E bem provável que nenhum leitor brasileiro conheça o Journal de La Haute Marne, folha diária do departamento de Haute Marne, no leste da França. Este país, como se sabe, divide-se em regiões, departamentos, cantões e municípios, com vida regional razoavelmente autônoma e diferenciada da metrópole. O jornal em questão, com 55 páginas, tem uma tiragem de 35 mil exemplares e é lido por 50 mil pessoas, dentre um total de 200 mil habitantes em todo o departamento.
Esse índice é enorme. É proporcionalmente maior do que o índice de leitura de um jornal francês famoso (embora atravessado atualmente por uma crise de ampla repercussão) como o Libération , o popularíssimo Libé dos intelectuais mais jovens da esquerda. Aqui, a televisão, embora vista por todos, não substitui a imprensa escrita.
Nas páginas do Journal de La Haute Marne, por exemplo, a vida cotidiana dos cantões (um departamento compreende em geral quatro cantões) comparece sob a forma de grandes e pequenos acontecimentos locais, como movimentações políticas e econômicas, mas também nascimentos, casamentos, mortes. O jornal é uma das formas essenciais de memória das comunidades regionais.
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Cirey, o village onde me encontro em companhia do sociólogo Henri-Pierre Jeudy (tem vários livros traduzidos em português), no quadro de um projeto intitulado ‘Crônica da Comunidade’, tem apenas 95 habitantes. Mas exibe um castelo (aliás, o mesmo onde Voltaire escreveu Zadig ) e casas senhoriais.
O sentimento de comunidade – e de igreja – é forte e, mesmo, idealizado – o que faz a intelectualidade metropolitana torcer muitas vezes o nariz para seus aspectos conservadores. Faz pouco tempo, um grupo de crianças instado a falar sobre o village revelou o desejo de que fossem criadas barreiras para visitantes, e de houvesse uma tecnologia capaz de elevar o lugarejo até próximo dos céus. Polícia inexiste: não se registram assaltos, nem homicídios. Mas há um caso recente de suicídio…
Ninguém se engane, porém: mesmo com todo esse espírito de fechamento comunitário, a globalização se faz sentir. Numa edição de dezembro, o boletim da paróquia local recordava aos fiéis que ‘estamos hoje na hora da internet, a rede mundial de comunicação’, e adverte que ‘o celular é de agora em diante apêndice indispensável aos ouvidos de muitos, enquanto que o olho não mais observa o passante com que cruza na rua’.
E impossível voltar as costas a comunicação, e a Igreja afirma contar com ela em seu dever de comunidade. Afinal, Deus se fez ‘comunicante’ na pessoa de Jesus Cristo, que é a propria ‘comunicação’ de Deus. Estamos sempre à espera de uma ‘boa notícia’, que é o significado próprio de Evangelho.
Neste último ponto, essas pequenas comunidades de uma região francesa, que perde progressivamente a sua população agrícola no quadro da globalização européia, parecem fazer contato com as ‘comunidades’ periféricas de cidades como Paris, Rio e São Paulo. Guardadas as diferenças, esperam todas uma ‘boa notícia’.
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Jornalista, escritor, professor titular da UFRJ e presidente da Fundação Biblioteca Nacional