Não era reinauguração de obra inacabada, o orador não envergava uma camiseta de time de futebol, mas um blusão com o brasão da República. Solenidade importante, marcava nova etapa em nosso desenvolvimento energético e entre os convidados estava um chefe de Estado estrangeiro com a sua numerosa comitiva (inclusive jornalistas).
E para agradar o parceiro Hugo Chávez, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva caiu de pau novamente na imprensa brasileira tomando como pretexto o mau exemplo da imprensa venezuelana. Temperatura política alta (era o primeiro pronunciamento depois de conhecidos os desastrosos números da última sondagem eleitoral), temperatura ambiente mais alta ainda (em Ipojuca, perto do Recife – onde será instalada a primeira refinaria de petróleo de Pernambuco – o calor nesta época é de lascar).
Imaginando-se como reencarnação de Juscelino Kubitschek, o presidente Lula desembestou pela história da imprensa brasileira e inventou ali mesmo, num daqueles seus desastrados improvisos, o ‘massacre da mídia’ contra Juscelino Kubitscheck.
Lorota: o presidente JK era um estadista superdotado que, entre outros méritos, sabia lidar com a imprensa. Dos quase dez grandes jornais do Rio, a então capital federal, apenas dois estavam contra ele: a minúscula e delirante Tribuna da Imprensa e o pomposo e atrapalhado Diário de Notícias.
O resto estava com JK: o Correio da Manhã, baluarte dos matutinos, enfrentou as tentativas de impugnação das eleições, a ameaça de um golpe e foi o campeão do contragolpe desferido pelo general Henrique Lott, ministro da Guerra que garantiria a posse do eleito. Álvaro Lins, redator-chefe do jornal, foi escolhido como chefe da Casa Civil de JK e, depois, como segundo prêmio, ganhou a sonhada embaixada em Portugal.
Impostura histórica
Os Diários Associados entregaram-se a JK desde o início, e com isso Juscelino ganhou uma fantástica rede nacional integrada pelos poderosos matutinos (liderados por O Jornal e Diário de S.Paulo), vibrantes vespertinos e a única rede de rádios e TV (a Tupi) da época.
Assis Chateaubriand, dono dos Associados, também ofereceu a JK a maior revista da América Latina, O Cruzeiro (àquela altura com meio milhão de exemplares semanais). Foi seguido pela Manchete, naquele momento dirigida pelo mineiro Otto Lara Resende (mais tarde, o dono Adolfo Bloch aproximou-se de JK para embolsar as sobras dos projetos de desenvolvimento).
A Última Hora de Samuel Wainer, um pouco machucada pela solerte campanha movida por Carlos Lacerda (o inspirador de Diogo Mainardi), estava com JK desde os tempos do governo de Minas. O pequeno e influente Diário Carioca (de José Eduardo de Macedo Soares, dirigido por Horácio de Carvalho), nunca titubeou no apoio a JK.
O Globo andou namorando os golpistas civis e militares por causa do horror ao populismo sindicalista do então vice-presidente João Goulart, mas cerrou fileiras com JK tão logo foi anunciada a vitória do contragolpe de Lott. O Jornal do Brasil, de Nascimento Brito, precisava de novas rotativas para bancar a sua famosa reforma de 1956 e não teve dúvidas em oferecer ao governo a cabeça do seu rebelde redator-chefe, o udenista Odylo Costa, filho.
O ‘massacre de JK pela imprensa’ é, portanto, uma impostura histórica. Delírio martirológico. Juscelino não foi apenas um sedutor, mas um governante capaz de convocar com naturalidade todos os que o ouviam. A imprensa estava cansada do ‘não’, queria participar de um projeto afirmativo, queria construir. Não é por casualidade que os anos 1950 são considerados os Anos Dourados do jornalismo brasileiro.
O denuncismo denunciado por Lula é fruto de uma mitomania que, às vezes, lembra tática de marqueteiro mas, em outras, parece enraizada no inconsciente do candidato a mártir.
Leituras necessárias
Ao longo deste terrível semestre a imprensa comporta-se razoavelmente. A melhor prova são as grandes alterações efetuadas não apenas no partido do governo, mas no próprio governo, sempre em resposta às denúncias da imprensa. Equivalem a um gigantesco mea-culpa.
Quem não está se comportando de forma apropriada e democrática é o presidente da República. Nos últimos 50 anos nenhum presidente foi tão agressivo com a mídia. Os ditadores militares operaram na sombra, não ousariam dizer a décima parte do que Lula diz. Não apenas em termos de freqüência dos impropérios mas, sobretudo, na sua intensidade. Convém não esquecer que, em Santo Domingo, Lula chamou de covardes os jornalistas que se recusavam a aderir ao Conselho Federal de Jornalismo.
Esta linguagem desabrida e ameaçadora, antes mesmo da exibição do ‘vídeo da propina’, em maio passado, já revelava uma preocupante predisposição, infelizmente materializada.
Ainda é cedo para fazer um balanço dos erros e acertos da imprensa ao longo desta crise. Que sequer chegou ao meio. Por enquanto, a única denúncia com jeito de embuste é a tal história dos ‘dólares cubanos’, veiculada por Veja (edição 1929, de 2/11), portanto há quase dois meses e hoje esquecida nas gavetas dos seus editores.
Para igualar-se a JK, o presidente Lula deve pedir a alguém que lhe sopre algumas passagens da excelente biografia do jornalista Cláudio Bojunga, JK, o artista do impossível (Editora Objetiva, Rio, 2001), especialmente no tocante às relações do ex-presidente com a imprensa.
À assessoria palaciana recomenda-se ter à mão a versão digital do Dicionário Histórico-Biográfico (FGV-CPDOC), valiosa ferramenta sobre a história recente dos grandes jornais brasileiros.
Um presidente da República, mesmo em campanha de reeleição, não pode massacrar a verdade histórica com tamanha desenvoltura.