Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Joaquim Furtado

‘Referente às páginas de Desporto do Público, chegou ao correio do provedor, nestes primeiros cinco meses da sua actividade, uma única carta. E essa única carta, para discordar de uma opinião. Há dias, um segundo leitor aludia a esse universo da actualidade noticiosa.

Afirmando não gostar de futebol, mas compreender que ‘os nossos concidadãos gostem muito’, Augusto K. Magalhães fazia aquilo que poderíamos definir como uma espécie de ‘crítica’ preventiva: ‘espera-se que no Público, no jornal diário de referência, no melhor jornal diário deste país, agora com o Euro 2004 não se ocupe demasiadas páginas com este tema’. O leitor não explica a razão dos seus receios, nem sugere se existe alguma identificável. Temendo, talvez, pelos efeitos de um ambiente que sinta a instalar-se nos ‘media’, o leitor invoca aquilo que lhe parece constituir uma condição imunitária do Público: ‘o jornal diário de referência’. Como se isso, por si só, o obrigasse a uma conduta especial, designadamente, nesta matéria . E não obriga ?

Recentemente, numa análise comparativa, com alguns aspectos do jornalismo brasileiro, Manuel Carlos Chaparro (1), define a imprensa portuguesa como ‘histórica e culturalmente vinculada à escola francesa’, onde ‘mais do que os factos, as ideias dão tom aos jornais mais conceituados’. E, afirmando que esse pendor é também conferido pelo lugar, ‘nobre’, que esses textos de opinião ocupam e pelo espaço que lhes é concedido, dá um exemplo: ‘domingo passado (11 de Abril), o Público, principal jornal diário de Lisboa, identificado por aqui [Portugal] como paradigma de jornalismo de referência, ocupava, com artigos [de opinião], oito das onze páginas iniciais da edição. Depois da fieira de artigos, vinha o noticiário político nacional, em quatro páginas, duas delas dedicadas à memória do 25 de Abril. Ao noticiário internacional foram dadas as seis páginas seguintes, uma das quais com textos de análise. Completavam as 64 páginas da edição (…) o noticiário geral, o noticiário local e regional, o espaço da cultura e do lazer, um caderno de classificados, alguns anúncios de página inteira – e o desporto, que, com 10 páginas, foi a única editoria a superar o espaço dos artigos’.

Perante este último dado, pergunta Manuel Carlos Chaparro: ‘será essa uma contradição – a de um jornalismo que dá tanta importância ao texto de idéias (artigos) quanto às emoções e polémicas desportivas?’ Ele próprio responde ‘talvez’ e acrescenta uma observação: ‘na verdade, a proeminência do desporto (leia-se futebol) constitui uma faceta pouco estudada, e surpreendente, nas preferências jornalísticas dos portugueses. Vejam só: o país tem três jornais diários esportivos, dois deles (‘A Bola’ e o ‘Record’) com tiragens ao redor dos 100 mil exemplares, o dobro da tiragem média do Público e do ‘Diário de Notícias’, os dois jornais de maior prestígio na imprensa portuguesa’.

Deixando de lado a análise de explicações mais profundas que não cabe aqui fazer, fiquemo-nos por aquele excerto do texto que, aliás, contém outros motivos de interesse. Demasiado espaço para os temas de desporto, num jornal que priveligia as ideias?

O director do Público contesta a contradição, desde logo ao considerar atípico o dia citado (11 de Abril), por ser ‘um jornal de domingo, ainda por cima domingo de Páscoa, depois de uma jornada do nacional de futebol concentrada no sábado’. José Manuel Fernandes acrescenta que a média é de ‘três páginas de opinião (?artigos?) aos dias de semana, quatro à sexta e cinco ao domingo’. E que ‘pode haver mais páginas de opinião quando os artigos têm de ocupar espaço por entre publicidade de côr, que tem localização obrigatória no jornal’. Quanto ao desporto, diz que ocupa, habitualmente, ‘entre quatro e cinco páginas’, pelo que – conclui – o jornal não dá ao tema ‘a atenção que parece transparecer daquele exemplo’.

Uma observação, ainda que sumária, às edições das últimas semanas, confirma, genericamente, as médias referidas. Sendo verdade a existência de edições em que a actualidade desportiva (FC Porto na Liga dos Campeões Europeus, Euro 2004, realizado em Portugal ) dita um maior destaque, acontece também que nenhum dos diversos suplementos e revistas que acompanham o jornal é de índole desportiva o que, numa avaliação global, altera os termos da proporcionalidade.

Mais do que a percentagem com que cada secção contribui para o todo que é o jornal e, dentro dessa contabilidade, aquela que as páginas do desporto ocupam é, talvez, o tipo de abordagem jornalística o que melhor define o ‘jornal de referência’. Ainda o director : ‘a preocupação é dar não só futebol, mas desenvolver outros desportos desvalorizados pelos jornais desportivos e com menos ‘emoção’. Procuramos dar informação de base, sem excessos, e acrescentar análises específicas, como nas páginas de análise da jornada (terça-feira, com infografia e selecção dos melhores) e antecipação da jornada (sexta-feira)’. José Manuel Fernandes sintetiza que este conceito implica ‘mais atenção às polémicas e às análises (…) do que às pequenas notícias dos jornais desportivos’.

Ou seja, um jornalismo que se pretende mais distanciado e que procura interpretar e enquadrar, mais do que explorar, as paixões que estão associadas ao desporto. Ao futebol, mais precisamente, cuja presença tende a oprimir o noticiário relativo às outras modalidades, apesar do propósito enunciado.

A atitude do jornal face ao desporto não consta do Livro de Estilo. Num certo sentido, naturalmente, visto que o mesmo se passa com a economia ou a cultura. Noutro não, já que, como vemos, se trata de uma realidade condicionada por factores distintos. Alguns princípios orientadores poderiam ser estabelecidos, para além das ‘advertências’ já consignadas contra o ‘futebolês’: ‘uso sistemático de expressões-muleta, algumas ridículas, que redundam numa linguagem pobre e esteriotipada, quando se escreve sobre futebol’. Aos jornalistas é desaconselhado o uso de expressões como ‘moldura humana’, ‘apostado em ganhar’, ‘averbar uma clamorosa derrota’, ‘tirar do caminho da bola’, e muitos outros lugares comuns que a informação desportiva vulgarizou junto de ouvintes, espectadores e leitores. Algumas destas e muitas outras vão, certamente, pontificar nestes dias do importante ‘acontecimento mediático’ que é o Euro 2004. Uma ‘cerimónia’ de que, afinal, os próprios meios de comunicação são co-autores (2). E que, inevitavelmente, será enquanto decorrer, um pano de fundo da nossa realidade. A metáfora do relvado, por detrás dos acontecimentos, representada na primeira página do Público de ontem.

(1) M.C. Chaparro é professor de jornalismo na Universidade de S.Paulo, Brasil, onde se doutorou em Ciências da Comunicação. Iniciou a carreira como jornalista, em Portugal, tendo emigrado para o Brasil em 1961. O texto aqui citado foi publicado no site do ‘Observatório da Imprensa’, organização brasileira de acompanhamento dos ‘media’, onde escreve, regularmente. (A transcrição manteve a grafia usada pelo autor).

(2) Na definição, sintética, de Daniel Dayan e Elihu Katz, autores do conceito, os acontecimentos mediáticos referem-se a ‘momentos históricos – quase sempre cerimónias de Estado – que são televisionadas em directo e que fazem parar uma nação ou o mundo. Nesses momentos incluem-se épicas competições políticas e desportivas, missões carismáticas e os ritos de passagem das grandes personagens – a que chamamos Competições, Conquistas e Coroações’. In ‘A História em Directo’, edição Minerva.’