‘Os brasileiros interessados no passado não podem se queixar. Desde o final do ano, revistas de qualidade, bastante acessíveis, podem ser encontradas em praticamente qualquer esquina.
As mais especializadas são Nossa História (R$ 6,80), da Biblioteca Nacional, e História Viva (R$ 8,90), da editora Duetto, ambas em seu número 7. Mas, antes delas, o veio já era explorado por revistas com propostas iniciais bem diferentes.
Uma delas é a Superinteressante (R$ 8,95). Em 1987, ao ser lançada pela Abril, enfatizava o futuro da tecnologia e das ciências naturais. Suas capas destacavam espaçonaves, robôs, computadores, carros voadores e outras inovações freqüentemente prometidas para antes de 2000.
Desde a virada do milênio, porém, suas capas abordaram cada vez mais a arqueologia e a história ou suas relações com as tradições religiosas. A capa do número 199, de abril, foi Quem Matou Jesus?, ilustrada com o Cristo de Mel Gibson. Igualmente cinematográfica, a capa do número 200, de maio, destaca Tróia com Brad Pitt.
O interesse é tal que transbordou da revista-mãe para duas filhas: a Revista das Religiões, no número 8, e Aventuras na História (R$ 8,95), no número 10 – a qual já deu uma neta à ‘família Super’, a Super Biografias (R$ 7,95).
Na revista Terra, lançada pela editora Peixes, em 1992, para tratar de meio ambiente e ecoturismo, a seção ‘Jornal da História’ fez tanto sucesso que deu origem, em maio, a uma publicação separada com o mesmo nome (R$ 5,90). Set, revista de cinema da mesma editora, também acaba de publicar um número especial História & Cinema sobre a vida de Che Guevara.
Na França, o gibi mais popular (Asterix) faz gauleses contracenarem com Júlio César e Cleópatra. A Revolução de 1789 fez da história nacional a pedra angular da educação e da consciência cívica e não é de surpreender que revistas populares de história tenham uma longa tradição e vendam melhor que em qualquer outro país. Mas como explicar seu êxito, mesmo relativo, neste país do qual tantas vezes se disse que ‘não tem memória’?
Em 1992, isso parecia bem verdade: o quinto centenário da viagem de Colombo, debatido com paixão pelas demais nações das Américas, passou em brancas nuvens pela Terra de Santa Cruz. Em 2000, já foi diferente. As comemorações oficiais do 22 de abril foram um anticlímax entre pífio e desastroso, mas os debates, as exposições e programações culturais que as precederam despertaram na imprensa e em boa parte da população – dos pataxós de Porto Seguro aos herdeiros de Zumbi – interesse amplo e sincero pela sua história.
Ao contrário do que se viu no sesquicentenário da Independência, mera mobilização de mitos heróicos a serviço da propaganda da ditadura militar, desta vez o passado e suas conseqüências presentes para a identidade e a realidade nacionais começaram a ser discutidos com seriedade e realismo.
Talvez seja uma reação ao impacto desestruturante da globalização, talvez uma tentativa de compreensão dos dilemas que nos levaram a duas décadas de estagnação econômica – mas sem dúvida deve muito à renovação do ensino de história nas últimas décadas. A discussão crítica e racional dos conflitos e dos grandes movimentos econômicos e sociais, a nova ênfase nas pessoas comuns e a humanização e relativização das figuras heróicas tornaram apaixonante uma matéria que gerações anteriores viram como tediosa decoreba de nomes e datas.
Ainda que professores engajados cometam simplificações dogmáticas de arrepiar os cabelos acadêmicos, parecem ter sido mais bem-sucedidos em despertar o interesse dos alunos do que seus colegas de outras disciplinas. No ensino médio e nos cursinhos, suas aulas freqüentemente são as mais concorridas. Não é só pelas aventuras sexuais de dom Pedro I e Calígula: muitos jovens percebem nelas uma rara oportunidade de entender o que se passa no mundo real e por quê.
A discussão sobre os 500 anos do Brasil catalisou e impulsionou, sem dúvida, essa onda, que também gera filmes históricos como Canudos e Desmundo e especulativas ‘histórias alternativas’ (leia ‘Nos avessos da história’, CartaCapital nº 281) sobre como se poderia ter chegado a um País diferente. É responsabilidade das novas revistas alimentar esse saudável interesse e não deixar a peteca cair.
Nossa História – 100% brasileira, nos autores e nos temas – é certamente a mais rica em conteúdo e profundidade. Suas matérias, sempre de autoria de historiadores profissionais, são excelentes do ponto de vista de professores e leigos instruídos e primam por expor os métodos da razão e da pesquisa histórica e não apenas seus resultados.
Não lhe faria mal abordar a história recente e questões polêmicas com mais freqüência e ousadia – no número 7, só o artigo ‘O Estado à Sombra de Vargas’ pode ser considerada politicamente provocativa – e reforçar seus textos com introduções didáticas que chamem a atenção para as conexões entre os assuntos abordados e destes com a atualidade.
Como faz, por exemplo, o Jornal da História. O primeiro número é promissor. Sem ser tão profundo e especializado, traz temas atraentes e bem pesquisados, sensibilidade para o ponto de vista do leitor leigo brasileiro e um uso eficaz da imagem. Dentre as concorrentes, talvez seja a de edição mais bonita. É pena sua magreza: só 32 páginas, ante 68 de Aventuras e Super Biografias e 100 das demais concorrentes.
História Viva é (como a Scientific American Brasil,) uma adaptação pela Duetto de uma das mais bem-sucedidas publicações estrangeiras do seu gênero – no caso, a francesa Historia, publicada desde 1909 -, que soma às traduções dos textos artigos de autores brasileiros sobre temas nacionais.
Combina trabalhos acadêmicos a jornalísticos, une autores e assuntos estrangeiros aos brasileiros e aborda temas chamativos de forma estimulante e acessível. Costuma apresentar dossiês com diferentes abordagens sobre um mesmo assunto, demonstrando na prática o pluralismo das interpretações da história. Mas às vezes desperdiça temas ricos com uma abordagem pobre, convencional e superficial. Na sexta edição, a independência dos EUA é despachada em duas páginas banais que, mesmo assinadas por um professor emérito da Sorbonne, mais parecem um trabalho escolar pouco inspirado.
Há problemas de tradução cultural: a muitas matérias centradas na Europa faltam esclarecimentos que um francês talvez dispense, mas são necessários aos brasileiros. No dossiê celta do número 7, um autor bretão inclui entre os países celtas as Astúrias, a Galiza e o Minho. Para herdeiros de portugueses que certamente são irmãos dos galegos, mas não costumam se julgar mais celtas que os espanhóis ou franceses, essa reivindicação precisaria ser justificada.
Mesmo os que elaboram a revista às vezes se confundem. Em outro artigo do mesmo dossiê, dá-se a entender que galeses e irlandeses falam línguas não indo-européias e nada devem aos celtas. O tradutor se confundiu: o autor se referia aos bascos, citados no mesmo parágrafo.
Aventuras na História e Superinteressante são despretensiosas, variadas nos temas, fáceis de ler e imbatíveis nos infográficos. Mesmo quando curtos e superficiais, seus textos ajudam a fixar idéias e despertar a curiosidade – mas seus jornalistas às vezes têm mais certezas do que os especialistas e fazem a história parecer mais simples, clara e incontroversa do que é.
O infográfico da Super não permite duvidar de que Tróia VI seja a de Homero, opinião que o texto garante ser a da maioria dos estudiosos. Essa tese, formulada no início do século XX por Wilhelm Dörpfeld, ressuscitou nos anos 90, mas muitos – inclusive o especialista citado por História Viva, por exemplo – aderem a Carl Blegen, que nos anos 30 identificou o cenário da epopéia com Tróia VII, mais recente. O problema não está em transmitir um dado talvez equivocado, mas em esquecer que entender as razões das polêmicas e incertezas é mais importante e interessante do que aprender uma interpretação como se fosse um fato.’
BRASILIANISMO & MÍDIA
‘Uma História Empenhada’, copyright Folha de S. Paulo, 6/06/04
‘O brasilianismo está trocando de guarda -o historiador Thomas Skidmore, 71, por muitos anos o mais influente e discutido brasilianista norte-americano, deixou a prestigiosa cadeira de história do Brasil da Universidade Brown. Para o seu lugar foi escolhido James Green, 52, que assume o cargo em 2005. Gay assumido, ele é conhecido pela obra ‘Além do Carnaval – A Homossexualidade Masculina no Brasil do Século 20’ (ed. Unesp). Uma das principais universidades dos EUA, Brown (Providence, Rhode Island) mantém o único departamento com doutorado em estudos luso-brasileiros dos EUA. Considerada o principal pólo do brasilianismo, costuma receber nomes de peso da academia brasileira -atualmente, figura ali o professor visitante Fernando Henrique Cardoso.
Grande parte da importância da Brown na área se deve a Skidmore, ícone dos pesquisadores norte-americanos dos anos 1960 que, financiados por um governo preocupado com a ameaça de novas cubas, chegaram ao Brasil com generosas bolsas de estudo. Vários construíram carreiras sólidas e hoje são referências em diversos campos de estudo sobre o Brasil. A atuação dos ‘filhos de Castro’, como ficaram conhecidos os brasilianistas coetâneos de Skidmore, já se transformou em história -escrita pelas mãos do próprio Green. No final do próximo ano, ele deve lançar seu segundo livro, ‘Apesar de Vocês’, que narra como esses acadêmicos, misturados a religiosos e outros, agiram para denunciar arbitrariedades da ditadura militar brasileira.
Apesar do interesse geopolítico norte-americano cada vez menor pela América Latina, os ‘filhos de Castro’ têm sua prole: resistem hoje cerca de 500 norte-americanos curiosos em desvendar os mistérios do Grande Irmão do Sul. O número é da Brasa (Brazilian Studies Association) -presidida por Green-, que realiza seu sétimo congresso entre quarta-feira e sábado [dias 9 e 12], no Rio de Janeiro [informações podem ser obtidas no site www.brasaus.org/]. Como o Mais! mostrou em edição dedicada ao assunto [6/6/1999], trata-se de uma geração habilidosa em conciliar carreira acadêmica com ativismo político e enfocada na ‘santíssima trindade’ da academia norte-americana: raça, gênero e, com menor importância, classe.
Além de ‘Apesar de Vocês’, Green está envolvido em mais dois projetos: prepara ‘Mais Amor e Mais Tesão’, uma história do movimento homossexual brasileiro que deve ser publicada em 2006, e ‘Encruzilhadas do Pecado e Colisão de Culturas’, sobre o lazer no Rio de Janeiro entre 1860 e 1920, que deve sair apenas em 2008.
Green também é um dos coordenadores da Rede Brasil, grupo de acadêmicos, ativistas e brasileiros nos EUA que apóia ações do governo Lula, como o Fome Zero, e movimentos sociais brasileiros.
Leia, a seguir, a entrevista concedida por Green ao Mais! por telefone e e-mail.
Skidmore é reconhecido sobretudo por sua história política. Já o sr. escreveu ‘Além do Carnaval’, uma história social. O que aconteceu entre esses dois momentos? Em parte, tem a ver com o mercado de livros norte-americano. Como Skidmore fez uma obra política e analítica sobre a história tanto de 1930 a 1964 quanto, depois, de 1964 a 1985, que detalha as mudanças políticas no país, acho que seria muito difícil e desnecessário tentar fazer ainda uma nova análise global das mudanças políticas do Brasil nesse período. Aquela geração, a idéia de abarcar coisas grandes, que podem ser informativas ao público americano, está ultrapassada. É claro que uma nova análise sobre a ditadura militar, um novo livro sobre 1930 ou 1964, integrando toda a nova pesquisa feita no Brasil, que é fabulosa, com alguma coisa feita aqui nos Estados Unidos, poderia gerar uma obra muito mais rica e interessante. Mas Skidmore, como a primeira pessoa a escrever sobre o assunto, mais ou menos cobriu o terreno aqui nos Estados Unidos. Mas tem a ver também com o que mudou nas historiografias brasileira e norte-americana sobre questões importantes. Ou seja, como podemos entender a vida social, cultural, a história cotidiana desses períodos de que temos uma noção, das questões políticas abrangentes, que já foram escritas. Interessa-me fazer isso. Sobre a ditadura militar, estou fazendo a realidade americana, da oposição à ditadura militar nos Estados Unidos, mas estou também interessado no período militar e em outras questões. Elaboro um trabalho agora sobre a esquerda e a homossexualidade durante a ditadura militar. Ou seja, como a esquerda brasileira lidava com as questões de homossexualidade e de gênero.
Não lhe parece que o brasilianismo está perdendo a floresta para se concentrar nas árvores?
Quando os brasilianistas começaram, na historiografia brasileira era relativamente reduzido o número de historiadores produzindo. Nos anos 1960, você podia ler e acompanhar tudo sobre o Brasil contemporâneo no século 20. Havia poucos centros de produção historiográfica. Hoje, são milhares e milhares de trabalhos maravilhosos sendo feitos, teses de doutorado em todo o país, trabalhos regionais, nacionais. É muito difícil para uma pessoa de fora ter um acompanhamento da historiografia brasileira. É uma tendência tanto dos americanos quanto dos brasileiros em se concentrar em questões menos abrangentes, porque é quase impossível fazer esse trabalho global sem ser superficial. Mas a maioria da produção brasilianista era específica também. Os bons trabalhos que Joseph Love fez sobre o Rio Grande do Sul, que Robert Levine fez sobre Pernambuco eram histórias regionais. Ou o trabalho de Warren Dean, sobre o café em São Paulo, era também um trabalho pouco abrangente. Skidmore é quase uma exceção.
Mas havia os dois tipos de trabalho sendo produzidos. Hoje há brasilianistas com essa preocupação mais abrangente?
Esse tipo não está sendo feito, as pessoas estão tentando se aprofundar mais. E as questões que estão sendo pesquisadas também são diferentes. Por exemplo, o Skidmore fez um trabalho muito importante sobre a questão racial, ‘Preto no Branco’ [ed. Paz e Terra]. Atualmente, os trabalhos que estão sendo feitos por brasilianistas como Jeffrey Lesser, sobre noções de raça concretas, ou Jerry Dávila, sobre a formação de educadores no Brasil e como eles entendiam a noção de raça, são maneiras de verificar as teorias, verificar as abordagens que Skidmore e outras pessoas fizeram e muitos brasileiros têm feito também para verificar se essa ideologia foi implementada ou como foi implementada. A nova produção é excelente, tanto dos brasilianistas quanto dos brasileiros, que são muito superiores a qualquer coisa que podemos fazer.
Nos anos 1960, os estudos sobre o Brasil, que já existiam, ganharam força após o financiamento do governo americano, preocupado com a região após a Revolução Cubana. Hoje qual é a agenda política do brasilianismo?
É difícil afirmar que existe uma agenda política. Há vários motivos por que as pessoas estão estudando o Brasil. E eu acho que a grande maioria estuda o Brasil porque, na sua formação intelectual, houve um contato importante com o país. Ou um contato pessoal, conhecer brasileiros nos EUA, viajar pelo Brasil e ter uma experiência muito positiva. Ou ainda uma questão intelectual em que estão interessados. Agora, a maioria dos brasilianistas que conheço tem a preocupação de manter uma relação igualitária e respeitosa com os brasileiros. Nossa preocupação é a de não reproduzir relações hierárquicas. Mas não existe uma política governamental neste momento para incentivar o estudo do Brasil, não existe uma preocupação geopolítica. Você tem de batalhar para conseguir financiamento.
Qual foi a sua motivação?
A minha é muito mais complicada, eu tenho uma relação com o Brasil de muitos anos. Meu primeiro contato foi bastante político, foi um engajamento na luta contra a ditadura militar, conheci Marcos Arruda, que foi torturado, o que me abalou profundamente. Paralelamente, eu sempre gostei dos brasileiros que conheci nos EUA, eram pessoas generosas, abertas, simpáticas. A cultura brasileira bateu com a minha personalidade. Existia uma curiosidade pelo país e também um engajamento político. E, quando cheguei ao país, durante um momento de transição da ditadura para a abertura, eu podia colaborar com essas pessoas que estavam nesse movimento contra a ditadura militar, meu envolvimento era muito forte, emocional, mas político. Eu sentia que estava colaborando com todo um processo de democratização, contra a ditadura militar. E, quando estava no Brasil, não era brasilianista, era um cara que dava aulas de inglês e trabalhava com o movimento.
O sr. está escrevendo sobre dois temas com os quais se envolveu diretamente -a resistência ao regime militar a partir dos EUA e o movimento gay brasileiro. Como ter um distanciamento crítico?
É uma questão difícil. Acredito que o autor ou a autora tenham de deixar bastante claro ao leitor o seu envolvimento no tema que estão estudando. Não acredito que exista uma ‘história neutra’. A análise do passado é sempre matizada pela posição do autor, sua nacionalidade, classe social, visões políticas etc. Não estou interessado em escrever uma história ‘equilibrada’ do regime militar, mas em contar uma história ainda não escrita, especificamente as formas como muitos norte-americanos estavam ativamente envolvidos na oposição à ditadura.
Há uma clara agenda política por trás do meu trabalho. Para os leitores brasileiros, quero problematizar muitos dos estereótipos sobre os americanos, explicar como correntes liberais e de esquerda surgiram nos anos 1960 para criticar a política externa e a colaboração do governo americano com o regime militar. Os brasileiros não conhecem essa história, e contá-la permitirá que eles vejam os EUA de uma forma muito mais complexa. Para o público americano, estou interessado em pensar como a solidariedade com pessoas de outros países funciona nos EUA, o que tem funcionado e o que tem fracassado. Quero entender como movimentos sociais podem influenciar a política externa.
Nossa preocupação é divulgar mais trabalhos sobre o Brasil nos EUA para quebrar essa parede de silêncio, de ignorância, que existe no público americano sobre a realidade brasileira
Meu envolvimento no movimento brasileiro é modesto e portanto penso que possa escrever sobre ele sem muitos problemas com respeito à minha própria participação. Todavia a história do início do movimento é muito ligada à minha visão e a de outros sobre a importância de ligar o movimento à esquerda e aos movimentos sociais que surgiram no final dos anos 1970. Sobre essa e outras questões sobre o movimento, quero assegurar que possa encontrar e discutir o maior número de vozes possível.
A academia norte-americana tem sido muito criticada, tanto nos EUA quanto no Brasil, por se prender demais aos temas de raça, gênero e classe. Essas áreas, frutos da abertura da universidade nos anos 1960 e 1970, não passaram com o tempo a cercear novas pesquisas?
Não acho. No Brasil, a influência marxista nos anos 1960 e 1970 batia na tecla de classe, classe. Houve, nos anos 1960 e 1970, uma resistência pelos marxistas brasileiros em analisar as questões de gênero e raça, que eram secundários. Eu acho que a produção americana, em geral, e uma produção brasileira, de feministas e pessoas interessadas em raça, estão exigindo que haja uma discussão no Brasil sobre essas questões. Nos EUA, essa trindade é fundamental para evitar que as pessoas esqueçam as contribuições marxistas, que são muito importantes. E, no Brasil, acho as outras duas questões fundamentais, para que os brasileiros não se esqueçam de que não é só a classe. Os próprios brasileiros estão articulando os três temas há muito tempo, não é algo que os americanos estejam empurrando. Mas temos de integrar essas formas de análise dentro da produção.
O sr. hoje é o presidente da Brasa. Quais são as prioridades da organização?
Há dez anos, várias pessoas, entre elas Jon Tolman e Roberto Reis, sentiam dentro da Lasa [Latin American Studies Asssociation] que o Brasil era um pouco marginalizado, que não havia preocupação por parte da organização. Eles resolveram organizar uma associação paralela para enfatizar o Brasil. Agora, estamos tentando não apena ser uma organização que realiza congressos apenas de dois em dois anos, mas que defende, divulga e promove estudos brasileiros nos Estados Unidos e colabora com as pessoas que estão estudando o Brasil no Brasil. Ou seja, nossos congressos internacionais são um fórum importantíssimo para o intercâmbio com os brasileiros. Nossa preocupação principal é divulgar e incentivar mais trabalhos sobre o Brasil nos EUA para quebrar essa parede de silêncio, de ignorância, que existe no público americano sobre a realidade brasileira.
A Brasa fará neste mês seu sétimo congresso internacional, no Rio de Janeiro, com a participação de grande parte da nova geração de brasilianistas. Quais são os grandes temas dessas pesquisas?
Neste ano, a conferência terá dois componentes. De manhã, haverá vários painéis sobre literatura, ciências sociais e história, numa maravilhosa mistura de acadêmicos brasileiros e americanos. Organizamos uma série de painéis, por exemplo, analisando o golpe de 1964 e a história do regime militar. É muito difícil generalizar a respeito da produção acadêmica da nova geração de brasilianistas, mas muitos cientistas sociais estão seguindo de perto o governo Lula e trabalhando em projetos sobre o significado do PT no poder. Há um interesse tremendo pelo MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) também. Entre os que trabalham com literatura e estudos culturais, alguns dos trabalhos mais interessantes têm analisado escritoras e autores negros contemporâneos.
O seu novo livro, ‘Apesar de Vocês’, busca medir a mobilização, nos EUA, contra o regime militar brasileiro. É possível avaliar o impacto desse movimento?
O trabalho feito contra a ditadura militar brasileira nos EUA, especialmente entre 1969 e 1973, criou duas condições: primeiro, conseguiu isolar o regime brasileiro nos EUA e criar uma ligação entre a tortura e o Brasil. As pessoas modificaram suas imagens sobre o país e começaram a pensar que o Brasil não era somente um país de Carnaval, de samba, mas de tortura, repressão, o que é muito importante. Segundo, o que os ativistas, intelectuais, clérigos e brasileiros exilados fizeram nessas campanhas foram fundamentais para aprender sobre como estender a solidariedade a outros países da América Latina. Quando houve o golpe militar no Chile, em 1973, todos os esforços dirigidos ao Brasil foram redirecionados para a realidade chilena, mas com a acumulação e a experiência sobre como se organizar, como atingir o Congresso, como atingir as igrejas católicas e protestantes, como conseguir modificar a opinião pública.
Quando a imprensa norte-americana passou a relatar casos de tortura e a repressão no Brasil?
Quando vem o AI 5, o ‘New York Times’ se posiciona claramente contra a medida. O jornal diz que é um excesso, que não deve haver uma limitação da democracia. O AI 5 ocorre justamente quando Nixon é eleito -ele toma posse em janeiro de 1969.
Existe o pessoal de [Lyndon] Johnson que está no Departamento de Estado, é uma época de transição. E era uma confusão: ‘Devemos criticar o governo ou não?’. É um debate interno. Depois eles suspendem a ajuda militar para avaliá-la e, com Nixon, resolvem continuar, a partir de janeiro. Então houve uma pequena campanha inicial, pós-AI 5, denunciando as medidas repressivas, que saíram no ‘NYT’, no ‘Washington Post’, em todos os jornais importantes dos EUA pressionando esse governo de transição a pensar se deve ou não suspender a ajuda militar. É interessante que, embora critiquem as medidas negativas do AI 5, não há menção de tortura. As primeiras referências sobre tortura ocorrem quando há o seqüestro do embaixador americano no Rio de Janeiro. Quando os presos políticos vão para o México, eles denunciam a tortura. Os jornais vão repetir e publicar essas declarações, e o ‘New York Times’ vai dizer: ‘Supostamente torturados’. É a primeira menção de que os presos políticos foram torturados. Isso ocorre em setembro de 1969. E logo depois começam a aparecer referências pequenas. Em 1970, há mais reportagens sobre a tortura, e já em 1971, antes da visita de Médici, um dos presos políticos fundamentais para a campanha nos Estados Unidos, Marcos Arruda, brutalmente torturado, chega a Washington, e o ‘Washington Post’ faz uma entrevista de página inteira com ele. É uma coisa impactante. Essa entrevista modifica o editorial do jornal, que critica a visita e questiona por que razão o governo americano apóia um governo que tortura seus cidadãos.
Naquela época, sempre houve desconfiança em relação aos brasilianistas, de que teriam acesso privilegiado a documentos ou que trabalhariam para a CIA. Isso realmente existiu?
Existiu. Eu sei porque havia um colega, Craig Hendrick. Ele trabalhou com Robert Levine e foi para Recife estudar a Faculdade de Direito, com base em documentos do século 19. E ele conheceu numa festa um oficial do governo americano. Quando voltou para os Estados Unidos, foi convidado para fazer uma apresentação de seu trabalho. E ele, jovem, cheio de energia: ‘Que legal, alguém se interessa pelo meu trabalho sobre os estudantes da Faculdade de Direito em 1890’. E ele vai para uma reunião em Nova York. E esse funcionário diz: ‘Antes de começar o seu trabalho, a gente queria saber como está a situação atual na Universidade Federal de Pernambuco’.
Ao menos uma dúzia de brasilianistas escreveu cartas ao editor do ‘New York Times’ criticando a cobertura de Larry Rohter em geral; no entanto nenhuma delas foi publicada
Craig disse que queria falar sobre o trabalho dele, mas o cara insistia. Ele então pediu licença, telefonou para o Levine, que o aconselhou a sair dali. Não tenho dúvidas de que a CIA teve agentes no Brasil, mas não sei se havia brasilianistas. Não quero especular sobre isso porque gera uma desconfiança desnecessária. Em 1970, três brasilianistas foram seqüestrados: Riordan Roett, Werner Baer e um cubano-americano. Eles não foram torturados, mas muito maltratados, isso era uma política para aterrorizar oposicionistas.
Lula passou a exigir digitais de viajantes americanos e recentemente cancelou [e posteriormente revogou a medida] o visto do correspondente do ‘New York Times’ no Brasil. Como tem sido a repercussão desses episódios entre os brasilianistas?
No debate entre os membros da Rede Brasil sobre a expulsão de Larry Rohter, a maioria das pessoas se opôs à medida do governo brasileiro de expulsá-lo do país. O debate também incentivou uma discussão mais séria sobre como nós, acadêmicos, precisamos intervir mais ao avaliar a forma como a mídia americana retrata o Brasil. Ao menos uma dúzia de brasilianistas escreveu cartas ao editor do ‘Times’ criticando a cobertura de Rohter em geral. No entanto nenhuma delas foi publicada.
O seu livro ‘Mais Amor e Mais Tesão’ se propõe a analisar a história recente do movimento homossexual brasileiro. O que aproxima e o que diferencia esse movimento do norte-americano?
O movimento brasileiro é um dos mais dinâmicos do mundo. Mesmo contando com poucos quadros, tem conseguido desenvolver uma incrível presença política no país. Enquanto nos EUA existem literalmente milhões de ativistas em algum tipo de organização gay ou lésbica -um grupo de estudantes no campus, um comitê dentro de uma igreja ou de um sindicato-, há muito menos ativistas no Brasil. Apesar disso, o movimento tem conseguido ter uma repercussão proporcionalmente muito maior do que o número de filiados. O movimento brasileiro tem se apropriado de forma criativa de slogans e símbolos do movimento americano, como a idéia da Parada Gay, a bandeira com o arco-íris e até mesmo a palavra ‘gay’, mas inteligentemente adaptados à realidade brasileira. Por exemplo, a parada de São Paulo é muito diferente das realizadas em Nova York ou San Francisco, muito mais espontânea e festiva, o que em parte reflete diferenças culturais, mas também reflete o fato de o movimento norte-americano estar muito mais organizado em associações e grupos representados numa celebração muito mais discreta. Por último, o trabalho que o governo e o movimento brasileiro têm feito com relação à Aids é muito importante, e a decisão de distribuir medicação gratuita e de lutar em favor dos genéricos em todo o mundo é um posicionamento de vanguarda.’
MAXWELL vs. KISSINGER
‘Rixa com Kissinger afasta brasilianista’, copyright Folha de S. Paulo, 8/06/04
‘O historiador e brasilianista Kenneth Maxwell renunciou ao seu cargo de diretor de estudos sobre a América Latina no Council on Foreign Relations (Conselho de Relações Exteriores), um dos mais importantes centros de estudos dos EUA, em protesto, segundo ele, a uma interferência do ex-secretário de Estado americano Henry Kissinger, que teria impedido a publicação de uma carta sua na revista ‘Foreign Affairs’, ligada ao CFR.
Maxwell anunciou sua renúncia em maio, em cartas ao presidente do CFR, Richard Haass, e ao editor da ‘Foreign Affairs’, uma mais respeitadas publicações sobre relações internacionais, James Hoge.
A ‘Foreign Affairs’ havia publicado uma resenha de Maxwell em novembro sobre o livro ‘O Arquivo Pinochet’, do historiador Peter Kornbluh, que trata do golpe que derrubou o presidente chileno Salvador Allende, em 1973, e da participação americana no episódio -à época, Kissinger era o secretário de Estado.
Na edição seguinte, a revista publicou uma carta de William Rogers, que trabalhou sob o comando de Kissinger como secretário assistente para a América Latina no período do golpe e que hoje é vice-presidente de sua empresa de consultoria -a Kissinger Associates-, em que afirmava que não há provas concretas da participação americana no episódio.
Kissinger e Rogers são membros do CFR, embora não façam parte da equipe de especialistas empregados pela entidade.
Seguiu-se uma réplica de Maxwell, uma tréplica de Rogers, e o brasilianista, por decisão do editor da revista, não pôde publicar um texto final de resposta.
Na sua carta de renúncia a Hoge, Maxwell afirma: ‘Foi deixado abundantemente claro para mim […] que houve intensa pressão sobre você, sobre a ‘Foreign Affairs’ e sobre […] o CFR, por parte de Henry Kissinger e outros, para encerrar esse debate sobre responsabilidades e o papel do sr. Kissinger no Chile dos anos 70’.
Maxwell diz que a decisão da revista faz parte do ‘ambiente’ dos EUA pós-11 de Setembro:
‘Tive um período feliz e produtivo aqui. Isso tem a ver com a atmosfera em geral do país, que passou a ser um lugar bem menos aberto para o debate público’.
Ele diz ter sido cuidadoso em sua resenha: ‘O que está provado é que os EUA tiveram participação nas condições que levaram ao golpe. Fui bastante cauteloso. Essa é a ironia. O golpe foi feito por chilenos, e disse isso bem claramente no artigo’.
Rogers respondeu, em carta à publicação, afirmando que não há ‘smoking gun’ (prova definitiva) para o envolvimento dos EUA na queda de Allende. Maxwell retrucou dizendo que não era isso que ele procurava, e reafirmou seu argumento.
Rogers acertou com o editor escrever a última carta, segundo Hoge, por ter compreendido que Maxwell insinuava, em sua resposta, que os americanos teriam tido participação no atentado que matou Orlando Letelier -que fora chanceler de Allende- em 1976, nos EUA. Maxwell nega e diz que defendia que os americanos apenas falharam em impedir assassinatos de opositores aos militares latino-americanos.
‘O argumento é que essa foi uma tragédia que poderia ter sido evitada. Outros assassinatos de membros da oposição planejados pela [Operação] Condor na Europa foram evitados porque os EUA avisaram os governos em questão’, diz o trecho em disputa.
‘Eles não poderiam trocar cartas para sempre’, disse Hoge à Folha, explicando que compreendeu que a última resposta de Rogers se referia a apenas um aspecto da carta de Maxwell, e não ao debate como um todo.
Maxwell diz que em momento algum foi informado de que havia o acordo para que aquela resposta de Rogers fosse a última.
Hoge nega as acusações de que teria sofrido pressões de Kissinger. ‘Ele nem sabia da troca de cartas’, disse. Questionado sobre como poderia saber disso, declarou que ligou para o ex-secretário há uma semana para comentar o caso. Hoge diz ainda que recebeu uma ligação de Peter Peterson, presidente do Conselho de Diretores do CFR, dizendo que Kissinger havia ficado insatisfeito com a resenha de Maxwell, mas que isso não teve nenhuma influência na sua decisão de encerrar o debate.
A vice-presidente de comunicação do CFR, Lisa Shields, declarou que ninguém na entidade ‘pressionou Jim Hoge sobre que artigos publicar’.’