O jornalismo declaratório e oficialista mais uma vez triunfa na área de ciência com a cobertura da decisão judicial contrária ao ensino do ‘Intelligent Design’ na cidade de Dover, na Pensilvânia (EUA). Em vez de promover um amplo questionamento das teses criacionistas – ou melhor – em vez de encostar na parede os proponentes dessa teologia travestida de ciência, a grande imprensa se limita a ouvir burocraticamente os dois lados envolvidos.
Já posso antever as mesmas desculpas de sempre, do tipo ‘não cabe à imprensa decidir quem está com a razão’. Não se trata disso, mas sim de aproveitar uma oportunidade ímpar de confrontar com os defensores do ‘Intelligent Design’ diversos questionamentos formulados a essa proposta nos últimos anos. Que fique bem claro: não estou propondo que jornalistas se manifestem opinativamente, mas que levantem questões de fundo.
Não fugiram a esse padrão nem mesmo jornalistas como Laurie Goodstein, do The New York Times, que entraram em contato com os pesos-pesados do ID, como Michael Behe e William Dembski, ambos da entidade criacionista Discovery Institute. [Judge Rejects Teaching Intelligent Design (Laurie Goodstein, The New York Times, 21/dez/2005)].
Episódios como este geralmente mostram como falta ao chamado jornalismo científico o espírito investigativo. Alguém poderia imaginar, na cobertura do ‘mensalão’, que os repórteres se limitariam a registrar burocraticamente as acusações e justificações entre parlamentares, publicitários e dirigentes de partido? Certamente, não. E por que isso tem de acontecer na cobertura de temas científicos?
Apuração burocrática
Longe de mim bancar o defensor da cientificidade. Há muito tempo que tenho me tornado cético inclusive com a própria ciência. Mas não dá para entender a passividade de profissionais especializados na cobertura de ciência diante da fragilidade dos argumentos criacionistas. E, apesar da lavada que tomaram na Justiça, parece que certos defensores do ‘Intelligent Design’ se mostram seguros de ter alternativas de luta, como Dembski, em entrevista a Goodstein, no NYTimes:
‘I think the big lesson is, let´s go to work and really develop this theory and not try to win this in the court of public opinion. The burden is on us to produce.’
Não sou o único a reclamar dessa omissão dos jornalistas da área de ciência, e estou bem acompanhado. Outro blogueiro, mas muito mais habilitado do que eu para falar de ciência, pega nesse mesmo ponto. É Carl Zimmer, em seu blog The Loom, em seu post The Big Fact-Check: Thoughts On the Day After Dover. Recomendo a leitura.
No Brasil, o primeiro destaque para o assunto veio da BBC Brasil [Juiz dos EUA proíbe ´desenho inteligente´ em escola pública]. Em sua edição de quarta-feira (21/12), o Estado de S.Paulo mencionou que ‘… escolas estaduais do Rio incluíram lições criacionistas no ano passado. A governadora Rosinha Garotinho, evangélica, já disse não acreditar na teoria de Darwin’. [Evolução vence criacionismo em processo nos EUA O Estado de S. Paulo, 21/dez/2005, pág. A-18)]. Isso nem sequer foi comentado no carioca O Globo na matéria Juiz bane criacionismo de escolas americanas (O Globo, 21/dez/2005).
E, já que é só para ouvir nem que seja burocraticamente os dois lados, por que, até agora, nenhum jornalista brasileiro da chamada grande imprensa se dignou a perguntar à governadora do Rio de Janeiro ou a alguém de sua equipe o que acha da decisão do juiz federal John E. Jones III? [Postado em 21/12/2005]
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Jornalista