Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Janio de Freitas

‘Os principais adversários de Leonel Brizola vão se perdendo nas entrelinhas da história. Alguns deles chegaram a níveis muito altos de importância política em seu tempo, mas não se fizeram marcar como personagens da grandeza ou da tragédia de um momento que a história não consiga esquecer. O levante iniciado e liderado por Brizola em defesa da legalidade constitucional e do regime democrático contra o golpe que as Forças Armadas perpetravam, em 1961, é um dos momentos épicos que demarcam a história, indeléveis e quase sempre únicos.

Um governador que lá do último sul ousa dizer ‘não aceito’ às Forças Armadas do país todo, e só com a sua polícia militar inicia uma resistência cuja convicção conquista parte dos militares estacionados no Estado, e vence afinal -essa é uma cena a que ninguém pode negar o lugar de culminância na penosa luta pela democracia no Brasil. Culminância diferente da outra, a resistência armada à ditadura, porque não se nutriu de razões ideológicas, do projeto de revolução social, mas tão só da legalidade e da democracia como expressa na Constituição.

A coragem pessoal e política de Brizola já lhe reservaria um lugar especial no último meio século brasileiro. Mas a lealdade que teve às suas idéias, por tanto tempo, é outra característica pessoal e política sem paralelo entre os seus adversários e aliados. Em outro aspecto, o da lisura, não seria caso isolado, mas é caso único em um sentido: ninguém teve a vida mais esmiuçada pelos Inquéritos Policiais Militares, às dezenas, algumas investigações por mais de dez anos; nenhum governador foi jamais tão espionado, grampeado, seguido, investigado quanto Brizola quando governador do Rio -e nada, nunca foi encontrado sequer vestígio de improbidade.

O esquerdismo de Brizola era, sobretudo, o nacionalismo. Integral, inviolável, o nacionalismo que, se igual nos militares com seu mito de patriotismo, os levaria a vê-lo como aliado. Odiaram-no como a nenhum outro político, nem Getúlio, nem mesmo Jango. Nacionalismo que deveria ser um ponto de aceitação de Brizola pelos comunistas. Abominaram-no como abominavam Lacerda. Mas, nesse caso, houve certa reciprocidade: a Brizola parecia intolerável a íntima relação de Jango com os comunistas, à qual atribuiu, já na época e até o fim, parcela muito grande da deterioração que antecedeu o golpe de 64. Àquela relação atribuiu, também, uma parte de sua própria radicalização no decorrer do governo de Jango, sendo a outra parte devida ao pressentimento de golpe da direita. Brizola imaginava conter o que considerava as duas ameaças.

Todo chefe político é um tanto caudilho, mas Brizola não cuidava de ao menos disfarçar esse componente, antes o exercia com evidência plena. Nas questões que tivesse como secundárias, fez política com o mesmo humor que exercia no convívio. Nas divergências que punham em questão assuntos a seu ver primordiais, foi sempre capaz de passar do gaiato ‘sapo barbudo’ ao ‘traidor’, e coisas assim, sem a menor complacência.

Mas não tinha um traço comum aos caudilhos: Brizola não era vingativo. Durante seu primeiro governo no Rio, teve que enfrentar, ou suportar, um canhoneio terrível do sistema Globo. Vinha de longe, além das divergências políticas, a inimizade de Roberto Marinho e Brizola. Ao assumir o segundo governo, Brizola encontra um fato surpreendente: o Projac, o grande centro de produção de novelas e seriados da TV Globo na Barra da Tijuca, estava em finalização, mas fora construído sem o obrigatório exame de impacto ambiental. Estava erguido em área onde o plano urbanístico proibia aquele tipo de construção e de atividade. Brizola repeliu o prato de vingança que alguns lhe mostravam, com a possibilidade de arruinar o investimento gigantesco do grupo Globo. Em vez disso, buscou um modo de legalizar o Projac.

Convencido de que a linha dura tentaria outro golpe ao fim do governo Figueiredo, Brizola chegou a propor a extensão do mandato do general. Foi dos primeiros a integrar a campanha das diretas, mas o gesto anterior ficou como cobrança inesquecível. Obcecado com problema da infância em geral e da infância pobre em particular, achou que investimentos de Collor na multiplicação de Cieps, os centros de educação integral, justificariam seu apoio a uma Presidência lamentável. O gesto ficou para cobranças que o acompanharam desde então.

Brizola nunca pediu, nem precisou fazê-lo, que esquecessem o que disse ou escreveu. Nunca traiu o que ofereceu aos eleitores como seu governo. Entre seus erros e acertos estiveram sempre a franqueza com os outros e a lealdade a si mesmo.

Brizola foi um homem sofrido de uma vida bonita.’



Patrícia Villalba

‘Livro disseca mito do brizolismo’, copyright O Estado de S. Paulo, 23/06/04

‘Duas boas análises da figura de Leonel Brizola e sua longa trajetória na política brasileira estão em Brizolismo, de João Trajano Sento-Sé e A Rebelião da Legalidade, de Vivaldo Barbosa. Ambos foram lançados pela FGV Editora.

Em Brizolismo (R$ 34, 368 páginas), João Trajano descreve a saga brizolista inserida no debate sobre os rumos da política brasileira. Brizola, diz o autor, foi um líder carismático que propagava promessas messiânicas da salvação nacional.

Num contexto mais amplo, em A rebelião da Legalidade (R$ 48, 368 páginas), Vivaldo Barbosa detalha e analisa a renúncia de Jânio Quadros à Presidência da República e suas implicações – o Golpe de 64, a principal delas. A turbulência política é registrada passo a passo por Barbosa, que atuava como repórter na época. Na resistência cívica à tentativa de impedir que o vice de Jânio, João Goulart, assumisse a Presidência estava Brizola, comandando a Rebelião da Legalidade.’



O Estado de S. Paulo

‘O último caudilho’, Editorial, copyright O Estado de S. Paulo, 23/06/04

‘Leonel de Moura Brizola foi o herdeiro político de Getúlio Vargas – e ambos foram produtos da cultura política hispano-americana, centrada na figura do caudilho. Durante mais de um século, essa cultura marcou a ferro e fogo a peculiar história do Rio Grande do Sul, como havia marcado a da vizinha Argentina, provando, para muitos, que geografia é destino. Por isso, a mentalidade, o temperamento, as escolhas políticas e a conduta do homem público Brizola são inextricáveis da tradição caudilhesca – o poder enfeixado por líderes autocráticos, dotados de carisma pessoal, prontos a recorrer a extremos de violência e a utilizar o Estado para nele se perpetuarem.

As raízes mais profundas do getulismo e do brizolismo estão descritas em dois clássicos. O primeiro, de 1845, é do argentino (então exilado no Chile) Domingos Faustino Sarmiento. Civilización y barbárie faz a anatomia do caudilhismo, contando a vida de Don Facundo Quiroga, o principal suporte do caudilho Juan Manuel de Rosas, que governou a Argentina com implacável ferocidade entre 1835 e 1852. A segunda obra, naturalmente, é a do gaúcho Érico Veríssimo. A trilogia O tempo e o vento, terminada em 1962, reconstitui a história do Rio Grande, ensangüentada pelos conflitos entre os maragatos de lenços vermelhos (um dos símbolos do PDT), partidários de Julio de Castilhos, e os chimangos de lenços brancos, partidários de Borges de Medeiros, que sucedeu Julio de Castilhos no governo do Estado.

Hoje, o universo político gaúcho mal guarda vestígios de suas origens. No lugar de disputas armadas entre caudilhos personalistas, o que prevalece no Estado é o confronto democrático entre partidos estruturados, a começar do PT, que conquistou o eleitorado brizolista, enquanto o seu líder migrava para o Rio de Janeiro. É absoluto o contraste entre essa formidável mudança e as imutáveis convicções de Leonel Brizola. Se uma coisa é sinônimo de modernização, a outra é sinônimo de reacionarismo – embora exprimindo, no caso em foco, um atributo pouco comum na vida pública brasileira. Este jornal, que sempre se opôs a tudo que o getulismo representou e o brizolismo encarnava, jamais deixou de respeitar a autenticidade de Brizola.

Sua fidelidade às próprias idéias, e a coragem de lutar por elas, revelaram-se lesivas aos seus próprios interesses, ao empurrá-lo para longe das correntes centrais do pensamento nacional, exaurindo, portanto, o seu patrimônio de liderança. A rigor, Brizola pereceu eleitoralmente em 1994 – o ano do Real e da eleição de Fernando Henrique. Ele ficou em quinto lugar no pleito, com humilhantes 3,2% dos votos. Nunca mais se recuperou nas urnas, embora tenha sabido tirar proveito da tradição populista da política fluminense, que o PT não conseguiu suplantar. Hoje no PMDB, o ex-governador Anthony Garotinho deve a Brizola a sua ascensão no PDT. Mas é improvável que o partido sobreviva ao seu criador e manda-chuva.

Naquele mesmo ano de 1994, Brizola deu talvez a melhor prova de que simplesmente não conseguia ver o tempo passar. Disse, à época, numa referência ao capital estrangeiro: ‘O Brasil virou o país dos negócios da China porque nem a China quer mais esses negócios.’ Na realidade, desde as reformas de Deng Xiaoping, iniciadas ainda nos anos 1970, a China só ansiava por esses negócios. E o bordão de Brizola – as ‘perdas internacionais’ do Brasil – se tornou motivo de piada. (Outro gaúcho que padeceu do mesmo mal foi o dirigente comunista Luiz Carlos Prestes. Ao falecer, nonagenário, ele ainda achava que a humanidade marchava para o socialismo e se imaginava marxista, não tendo ido além do positivismo.) Brizola se proclamava nacionalista e democrata. O problema é que essas categorias nunca estiveram juntas no caudilhismo brasileiro e latino-americano, nem na política de massas de Vargas e Perón – e, hoje, Hugo Chávez – que engendrou. O mesmo Brizola arauto da ‘legalidade democrática’ em 1961, na crise da renúncia de Jânio Quadros, foi um admirador confesso e prosélito da ditadura Vargas, com a sua Constituição fascista e a rotina de suas bárbaras torturas. No governo do cunhado João Goulart, o seu desapreço pelas instituições democráticas chegou ao auge na pregação das chamadas reformas de base ‘na lei ou na marra’. É impossível subestimar a sua contribuição para o golpe militar de 1964.

É impossível também omitir que, quaisquer que tenham sido os seus êxitos econômicos, o nacional-desenvolvimentismo autoritário foi um obstáculo não menor do que as velhas oligarquias ao desenvolvimento político-institucional do Brasil. Eis por que o último caudilho brasileiro não deixou outro legado respeitável além da coerência pessoal e da coragem de tomar atitudes.’