Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Mídia, medicina e mercadização

Observem capas e matérias sobre a nova campanha do câncer de mama, com a novidade do momento: o auto-exame já era. A Folha de S. Paulo saiu na frente na sexta-feira, destacando a frase do Dr. José Luis Bevilacqua, do Hospital Sírio-Libanês: ‘Não podemos mais dar informações distorcidas ou incompletas à sociedade sobre métodos ineficazes de prevenção de câncer, como o auto-exame’. Segundo o jornal, a campanha lançada na sexta-feira pelo governo federal no Rio de Janeiro vai relativizar a importância do auto-exame e priorizar o exame clínico e a mamografia.

A nova campanha, joint-venture entre a sociedade médica e o Ministério da Saúde, defendida com unhas e dentes pela Folha, afirma com veemência que o auto-exame causa biópsias desnecessárias – como se as mulheres usassem o bisturi em si mesmas e em suas amigas; não evita mortes causadas pelo câncer de mama e causa ansiedade e depressão, como se a marcação de exame e a passagem pelo mamógrafo não acarretassem ansiedade e depressão ainda mais intensas ou tanto quanto.

Esse carnaval todo em cima da ineficácia do auto-exame é um lobby nada disfarçado para a importação de mamógrafos – a US$ 150 mil cada, segundo a própria Folha, que não se deu ao trabalho de converter o preço para reais. Para justificar a campanha, as autoridades médicas brasileiras baseiam-se em pesquisa feita pela ONU na China e na Rússia. Pesquisa extensa, abrangendo pouco mais do que 300 mil mulheres. Conclusão: nesses países, o auto-exame não chega a evitar 30% das mortes, causa ansiedade e depressão.

Deslocamento em massa

Chega a ser uma afronta à inteligência, mas estamos diante de uma campanha supostamente em prol da saúde da mulher brasileira, que se baseia numa pesquisa feita do lado de cima do Equador, do outro lado do globo terrestre. Precisa comentar ou será que podemos imaginar que a realidade das mulheres chinesas e russas é bem diferente da realidade das mulheres brasileiras? A notícia não quer saber e bate forte quando afirma: ‘Existe um entendimento internacional de que a mamografia é o único exame que consegue prevenir mortes por câncer de mama’. Nem cita a ultrassonografia, exame largamente usado em alguns países europeus e considerado mais seguro porque não utiliza o tipo de radiação dos mamógrafos, já sabidamente cancerígeno.

Mais um parágrafo e fica subentendido que a pouca quantidade de mamógrafos no país é uma espécie de causa do aumento do número de mortes por câncer de mama. Afinal, dados do Inca de 2003 afirmam que 9.335 mulheres morreram de câncer no país, e houve o surgimento de 41.610 novos casos. Tudo isso num país onde o câncer de mama é o campeão das mortes de mulheres. Daí a necessidade da importação da grande estrela, a máquina superfaturada que custa quase R$ 500 mil a unidade.

Agora, se a campanha vai ou não orientar a mulher brasileira sobre a existência de produtos cancerígenos nas tintas de cabelo, nos subprodutos da indústria utilizados nos medicamentos, nas comidas industrializadas, nos produtos de limpeza e nos cosméticos, isto sequer é mencionado. Se a campanha vai falar sobre os riscos de um mamógrafo estar desregulado ou mal-regulado a fim de apresentar uma nitidez maior, o que foi verificado na Europa como um possível desencadeador de câncer de mama, isso não se lê. Também não se sabe ou se tenta saber se a licença-maternidade de quatro meses, aliada à necessidade do bebê de mamar exclusivamente no peito da mãe até os 6 meses, que obriga desmames abruptos e malfeitos, tem alguma incidência no índice de câncer das brasileiras.

A campanha contra o câncer de mama, que deverá a partir dos próximos dias ser veiculada pela imprensa, é uma campanha a favor da compra de mamógrafos, a favor do deslocamento em massa de mulheres em busca de mamografias, o que, segundo a notícia da Folha, nos leva a entender que diminuiremos a incidência de biópsias desnecessárias e de eventuais ansiedades e depressões acarretadas pelo auto-exame. Credo, é para rir ou para chorar?

Mastectomia radical

O que sobra para as mulheres brasileiras, vítimas ou não de câncer, pobres ou ricas, com baixa ou alta escolaridade, é mais uma obrigação muito mal-disfarçada de direito. A mercadização da medicina embreta as mulheres numa linha de montagem de exames mecanicistas, ignorando as singularidades das condições femininas no universo profissional e social contemporâneo. Não se leva em conta o transtorno emocional da mãe que deixa seu bebê numa creche antes de ter tempo suficiente para desmamá-lo gradualmente. O mercado médico ignora a tristeza da mãe por ter que comprar um leite pior com o pouco dinheiro que consegue, enquanto carrega o melhor dos leites para o trabalho; e nem falamos aqui de pílulas, silicones e hormônios, porque não é preciso, já que as causas do câncer de mama não são conhecidas, não são pesquisadas, são um mistério para a medicina, muito mais interessada em sanar o mal com o pior ainda.

E também porque seria uma bobagem falar sobre causas do câncer numa campanha do câncer de mama que não é a favor da saúde da mulher e não tem consideração pelas necessidades básicas do corpo da mulher. É uma campanha para alimentar um círculo vicioso, no qual o mais importante é o faturamento econômico.

Só para terminar, uns dados pessoais e nada científicos:

Nos últimos cinco anos seis pessoas próximas a mim tiveram câncer de mama. Quatro delas tinham 40 anos ou um pouco mais, e essas quatro haviam feito mamografia entre seis e 12 meses antes de detectarem, por auto-exame, um nódulo que não apareceu nas mamografias, mas alguns meses após a mamografia. Duas delas fizeram mastectomia parcial, e as outras duas, radical.

Das seis, duas eram jovens, e não haviam feito mamografia. Ambas desenvolveram um tipo de câncer de evolução muito rápida, o que as obrigou, logo depois do auto-exame e da biópsia, à mastectomia radical, pois o nódulo aumentou visivelmente de tamanho em uma semana.

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Jornalista