Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Alberto Dines

‘O governo levou um tremendo susto com a rebelião dos senadores contra o salário mínimo. O poder central tremeu nas bases quando a Câmara Alta, até então agachada, transformou a minoria em maioria, enfrentou a onipotência e impôs a sua vontade. Os deputados provavelmente reverterão o resultado final mas, sob o ponto de vista institucional e moral, o estrago é irreparável – está destroçada a noção de que alianças políticas podem ser construídas somente à base de barganhas, cargos e propinas.

Ganhou a democracia: uma parte do Legislativo, cheia de brios, finalmente lembrou-se de Montesquieu e ensaiou o renascimento do princípio do equilíbrio entre os poderes. A famigerada mosca azul continua voejando na praça dos Três Poderes, é inevitável, mas a prática política nacional perdeu o despudor. A República agradece.

Sobressalto pode converter-se em tranqüilidade, desassossego vira sossego quando se retira a minúscula partícula que os diferencia. Hollywood, esta central de alquimias e laboratório de metamorfoses, está nos brindando neste momento com um exemplo da inesgotável capacidade humana para produzir reversões.

‘Shrek-2’ deveria ser um filme de horror a começar pelo título: Shrek em alemão (e em idisch, o dialeto tão usado nos meios cinematográficos americanos), significa terror e medo. É uma história sobre monstruosos ogros e ogras, bichos-papões. Teoricamente arrepiante, promete ser uma hilariante colagem de parodias sobre o território mítico do Tão Tão Distante e seus gatos-de-botas, fadas-madrinhas e pinóquios.

O medo pode ser espantado quando temos a coragem de rir dele. Pesadelos acabam, angústias superam-se. Aflições passadas são fáceis de contar — escreveu Primo Levi antes de suicidar-se.

Nem todas. O Vaticano mostrou na última terça-feira que um dos episódios mais sinistros do último milênio mantém sua carga de horror. Não pode ser esquecido nem atenuado. O ‘Santo Ofício da Inquisição contra a Herética Pravidade’ — a tenebrosa Inquisição — foi novamente repudiado pela autoridade suprema da Igreja.

Não contente com o pedido formal de perdão publicado há quatro anos, o Papa João Paulo II presidiu agora à cerimônia de lançamento de um volumoso trabalho de quase 800 páginas, fruto de um simpósio iniciado em 1998 para examinar em toda a extensão e com todas as minúcias os feitos do hediondo tribunal.

Esta condição de tribunal, em teoria uma instituição designada para fazer justiça, é a sua maior aberração porque nos seis séculos de sua existência formal na Europa e na América Ibérica, a Inquisição foi a maior perversão da Justiça produzida até hoje. Criada para acabar com as Inquisições Episcopais estimuladas por reis e senhores feudais iniciadas no século XI, a Inquisição romana simplesmente centralizou, organizou e legitimou um formidável conjunto de crueldades. Em nome da fé, consagrou-se o logro e a mentira. A própria perversidade foi pervertida para parecer piedade. Em Portugal não se dizia que o acusado foi executado, mas ‘relaxado à justiça secular’, isto é, entregue aos carrascos da Coroa.

Ao comentar as conclusões a respeito da pavorosa entidade, o organizador desta devassa, Agostino Barromeo, declarou que apesar das iniqüidades a Inquisição foi mais branda do que se imagina. Na Espanha, ponderou, dos 125 mil processos apenas 1% resultaram em condenações à morte. Não citou Portugal onde os cerca de 31 mil processos produziram cerca de 1.800 executados, o que dá um percentual bem mais elevado.

Barromeo não contou os estropiados pela tortura, os que morriam nos calabouços antes de ouvir a sentença e não contou que quase 100% dos processados perdiam todos os seus bens, alem da humilhação dos Autos da Fé e a obrigação de envergar o sambenito (a ultrajante fantasia de hereje) durante anos, quando fossem à igreja.

A Inquisição no Brasil alongou-se por 242 anos e, ao contrário do que tem sido dito, foram executados em Lisboa 21 brasileiros ou residentes no Brasil, sendo que dois deles queimados vivos (o resto era garroteado e depois, queimado). Impossível computar as dezenas de mortos na viagem ou no cárcere, o montante tétrico dos enlouquecidos, as legiões dos moralmente destruídos.

O pedido de perdão e o piedoso exercício estatístico oferecidos pelo Vaticano não quantificam a vileza que a Inquisição disseminou entre nós. A consagração da delação não foi aferida. Muitos menos as cargas de intolerância e prepotência que até hoje intoxicam instituições e comportamentos. O cala-boca inquisitorial não foi extinto. Está ai, operoso e atento.

O susto do Senado vai passar, ‘Shrek-2’ fez do terror uma piada. A Inquisição ainda é uma realidade.’



MP & CORRUPÇÃO
Carlos Alberto Di Franco

‘Ministério Público e corrupção’, copyright O Estado de S. Paulo, 21/06/04

‘O Ministério Público corre o risco de ser impedido de investigar. O Supremo Tribunal Federal (STF) está para julgar uma ação em que o deputado Remi Trinta (PL-MA) contesta as provas conseguidas contra ele num inquérito do Ministério Público no qual é acusado de ter fraudado o Sistema Único de Saúde (SUS) há quase dez anos. A decisão do STF, seja qual for, criará jurisprudência. O julgamento teve início em outubro de 2003, quando os ministros Marco Aurélio de Mello e Nelson Jobim votaram a favor do parlamentar. Na ocasião, o ministro Joaquim Barbosa pediu vista do processo e, agora, o inquérito voltará ao plenário do Supremo.

O novo presidente do STF, Nelson Jobim, foi taxativo na antecipação do seu voto ao afirmar que, segundo a Constituição, somente a polícia pode conduzir investigações criminais. Curiosamente, Nelson Jobim, o mais político dos ministros do STF, não optou pelo espírito das leis, mas pelo formalismo na interpretação jurídica. Como lembrou recente editorial do jornal O Estado de S. Paulo, é preciso refletir sobre os riscos de um formalismo interpretativo, de um apego à filigrana jurídica que supervaloriza a ‘letra’ da lei, em detrimento de seu ‘espírito’, acabando por cercear, tolher e manietar a instituição que, de forma mais eficaz e notória, combate a crônica impunidade reinante neste país.

De fato, o Ministério Público, em colaboração com a Polícia Federal, tem conseguido esclarecer diversos casos de corrupção. O artigo 129 da Constituição Federal dá ao Ministério Público poderes de promover a ação penal pública – ou seja, de denunciar os investigados à Justiça para abertura de processo criminal. Juristas e entidades de classe afirmam, com razão, que, se a instituição pode acusar os suspeitos, o mais lógico é que possa também investigá-los.

Será que o Ministério Público, que é quem forma as convicções sobre a autoria do crime, não pode fazer diligências para ele mesmo se convencer? – argumenta, em entrevista ao jornal O Globo, o presidente da Associação do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, Marfan Martins Vieira. O procurador-geral de Justiça de São Paulo, Rodrigo César Rebello Pinho, advertiu que existe um movimento para implantar a ‘Lei da Algema’ no Ministério Público. Pinho destacou que, se o STF excluir o Ministério Público do processo investigatório, o reflexo imediato será o questionamento sobre a legalidade e até a anulação completa de apurações, como no caso Celso Daniel, prefeito de Santo André morto em 2002, em meio a denúncias de corrupção e esquema de financiamento de campanhas do PT. Podemos, caro leitor, citar muitos outros casos em que a atuação dos promotores foi fundamental. Basta pensar, por exemplo, na Operação Vampiro, que descobriu fraudes na compra de hemoderivados. Outro caso é o escândalo da construção do Fórum Trabalhista de São Paulo. A descoberta dos desvios da extinta Sudam também foi fruto da parceria dos procuradores com policiais federais. A Operação Anaconda, que desvendou um esquema de comércio de decisões judiciais, também foi investigada pelo Ministério Público.

É verdade que já houve excessos por parte de membros do Ministério Público, quer devidos ao engajamento ideológico ou ao exibicionismo na passarela da mídia. O melhor exemplo foi a incompetente e histriônica atuação do procurador Luiz Francisco de Souza. Mas casos isolados não podem justificar a tentativa de implantar a ‘Lei da Algema’ por meio da ação que corre no Supremo contra a legitimidade da instituição em investigações criminais.

A corrupção é, de longe, uma das piores chagas que maltratam o organismo nacional. Esperemos, todos, que o Supremo Tribunal Federal, instituição exemplar ao longo da História deste país, não decida de costas para a cidadania. É preciso que a sociedade civil, os juristas, os legisladores, você, caro leitor, e todos os que têm uma parcela de responsabilidade na formação da opinião pública façam chegar ao Supremo Tribunal Federal, com serenidade e firmeza, um clamor contra a impunidade e uma defesa contundente do papel do Ministério Público no combate à corrupção. Carlos Alberto Di Franco, diretor do Master em Jornalismo para Editores e professor de Ética Jornalística, é diretor para o Brasil de Mediacción-Consultores em Direção Estratégica de Mídia (Universidade de Navarra) E-mail: difranco@ceu.org.br’



O Estado de S. Paulo

‘Os limites do Ministério Público’, editorial, copyright O Estado de S. Paulo, 20/06/04

‘Haverá um grande retrocesso no combate à corrupção se o Ministério Público (MP) for impedido, por decisão que o Supremo Tribunal Federal (STF) está prestes a proferir, de realizar inquéritos criminais. E pior será se, em razão do acórdão, e com base nele, pessoas que já foram objeto das investigações do Ministério Público e acabaram condenadas reclamarem na Justiça a nulidade das provas contra elas obtidas e, por conseqüência, das sentenças condenatórias.

A questão com que se defronta o Supremo é juridicamente controvertida, como já esclarecemos em editorial anterior, principalmente porque os textos legais, a começar pela Constituição, não proíbem expressamente o Ministério Público de realizar inquéritos criminais – embora sejam bastante específicos ao autorizar o parquet a abrir e conduzir inquéritos civis. Para evitar dúvidas sobre a legitimidade de sua ação, por exemplo, há procuradores, como os integrantes do Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado (Gaeco), de São Paulo, que atuam com a assistência sistemática de um delegado de polícia.

Deve haver, portanto, campo para que o Supremo fixe um entendimento que, na pior das hipóteses, preserve os atos já praticados pelo Ministério Público em defesa do patrimônio público e da moralidade administrativa. Não caberia, no caso, a interpretação literal das leis, mas a sua exegese à luz da evolução da sociedade – em outras palavras, deveria o Supremo pautar-se pela ética da responsabilidade, no sentido weberiano, preocupando-se primordialmente com as conseqüências de sua decisão.

No entanto, qualquer que seja a decisão do Supremo, é preciso regulamentar de forma clara e inequívoca as atribuições investigativas do Ministério Público. Isso pode requerer mudanças amplas no sistema de Justiça que todos – no Executivo, no Legislativo e no Judiciário – relutam em fazer, haja vista os 12 anos de tramitação da reforma do Judiciário. Acabar com a fase do inquérito policial – que, na verdade, tem de se repetir perante o juiz, ocasionando delongas na conclusão do processo – e atribuir aos procuradores as funções que em outros países têm os juízes de instrução podem ser mudanças inalcançáveis na atual conjuntura e a insistência nessas proposituras poderia travar a já emperrada reforma do Judiciário.

Mas o País não pode prescindir dos bons serviços prestados pela maioria dos membros do Ministério Público, o que certamente acontecerá se se buscar aprovar a lei ideal, e não a lei possível. E o que é possível fazer já está delineado num conjunto de normas destinadas a disciplinar as investigações criminais conduzidas pelo Ministério Público, e que se encontra sob exame do Conselho do órgão.

O documento prevê, entre outras coisas, que os procedimentos sejam instaurados por portaria, tendo o procurador encarregado da investigação dez dias para comunicar o fato à Justiça. Os depoentes convocados terão direito à assistência de advogado e os investigados terão amplo acesso ao processo – o que hoje é matéria controvertida – e poderão requerer a realização de diligências.

Mas o documento comporta aperfeiçoamentos. A excessiva autonomia do Ministério Público, quando investiga, tem sido apontada como um risco às liberdades individuais – e, em alguns casos, a atuação de procuradores atrabiliários dá razão às queixas. Abusam, por exemplo, dos prazos de investigações que, ao contrário do que ocorre com o inquérito policial, não têm limites, podendo ocorrer, como de fato já ocorreu, que a vida de alguém seja escrutinada durante quatro anos, sem que se encontrassem indícios ou provas que levassem o investigado à Justiça. As normas em exame pelo Conselho do Ministério Público estabelecem o prazo da investigação em seis meses. O problema é que esse prazo pode ser prorrogado por um número indeterminado de vezes. Além disso, os casos arquivados podem ser reabertos pelo procurador, se surgirem novos indícios ou provas. Ou seja, na prática, não haverá prazo certo e determinado para a conclusão do inquérito, continuando os membros do Ministério Público gozando de uma autonomia que os coloca em posição de ignorar direitos e garantias individuais. E isso não pode acontecer.’