Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

DNA na berlinda

Duas abordagens saíram no OI sobre a genética e os dilemas na decodificação do DNA. Nas duas sua importância é minimizada e se atribui à mídia a culpa pela visão exagerada sobre o assunto. Na primeira, de 9/3/2004, o biólogo e professor de Ciências Felipe Bandoni critica o ufanismo na imprensa com a genética. Na segunda, em 30/3/2004, Paulo Lima faz entrevista com o jornalista Claudio Julio Tognolli, na qual se insinua que o jornalismo científico segue interesses comerciais.

No século 17, Anton van Leeuwenhoek (1632-1723) iniciou a investigação do mundo microscópico. Mais de 100 anos depois, Louis Pasteur (1822-1895), entre 1857 e 1863, destruiu a teoria da geração espontânea. Mas só no século 19, em 1877, Robert Kock (1846-1910) provou, pela primeira vez, que a causa de uma doença era uma bactéria especifica, ao estudar o carbúnculo hemático (Bacillus anthracis). Em 1882 ele descobriu o bacilo da tuberculose como causador da doença. Sir Alexander Fleming (1881-1955), bacteriologista do St. Mary’s Hospital, de Londres, só descobriria a penicilina, acidentalmente, em 1928 – o primeiro de uma enorme gama de antibióticos. Mas, somente em 1940 atingiria a produção industrial. Demonstração de que a escalada é lenta, mas as portas do conhecimento possibilitam que se vá avançado desta forma. (E há homeopatas que defendem que as doenças advêm do pecado original. Os "alternativos" acreditam que elas se devem a entupimentos de canais invisíveis só desbloqueados por agulhas…)

Na época, evidentemente, passou-se a cogitar a origem infecciosa de todas as doenças. Mas isso não impediu que o conhecimento evoluísse. Hoje sabemos que nem tudo é infeccioso. Aprendemos a enfrentar as infecções de forma mais racional do que pela especulação mágica, fazendo o diagnóstico, investigando tratamentos e meios de produzir soros e vacinas. Assim como na mesma época deste desenvolvimento da microbiologia se estabeleceu o espiritismo em Paris (1857), inspirado em Samuel Hahnemann (1755-1843) como alívio dos males, e a psicanálise como uma promessa de explicar tudo pelo comportamento. Transcorrido todo este tempo, a microbiologia evoluiu extraordinariamente. As duas outras, apenas discurso.

O mesmo deve suceder com a genética e o DNA. Não podemos desprezar sua importância para a nossa vida. Apesar de ainda nos considerarmos seres à parte na criação, dotados de inteligência e poder, estimulados pela visão mística e psicanalítica, não podemos negar que nos últimos quatro bilhões de anos o que conduziu um amontoado de aminoácidos até aqui foi a determinação genética. O que determinou a supremacia do homo sapiens sobre o homem de Neanderthal certamente estava nos genes. Muito pouco foi devido a nossa capacidade de raciocínio, algo extremamente recente na evolução da vida na Terra. E dificilmente vamos ficar independentes dela tão cedo. Mas só conseguiremos avançar usando o conhecimento sistematizado destas informações. Quais os reais alcances destas descobertas só saberemos mais tarde.

Até a memória da água

Não vejo na prática esta afirmação de que a genética esteja sendo apregoada como a resposta final. Tenho até criticado insistentemente a pouca consistência da abordagem científica, como a volta da "medicina" espiritual e as buscas de "alternativas" ao método científico para tratamento. Concordo em que agimos como qualquer bactéria irracional e primitiva que consome seu substrato até o esgotamento total – como demonstram as guerras, o terrorismo. Apenas supomos que a inteligência nos dá direitos sobre a natureza, e que não mais precisamos a ela nos curvar. Que o que não é útil (antropocentricamente falando) é dispensável.

Mas discordo do professor Felipe Bandoni quando critica a decifração do código genético do Schistosoma mansoni pela universidade. Não é culpa do pesquisador se o poder público não emprega o conhecimento atual para erradicar a "barriga d’água", típica de países subdesenvolvidos, sem saneamento básico, pois o verme chega ao corpo humano após seu contato com as chamadas "lagoas de coceira". Cabe ao poder público cumprir seu papel. Deve-se culpar o pesquisador de sementes pelo desperdício de alimentos na cidade, que por isso não deveria procurar variedades novas? Se crítica existe, e existe, cabe ao campo das decisões políticas. Seriam dois assuntos separados. Um, o jornalista divulgar a ciência, outro a crítica não à pesquisa, mas ao uso inadequados de programas de saúde pública.

Certa vez disseram a Thomas Alva Edison (1847-1931): "O senhor colecionou 2 mil fracassos antes de inventar a lâmpada". Ao que Edson respondeu: "Não. Eu aprendi 2 mil maneiras de como não se inventar a lâmpada". Não há fracassos. São experiências necessárias à vida e à evolução.

É difícil criticar o jornalista por desconhecer ciência quando as próprias agências brasileiras de fomento à pesquisa, como Fapesp e CNPq, "têm seguido essa lógica absurda do carreirismo científico sem objetivo", financiando trabalhos sobre espiritismo ou sobre a memória da água, muito piores que genoma ou seqüenciamento, tentando achar chifre em cabeça de burro. Se o próprio Conselho Federal de Medicina defende a memória da água, desacreditada no mundo, e diz que homeopatia é uma especialidade médica, quando isso contraria todo o conhecimento médico, não será o jornalista que estará acima dos mortais.

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