assunto. O espaço nobre da página incluía um grande plano da taça em disputa e, por cima, em letras de caixa alta, em corpo acima do habitual e de tamanho crescente: ‘Sejam a nossa voz. Queremos esta vitória’. A palavra ‘vitória’ vinha impressa em maiúsculas, em corpo anormalmente grande e em tom azulado: ou seja, o jornal entrava no campo do jogo e punha-se claramente a torcer pela vitória.

A pouco habitual manchete merece um exame que não cabe no espaço desta coluna, sobretudo porque o apelativo – quase imperativo – ‘Sejam a nossa voz’ tem mesmo muito que se lhe diga. Fiquemo-nos por algumas perguntas que, como leitores, é legítimo que façamos: como foi que na Redacção se chegou à decisão daquela manchete? Que critérios e aspectos foram tidos em conta nessa decisão? E, sobretudo, será que uma tal opção inaugura uma nova orientação editoral do jornal, tomando partido, agora, no futebol e, amanhã, eventualmente noutras áreas da vida pública e política? Estas perguntas foram endereçadas pelo provedor à Direcção. Ao mesmo tempo, e antevendo que a capa pudesse suscitar debate, foi colocada a sua reprodução num espaço da Internet e os visitantes desse espaço incentivados a comentar a matéria. As opiniões recebidas, uma meia dúzia, no total, classificam a manchete como um ‘atrevimento’ ou um risco. Consideram-na ora ‘um pouco exagerada’, ora agressiva e propagandística ou mesmo ‘obscena’.Uma leitora considera que o jornal fabricou um não-acontecimento, ao pôr a ênfase numa vitória que ainda não se verificara. Há também um leitor que chama a atenção para o facto de se estar perante um ‘dia especial’ que justificaria a ousadia.

O director de Redacção do JN, José Leite Pereira, assume como sua a opção da primeira página e, desde logo, avisa: ‘Desengane-se que pense que, amanhã, numas eleições, o JN (…) avisará os leitores que alinha pela posição do partido A ou B. Isso não acontecerá’.

Sobre a manchete em análise, explica a opção tomada: ‘Os jornais, pensamos nós no JN, podem abrir excepções à sua missão informativa, em casos especialíssimos, e traduzir os sentimentos dos seus leitores. A presença do FC Porto na Liga dos Campeões chamou a atenção de milhares de pessoas e o desejo comum a todas elas – portistas e não portistas, portuenses ou de outro lado qualquer – era o de vitória’.

Leite Pereira mostra-se um firme defensor da ideia de que é perfeitamente legítimo que um jornal, por uma vez (uma excepção que não compromete a sua credibilidade), exprima a ‘emoção própria’, traduzindo um ‘sentimento generalizado’. Isto, acrescenta, nunca será entendido por ‘algumas cabeças bem pensantes’ que poderão achar estar-se perante ‘o abastardamento total’ do jornal. Alude, neste contexto, ao exemplo do próprio presidente da República, visto a festejar expressivamente os golos dos vencedores.

Finalmente, o director refere os que acham que, com a opção tomada, este jornal se vendeu ao FCP, desafiando-os a mostrar se houve, alguma vez, ‘notícias que tenham sido dadas e que sejam 'fretes'’ ou ‘informações que tenham sido escondidas’. ‘Estou muito feliz – nota ainda – por estar à frente de um jornal que não quer ser de referência (embora seja uma referência diária para milhares de leitores), que se assume como um jornal popular de qualidade e que é um jornal que sabe – e não tem medo de – ter emoções’.

O provedor valoriza, acima de tudo, que estas matérias se tornem motivo de reflexão e análise e que sobre elas comentários distintos e até divergentes entre si possam ter lugar. Os leitores que discordam são tão ‘cabeças bem pensantes’ como os que sintonizam com o critério do jornal. Alertaria apenas para um ponto: como se constrói a emoção dos jornalistas e, sobretudo, a do jornal? Sendo a emoção legítima, um excessiva proximidade relativamente aos actores das notícias e uma circulação intensiva na órbita dos heróis pode redundar em enviesamento na percepção da realidade. Não digo que foi isto que se passou. Digo que isso se pode passar. Nesta e noutras matérias.’