Se há uma notícia absolutamente inconsistente de um ponto de vista científico é a que prevê, para um prazo geralmente entre duas a três décadas, o choque de um asteróide com a Terra, transformando este mundo afetado por guerras, conflitos, demagogia, corrupção e descarada manipulação de informação num inferno definitivo.
Mas o fato de ser inteiramente improvável não significa que esteja fora da pauta das redações.
Na última edição da Veja (nº 1936, de 21/12/ 2005), por exemplo, aparece com destaque, numa página inteira, acompanhado de detalhada infografia, a notícia de que um asteróide em torno de 350 metros de diâmetro (Veja prefere 390 metros), o Apophis, ‘pode se chocar com a Terra em 2036’. O texto está anunciado por uma manchete apocalíptica, bem ao estilo que a revista assumiu nos últimos tempos: ‘Ameaça que vem do céu’.
Uma dissertação de mestrado em jornalismo ou áreas afins, num futuro próximo, talvez acabe desvendando o que ocorre neste momento com a redação da Veja. Até lá, convém prevenir que o choque noticiado pela revista não tem a mínima possibilidade de ocorrer na data anunciada.
Por que essa possibilidade não existe? A resposta é exatamente uma outra pergunta: por que esperaríamos que isso acontecesse, sem tomar nenhuma iniciativa para desvio desse bólido espacial e da destruição que ele provocaria?
Para quem imaginar que se trata de pura ficção o desvio de uma dessas montanhas errantes do Sistema Solar vale a pena lembrar o pouso recente de uma nave japonesa, a Hayabusa, na superfície de um cometa – o Itokawa – para coleta e transporte de material para análise na Terra.
Aperfeiçoamento contínuo
A Terra é bombardeada ininterruptamente por bólidos espaciais. Mas a maioria desses corpos não supera o tamanho de um grão de arroz e são popularmente conhecidas como ‘estrelas cadentes’.
Se essas partículas tiverem tamanho um pouco maior, o choque com a atmosfera produz um ruído semelhante ao de roçar levemente uma superfície, ou mesmo de um assovio como o dos projéteis em bombardeios. Com as dimensões de um automóvel podem deflagrar uma explosão e, dependendo de sua composição, partir em numerosos pedaços que dificilmente serão localizados na superfície da Terra.
O rastro luminoso produzido por esses corpos é chamado pelos astrônomos de meteoro; e se um desses pedregulhos ou paralelepípedos cósmicos sobreviver ao choque com a atmosfera e atingir a superfície, é chamado de meteorito.
Se um choque como o do Apophis é praticamente impossível, levando em conta a antecipação da previsão, por que notícias como essas continuam sendo publicadas?
A resposta mais direta talvez se deva ao fato de que boa parte do conteúdo da mídia não tem outro objetivo senão o de confundir as pessoas, transferindo para os leitores o desconhecimento e a paranóia dos editores responsáveis pela escolha desses conteúdos.
É preciso dizer que o choque com um asteróide pode ocorrer a qualquer momento. Uma dessas montanhas vagantes, com uma centena de metros ou mais, não detectadas pelos programas de vigilância desses corpos, pode causar um estrago que a maior parte das pessoas é incapaz de avaliar.
E foi exatamente isso que aconteceu no vale do rio Tunguska, na Sibéria, em 30 de junho de 1908, quando o que provavelmente era o núcleo de um cometa ou um asteróide, estimado em uma centena de metros de diâmetro, explodiu na baixa atmosfera e calcinou uma vasta região que teve destruída toda sua cobertura vegetal.
Em 13 de agosto de 1930, um evento dessa mesma natureza, mas com menor liberação de energia, ocorreu no vale do rio Curuçá, no Alto Solimões, na Amazônia Ocidental, e foi registrado pelo missionário italiano Fedele D’Alviano, que chegou ao local cinco dias depois. O religioso coletou relatos dos moradores locais ainda traumatizados pela bola de fogo que cobriu o céu e sete meses depois seu relato saiu publicado no jornal do Vaticano, L’Observatore Romano.
Por que é importante que as pessoas saibam que o choque com um asteróide pode ocorrer a qualquer momento (em termos astronômicos, evidentemente, o que não significa daqui a meia hora), mas o impacto de um desses corpos, com décadas de previsão, não passa de embromação?
A importância está na melhoria do sistema de vigilância de asteróides, especialmente em várias centenas deles que passam pelas proximidades da Terra (quase sempre além da órbita da Lua, a aproximados 400 mil quilômetros de distância, ainda que no final do século passado ao menos um deles tenha cruzado o espaço Terra-Lua).
O aperfeiçoamento contínuo desses sistemas de observação do espaço passa por uma sensibilização de governos e da própria comunidade científica, com a participação bastante ativa de astrônomos amadores. Isso significa dizer, entre outras coisas, que quanto mais telescópios estiveram ao alcance de uma parcela educada da população – os astrônomos amadores –, mais promissora a descoberta de novos asteróides e cometas.
Sopa de embustes
Em relação aos choques anunciados com décadas de antecedência, no entanto, as pessoas devem saber que existem projetos para anular essas ameaças. Desde mísseis armados com ogivas nucleares capazes de desviar suas rotas por ondas de choques produzidas pelas explosões, até naves que estão sendo desenvolvidas para este fim. Uma nave poderá atracar-se com um desses bólidos a grandes distâncias da Terra para desviar suas rotas ameaçadoras no futuro próximo.
Por enquanto, notícias de choque com um desses bólidos – por volta de 2036, como seria o caso do Apophis – certamente não passam de extrapolação do ambiente de terror que costuma predominar em muitas redações, o que demanda uma abordagem psicanalítica para ser devidamente interpretada.
Ainda assim, a pretensa ameaça do Apophis já rendeu outras interpretações (na direção oposta do terrorismo) de humor inteligente. É o caso da publicação online Avant News, Tomorrow’s News Today, que registra a vaporização de Pat Robertson pelo asteróide numa passagem anterior pelas proximidades da Terra (também num dia 13), em abril de 2029.
Para quem não conhece Mr. Marion Gordon ‘Pat’ Robertson, trata-se de uma figura no mínimo controvertida que integra das hostes do Partido Republicano do presidente George W. Bush, e que recentemente sugeriu o assassinato como forma de se resolver o incômodo representado por Hugo Chávez na Venezuela.
Pat Robertson, como é conhecido popularmente (‘Pat’ veio de um apelido familiar de fundo algo cômico para substituir o Marion, que ele julga um tanto afeminado) é o fundador e anfitrião, entre outros, de um programa de TV, o The 700 Club, exibido em cadeia nos Estados Unidos e no exterior. Com forte base religiosa entre os batistas, no Sul dos Estados Unidos, onde a guerra ao Iraque teve entusiástico suporte, ao menos nos primeiros momentos, Pat Robertson é um crítico ferrenho de questões há muito superadas, caso de comunistas e homossexuais.
Na versão bem-humorada do Avant News, Tomorrow’s News Today, o Apophis teria vaporizado Pat Robertson ‘num ato de Deus’, enquanto ele devorava sucrilhos de milho diluídos num prato de sopa na casa onde viveu desde 2008. Citando testemunhas oculares, o Avant News garante que ‘o demagogo’ foi a única vítima do impacto do asteróide e vaporizou-se completamente com o choque.
Como se vê, em vez de ‘ameaça que vem do céu’, como previne Veja, ao menos em relação ao asteróide Apophis a realidade sugere tratar-se mais de uma sopa de embustes que de razões concretas para preocupar as pessoas.
Até porque, poupar os leitores de catástrofes que podem ser evitadas e que por isso mesmo nunca serão consumadas, é o mínimo que se pode fazer neste final de ano, quando um algum afeto leva boa parte de nós a desejar, uns aos outros, feliz natal e próspero ano novo.