‘Acabo de reler um texto belíssimo e de grande atualidade: A imprensa e o dever da verdade, de Ruy Barbosa. Recomendo-o vivamente a todos os que se preocupam com a ética informativa e as relações entre o jornalismo e o poder. Não resisto, caro leitor, à vontade de aguçar sua curiosidade.
‘A imprensa’, dizia Rui Barbosa, ‘é a vista da Nação. Por ela é que a Nação acompanha o que lhe passa ao perto e ao longe, enxerga o que lhe malfazem, devassa o que lhe ocultam e tramam, colhe o que lhe sonegam, ou roubam. (…) O poder não é um antro: é um tablado. A autoridade não é uma capa, mas um farol. A política não é uma maçonaria, e sim uma liça. Queiram, ou não queiram, os que se consagraram à vida pública, até à sua vida particular deram paredes de vidro. Agrade, ou não agrade, as constituições que abraçaram o governo da Nação pela Nação têm por suprema esta norma: para a Nação não há segredos; na sua administração não se toleram escaninhos; no procedimento dos seus servidores não cabe mistério; e toda encoberta, sonegação ou reserva, em matéria de seus interesses, importa, nos homens públicos, traição ou deslealdade aos mais altos deveres do funcionário para com o cargo, do cidadão para com o país.’
Pois bem, caro leitor, um abismo separa os ideais de Ruy Barbosa dos usos e costumes da Ilha da Fantasia. Recentemente, quase que à surdina, deputados aprovaram em votação simbólica a Medida Provisória 228, que dá ao governo o poder de manter documentos classificados como ultra-secretos indefinidamente sob sigilo. Uma laje de chumbo protegerá os documentos que possam ameaçar ‘a soberania, a integridade territorial nacional ou as relações internacionais do país’. Até aí, nada contra. Afinal, há circunstâncias em que documentos públicos precisam ser mantidos em segredo. Impõem-se, contudo, algumas condições: a exceção ao princípio da publicidade dos atos de governo deve ser excepcional, e o sigilo não deveria estender-se além de um prazo claramente fixado em lei. A medida provisória, no entanto, entrega a uma comissão do próprio governo decidir quais são esses documentos e, ademais, não determina que essa comissão estabeleça um novo prazo. Quer dizer: o segredo pode eternizar-se.
O secretismo de Estado é um perigo para a democracia. Governos, independentemente de seu colorido ideológico, sucumbem, freqüentemente, à tentação do autoritarismo. Como lembrei neste espaço opinativo, em passado recente (no governo Fernando Henrique Cardoso), imprensa e Ministério Público foram ameaçados com tentativas de aprovação da chamada Lei da Mordaça. O PT, então, usava e abusava de seu poderoso estilingue contra as vidraças do Palácio do Planalto. Lei da Mordaça, nem pensar. E as CPIs, que se multiplicavam como coelhos, eram defendidas como instrumento indispensável no combate à corrupção. Agora, instalado no poder, a coisa mudou. Abertura de CPI virou conspiração para derrubar o governo. E a Lei da Mordaça se transformou em ‘instrumento legítimo para controlar a irresponsabilidade da mídia e dos promotores’.
A sociedade assiste, agora, às tentativas de ocultar supostas relações entre o PT e as Farc, grupo guerrilheiro colombiano ligado ao narcotráfico, com o manto protetor do segredo de Estado. Em reunião com parlamentares, o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Jorge Armando Félix, e o diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), delegado Mauro Marcelo de Lima e Silva, confirmaram a existência de um documento oficial que registra uma promessa de doação de US$ 5 milhões para a campanha presidencial, em 2002. O documento, registrado com o n.º 0095, é de abril de 2002 e integra os arquivos da Abin. Não sei se, de fato, o PT e as Farc acertaram seus ponteiros. O que me parece absurdo, e suspeito, é procurar encerrar o assunto com o carimbo de segredo de Estado. O governo deveria ser o primeiro a estimular uma autêntica investigação sobre o suposto esquema.
O princípio da presunção da inocência deve ser garantido, mas não à custa da falta de transparência. O princípio constitucional da publicidade, pelo qual qualquer cidadão tem direito a obter das autoridades públicas informações de interesse pessoal e geral, é, na expressão do ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), ‘verdadeira pedra angular sobre a qual se edifica o Estado Democrático de Direito, pois a exigência de transparência na prática governamental qualifica-se como prerrogativa inalienável que assiste a todos os cidadãos’.
A informação é a base da sociedade democrática. Precisamos, sem dúvida, melhorar, e muito, os controles éticos da notícia, combater as injustas manifestações de prejulgamento, as tentativas de transformar a mídia em palanque ideológico ou passarela para o desfile de vaidades, eliminar a precipitação que pode desembocar em autênticos assassinatos morais. Mas, ao mesmo tempo, não podemos deixar de criticar as tentativas de cerceamento do dever ético da investigação. O sistemático veto do PT à instalação de CPIs e às ações do Ministério Público para investigar supostas irregularidades não contribui para a imagem do governo. Basta pensar, por exemplo, na hipersensibilidade do partido às apurações dos casos Waldomiro e Celso Daniel.
O III Encontro Regional sobre Liberdade de Imprensa, organizado pela Associação Nacional de Jornais (ANJ) com o apoio da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), marcará o lançamento da Rede em Defesa da Liberdade de Imprensa na Região Sul. O evento ocorrerá no dia 11 próximo, em Porto Alegre. O tema do encontro será ‘Acesso à Informação Pública’. A reflexão, certamente, contribuirá para projetar um facho de luz nas nem sempre fáceis relações entre o jornalismo e o poder.
Carlos Alberto Di Franco, diretor do Master em Jornalismo, professor de Ética da Comunicação e representante da Faculdade de Comunicação da Universidade de Navarra no Brasil, é diretor da Di Franco – Consultoria em Estratégia de Mídia Ltda. E-mail: difranco@ceu.org.br’
JORNALISMO ‘INCORRETO’
‘A revelação’, copyright Folha de S. Paulo, 27/03/05
‘Uma das compreensões mais difíceis no jornalismo, e apesar disso das mais necessárias, é a de que o jornalista sempre será mal visto por um dos lados da questão abordada. Não há notícia, em princípio, que não contrarie posições de interesse ou de opinião em parte dos leitores. De comentário, então, nem se fale.
O jornalista que procura fugir à sina da profissão -nos níveis elevados das redações talvez sejam ampla maioria- não está fazendo jornalismo. Hoje em dia, porém, está amparado pela invenção marota do ‘politicamente correto’. Expressão que mais serve à cobrança dos outros do que a práticas, sobretudo as veladas, mas nem sempre desconhecidas, do próprio cobrador.
Grande parte do desagrado causado é incapaz de produzir, no jornalista, mais do que indiferença. É o caso, por exemplo, das notícias e comentários que levantam a fúria dos autores de improbidades, os cínicos das concorrências fraudadas, os trapaceiros da política. Muito além da indiferença, certo tipo de jornalistas até extrai algum prazer dessas revelações e da reação dos atingidos. Outros somos tomados, e quase nunca sabemos esconder, de indignação em dose dupla. Pela persistência infindável de tais fatos e pela repugnância implícita no tema.
O jornalismo não inclui intenções. Não se explica a priori. O fato esteve ali, a notícia que o relata está aqui, eventualmente segue-os um comentário. O esclarecimento sobre o ato jornalístico excede o jornalismo. Suas razões podem ser éticas, judiciais, memorialísticas, sentimentalistas, e por aí afora. Luís Nassif me conduz a algumas dessas razões. Dizia, há poucos dias, um artigo seu em homenagem a Dilson Funaro, ‘O Dom Quixote da Nova República’, ministro da Fazenda no governo Sarney:
‘Enquanto o cruzado durou, a figura de Funaro se impôs majestosa. Primeiro, o plano em si, primeira tentativa de domar a superinflação que atrapalhava havia anos a vida do país. Depois, a revelação -feita pelo jornalista Janio de Freitas- de que Funaro padecia um câncer linfático fatal. Finalmente, a própria atitude do ministro, seu ar confiante, a maneira segura, sem rompantes e sem vacilações com que se conduzia (…)’.
Com o tempo, o engano sobre ‘a revelação’ é compreensível, mas não fiz referência, nem havia motivo para fazê-lo, a ‘câncer fatal’. O que aqui importa, porém, são os antecedentes do episódio.
Dilson Funaro vivia ainda os anos da vigilância que se segue à cura de um câncer, quando surgiram sinais de ressurgimento da doença.
Houvesse ou não, e suspeito que sim, relação entre um fato e outro, Funaro vinha lutando conturbada e desesperadamente, em termos administrativos e pessoais, contra o arruinamento acelerado do Plano Cruzado. Decidiu esconder a doença incipiente, convicto de que, do contrário, comprometeria, com a provável imagem de fragilidade, a segurança e o vigor do próprio plano e do esforço para preservá-lo.
Funaro preferiu não se expor plenamente ao tratamento, no entanto de necessidade urgente. À convicção de Funaro opôs-se, entre as poucas pessoas cientes do seu estado e da sua determinação, a idéia de que era preciso forçá-lo a tratar-se, e isso só se faria pela remoção do obstáculo que amparava sua recusa: o sigilo. Por motivos muito diferentes, Dilson Funaro repetia o comportamento do general Figueiredo quando, na Presidência, recusava-se a licenciar-se para a indispensável cirurgia cardíaca.
Lutei comigo por dois ou três dias, entre aceitar ou recusar a responsabilidade de fazer, com todo o cuidado possível nas circunstâncias, a notícia lastimável. Mas não havia senão uma conclusão a chegar: o sacrifício de Dilson Funaro não fazia sentido algum, o cruzado em deterioração não poderia ser uma causa à altura da vida de Funaro, então pendente da imediata aceitação do tratamento.
Publicada na Folha, só ao final do dia Funaro se manifestou. E o fez com elegância e coragem extraordinárias: a notícia era verdadeira, ele iria tratar-se e a sua atividade em defesa do Cruzado não sofreria redução alguma.
Funaro continuou no ministério e não o deixou, bem mais tarde, por causa da doença ou do tratamento, mas porque o então presidente Sarney considerou, também sob pressão de Ulysses Guimarães, que mesmo o Plano Cruzado 2 fracassara irremediavelmente e era preciso um novo ministro da Fazenda.
‘A revelação do câncer’ de Funaro foi ‘politicamente incorreta’. Ainda hoje, quando lembrada, me sujeita à sina pior do jornalismo. Dilson Funaro, porém, jamais me deu sequer um sinal nesse sentido.’
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
‘Chegando na ditadura’, Editorial, copyright O Estado de S. Paulo, 27/03/05
‘Ícone do último Fórum Social Mundial, para cujos participantes ‘um outro mundo é possível’, permanentemente cortejado pelo governo do PT, que o considera um dos maiores aliados no jogo político internacional e candidato a sucessor de Fidel Castro como principal produtor de ladainhas contra o ‘imperialismo’ e o ‘neoliberalismo globalizante’, o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, acaba de dar mais uma demonstração do que o autoritarismo dito ‘progressista’ é capaz de fazer, em matéria de asfixia das liberdades fundamentais. Desta vez, usando como pretexto a reforma do Código Penal de seu país, ele criou novos tipos de delito, entre os quais o ‘crime de ofensa a autoridades’, com sanções que vão da cobrança de multa a 30 meses de prisão.
Já em vigor, o novo código prevê penas de até oito anos de cadeia para quem fizer passeatas, e de um a três anos para quem participar dos chamados ‘panelaços’, ofendendo, segundo a interpretação de qualquer guarda de esquina, a ‘honra ou a reputação’ de funcionários públicos. Aprovada por um Congresso dominado pelo Movimento Quinta República, controlado com mão-de-ferro por Chávez, essa ‘reforma’ jurídica também restringiu o direito de opinião e a liberdade de imprensa, ameaçando quem criticar o governo e os jornais que publicarem as críticas.
O dispositivo mais ilustrativo dessa nova ofensiva autoritária de Chávez – que em 2004 já levara o Legislativo, que lhe dá tudo o que pede, a aprovar uma Lei de Responsabilidade Social dos Meios de Comunicação, proibindo debates políticos pela televisão antes das 23 horas, sob a justificativa de que ‘distorcem o noticiário’ – é a redação dada ao artigo 148 do Código Penal: ‘Quem ofender de forma verbal ou por escrito, ou de qualquer outra maneira faltar com o respeito ao presidente da República, ou a quem estiver a cargo do país, será castigado com prisão de 6 a 30 meses se a ofensa for grave, e com metade da dita condenação se a ofensa for leve.’
Muitos parlamentares e jornalistas que já vinham pensando duas vezes antes de se expressar para não serem processados prometeram argüir a inconstitucionalidade desse artigo no Supremo Tribunal de Justiça. Mas, como Chávez já interveio no Judiciário, nomeando 80% dos juízes e ampliando de 20 para 32 o número de membros daquela corte, nem a oposição acredita no sucesso dessa ação. Ao contrário, diante da subserviência da magistratura ao Executivo e da definição propositadamente vaga dos novos delitos de ‘ofensa às autoridades públicas’ que, por isso, podem ser interpretados ao sabor das conveniências do presidente, seus críticos cogitam de apelar para a Sociedade Interamericana de Imprensa e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
Diante da atração que Chávez exerce sobre alguns setores do governo do PT, é preciso que o presidente Lula tome todo o cuidado para não se deixar levar por eventuais propostas inspiradas nas medidas adotadas por seu colega venezuelano para reduzir os espaços democráticos em seu país. Esse perigo foi evidenciado em 2004, com a divulgação dos projetos de criação do Conselho Federal de Jornalismo e da Agência Nacional de Cinema e do Audiovisual. Além de terem sido justificados em nome do ‘equilíbrio democrático’ e da ‘formação da cidadania’, como as ‘reformas’ de Chávez, eles se caracterizavam pela imprecisão conceitual de seus artigos, o que daria enorme poder discricionário aos burocratas do Executivo. O mesmo risco também pode ser visto este ano, com a tentativa de alguns ocupantes do Palácio do Planalto de desqualificar uma pesquisa de sólida base técnica sobre desnutrição e obesidade e que, numa clara demonstração de censura, resultou na proibição ao acesso prévio da imprensa aos levantamentos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
Censurar a imprensa, manipular fatos e intimidar críticos é uma velha estratégia dos regimes autoritários. Com seus expedientes para instituir um regime autoritário por meio de leis aprovadas por congressistas submissos, Chávez está mantendo uma velha tradição dos ditadores latino-americanos, dos quais Fidel Castro é o jurássico decano. Se quiser entrar para a História, mantendo sua biografia política e honrando a Constituição que prometeu cumprir, Lula não pode admitir qualquer paralelismo entre seu governo e o venezuelano, em matéria de esvaziamento das liberdades públicas.’