Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Francisco Fonseca

‘O livro ‘A Imprensa Confiscada pelo Deops, 1924-1954’ compõe a série Labirintos da Memória, voltada a expor os resultados de pesquisas desenvolvidas pelo Projeto Integrado Arquivo do Estado de São Paulo/Universidade de São Paulo (Proin). O projeto objetiva resgatar e analisar os inúmeros registros de uma triste instituição na sociedade brasileira: o Departamento Estadual de Ordem Política e Social (Deops).

Neste livro, é oferecido ao leitor e sobretudo ao pesquisador um rico panorama de 78 jornais das mais distintas (e contrapostas) orientações doutrinárias e ideológicas que foram apreendidos em três décadas: entre 1924 (ano da criação do Deops) e 1954.

Trata-se de um cuidadoso trabalho -que envolve e forma alunos/ pesquisadores e incita à pesquisa histórica no Brasil- sobre os porões que aprisionaram visões alternativas sobre a história, a política e a sociedade brasileira, sobretudo de operários, comunistas, anarquistas, grupos profissionais e étnicos, mas também de nazistas, fascistas, integralistas, católicos, dentre inúmeros outros grupos.

Há que se destacar a competência dos organizadores e pesquisadores em catalogar, historicizar e contextualizar personagens, movimentos e fenômenos políticos e sociais, revelando-nos meandros que contribuem para a compreensão dos embates ideológicos contidos nos jornais.

Estes, que se colocavam alternativamente à grande imprensa -muitos com periodicidade irregular e elaborados em oficinas tipográficas rudimentares-, voltavam-se ao mesmo tempo à realidade brasileira e ao contexto internacional através da propagação de suas idéias, inclusive nas cidades do interior. Daí o embate mundial entre comunismo, anarquismo, fascismo e nacionalismo se expressar de forma cabal nesses militantes jornais, muitos dos quais dirigidos por imigrantes, além de alguns serem escritos em outras línguas.

Embora os jornais ‘à esquerda’ tenham sido muito mais intensamente perseguidos e aprisionados (pois denunciavam a exploração e a miséria e defendiam a revolução), também os grupos ‘à direita’ o foram. Mas o livro também reproduz as respectivas capas dos jornais analisados, oferecendo-nos um belíssimo panorama iconográfico da diversidade plástica, incluindo-se formas irreverentes de expressão.

Chama a atenção nos relatos a truculência persecutória da ‘polícia política’ em que se constituiu o Deops desde a sua fundação, pois não apenas confiscou as publicações das mais variadas tendências, como levou ao aprisionamento e à morte inúmeros de seus militantes políticos. Mais notável ainda é perceber a fragilidade da ‘democracia’ brasileira, pois o Deops se manteve na ativa tanto nos momentos autoritários em sentido estrito como nos formalmente democráticos (somente foi extinto em 1983).

Mas, ao lado da ação censória e policialesca, o livro expõe as estratégias variadas e sagazes, muitas vezes metafóricas e oportunas, de burla por parte dos diversos grupos analisados, demonstrando assim as artimanhas da luta ideológica e de classes na história brasileira.

Mas a real dimensão de um inventário como esse, dada a importância do material apreendido e apenas recentemente revelado, somente é possível em razão da qualidade técnica da publicação.

A todos que se interessam por visões distintas da história (aqui resgatadas) e pela democratização da sociedade brasileira, este é um livro de leitura obrigatória.

Francisco Fonseca é professor de ciência política da PUC-SP e da Fundação Getúlio Vargas

A IMPRENSA CONFISCADA PELO DEOPS, 1924-1954. De: Maria Luiza Tucci Carneiro e Boris Kossoy. Editora: Ateliê Editorial, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo e Arquivo do Estado. Quanto: R$ 80 (294 págs.).’



ANOS DE CHUMBO / RESENHAS
Marco Antonio Villa

‘Estudos revisam repressão vivida nos anos de chumbo’, copyright Folha de S. Paulo, 12/06/04

‘Dois importantes livros sobre os anos de chumbo foram lançados: ‘O Coronel Rompe o Silêncio’, do jornalista Luiz Maklouf de Carvalho, e ‘Tirando o Capuz’, do também jornalista Álvaro Caldas. Este último é na verdade um relançamento. A primeira edição é de 1981 e teve logo em seguida mais três reedições. Esta é a quinta, revista e ampliada.

‘O Coronel Rompe o Silêncio’ é mais uma colaboração de Carvalho para o estudo da ditadura militar. Em 98 tinha publicado pela Globo o excelente ‘Mulheres que Foram à Luta Armada’. O coronel do título é Lício Augusto Ribeiro. Concedeu várias entrevistas ao jornalista, que reconstruiu a história da guerrilha patrocinada pelo Partido Comunista do Brasil entre 1972-1974 no Araguaia, norte de Tocantins/sul do Pará.

O coronel, durante a repressão, tinha a patente de major, mas atuou na região como o dr. Asdrúbal, assim como outros oficiais que também usaram codinomes. Participou das campanhas contra os guerrilheiros e foi personagem de vários momentos que o notabilizaram. O primeiro foi a prisão de José Genoino, o ‘Geraldo’, em abril de 72. Pelo relato do coronel, a prisão do jovem guerrilheiro foi reescrita. E isso é importante para os estudiosos da guerrilha, pois explica parte da ação repressiva naqueles meses.

O jornalista teve o cuidado de checar com o hoje presidente nacional do Partido dos Trabalhadores as informações do coronel, e Genoino confirmou a versão.

Um ano e meio depois, em outubro de 73, o coronel esteve envolvido em um dos acontecimentos mais emblemáticos: o fuzilamento de Lúcia Maria de Souza, a guerrilheira ‘Sônia’. Surpreendida pela chegada de um grupo de soldados, liderados pelo coronel, a guerrilheira reagiu -mesmo ferida por dois tiros- e alvejou o coronel, que foi atingido no rosto. Em seguida, a patrulha fuzilou a guerrilheira. Depois de operado, o coronel retornou à região no início de 74, quando a guerrilha já estava praticamente derrotada, depois da morte, no Natal de 73, de boa parte da liderança. Abandonados à própria sorte, sem nenhuma ligação com o PC do B nas cidades, os últimos guerrilheiros são literalmente caçados pelas forças de segurança. E até hoje nem sequer os corpos foram entregues às famílias.

‘Tirando o Capuz’ é um excelente relato das agruras de um jovem jornalista ligado ao Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR) e que milita na cidade do Rio entre o final da década de 60 e início da seguinte.

Caldas escreve com elegância e bom humor, mas não faz uma reconstrução heróica daqueles anos. Tem consciência dos limites daquela luta, tão distante das ‘massas’, a quem deveria ser dirigida as ações consideradas revolucionárias. O militarismo das organizações retirava o militante da vida normal, afastando-o da família, do trabalho e dos amigos: tudo em defesa da revolução -que nunca vinha. O autor desenha um belo retrato da vida na prisão, passando antes pela violência da tortura, um universo masculino -houve alguma mulher torturadora?-, e pelos limites que um militante suporta a selvageria das torturas para defender seus companheiros de luta.

Os dois livros são fundamentais para o estudo dos anos de chumbo. Se revelam a face repressiva da ditadura, também demonstram o sacrifício inútil de dezenas de jovens em defesa de uma causa derrotada a priori. Porém é inaceitável que o Brasil não possa saber plenamente o que aconteceu nos anos de chumbo. Apesar de um ano e meio do governo Lula, o famigerado decreto assinado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, vedando a consulta dos documentos oficiais sigilosos, não foi alterado. E sem a sua revogação não podemos concluir esse processo de acerto de contas com a história recente do Brasil. Marco Antonio Villa, 48, historiador, é professor do departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos e autor de ‘Jango, um Perfil (1945-1964)’ (editora Globo)

O CORONEL ROMPE O SILÊNCIO. Autor: Luiz Maklouf Carvalho. Editora: Objetiva. Quanto: R$ 34,90 (224 págs.).

TIRANDO O CAPUZ. Autor: Álvaro Caldas. Editora: Garamond. Quanto: R$ 35 (266 págs.).’



Gilberto Felisberto Vasconcellos

‘Masoquismo e golpe de Estado circundam João Goulart’, copyright Folha de S. Paulo, 12/06/04

‘O leitor é advertido que o lance fundamental deste livro é ater-se aos fatos, à narrativa cronológica dos fatos; mas isso não exclui que o autor tenha uma interpretação, um juízo de valor sobre o que significou João Goulart na história do Brasil.

Evidentemente, é simplismo maniqueísta colocar a questão assim: a favor ou contra a queda do ex-presidente? O problema, no entanto, é que um balanço rigoroso do que representou João Goulart nunca é inocente nem neutro nem imparcial. Trata-se de um tema explosivo que envolve os impasses da civilização brasileira.

E mais: qualquer que seja a interpretação, isso acaba por trazer uma avaliação sobre o presente como história, posto que a derrubada de Jango em 1964 não deixou de determinar a atualidade brasileira para além da relação da história com o historiador.

A tese do livro é, para usar a linguagem da direita, que Jango estava a fim de dar um autogolpe, ou seja, queria continuar no poder, alterando a Constituição com direito à reeleição, ou valendo-se de uma quartelada. Essa tese acerca do Jango golpista foi combatida e negada várias vezes com veemência por Darcy Ribeiro (além de Nelson Werneck Sodré, que não é citado nem uma única vez); aliás, este livro apresenta uma versão antípoda do ex-chefe da Casa Civil de Jango, que escreveu dezenas e dezenas de textos sobre a derrota do janguismo. Golpe é coisa da direita, não da esquerda.

No cotejo (que já fora feito por Paulo Schelling) entre Jango e Brizola, o autor mostra que o primeiro era pusilânime, vacilão, fraco, enquanto o segundo tinha clareza e pulso firme, sendo coerente e corajoso; porém, ao deixar de lado a tramóia do imperialismo nos idos de março de 64, o livro se afasta de uma perspectiva brizolista (o grupo dos 11 é visto sob o ângulo da ‘tradição cartorial’), afastando-se do que Moriz Bandeira escreveu sobre as contradições do governo João Goulart.

Embora o embaixador norte-americano Lincoln Gordon seja referido de maneira anedótica e respeitosa, a questão do imperialismo está inteiramente alijada, de modo que se trata menos de uma narrativa profunda do que de uma descrição perfunctória. Os nexos causais estão ausentes.

Os dois motivos que desencadearam o golpe -a reforma agrária e a lei da remessa de lucros- são considerados desprovidos de qualquer relevância. A chamada aliança do latifúndio com o imperialismo (o Brasil como grande exportador de capitais) vira conversa para boi dormir. Mas sem isso é difícil explicar a maior rasteira que um político levou na história do Brasil.

‘Ópera bufa’, professor? Aí pegou pesado. E, detalhe, essa rasteira continua mesmo depois de Jango morto, em 1976. Rasteira póstuma. O único presidente do Brasil que morreu no exílio. Convenhamos que isso não é uma experiência agradável.

Afirmar que Jango foi um ‘homem de sorte’ porque não retornou do exílio, de modo que não vivenciou de novo um fracasso, revela que o autor prefere as novas lideranças políticas pós-golpe de 64. Se a isso não tivesse seguido a supressão das liberdades democráticas, bem que Jango poderia ter caído. Numa boa. Bem feito! A culpa é de Getúlio Vargas que foi lhe dar colher de chá e biscoitinho em São Borja.

Essa é a moral deste livro anti-Jango, que, aliás, nisso não apresenta absolutamente nenhuma novidade, pois já se tornou lugar comum da ideologia hegemônica no Brasil das últimas décadas: dizer que Jango caiu por incompetência ou masoquismo, mas não por causa do imperialismo americano. O ideal seria cortá-lo, mas não interromper a democracia. Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais na Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de ‘A Salvação da Lavoura’ (ed. Casa Amarela)

Jango, um Perfil (1945-1964) Autor: Marco Antonio Villa Editora: Globo Quanto: R$ 38 (288 págs.)’