Howard Rheingold escreveu um livro sobre comunidades virtuais quando a internet ainda saía da fase dos BBSs e fóruns frequentados por acadêmicos e entusiastas da nova mídia. The Virtual Community, de 1993, não só funcionou como guia teórico sobre o funcionamento cultural da internet exatamente no momento em que ela começava a se popularizar, como consolidou a importância do escritor como visionário digital.
Na época, ele já tinha passado pelo mítico laboratório PARC da Xerox (berço de grande parte dos itens da computação pessoal que usamos até hoje, como a interface gráfica e o mouse) e havia publicado outros dois livros: Out of the Inner Circle: A Hacker’s Guide to Computer Security (Fora do Círculo Interior: Um Guia sobre Segurança de Computadores para Hackers, em tradução livre) ao lado de Bill Landreth e Tools for Thought: The History and Future of Mind-Expanding Technology (Ferramentas para o Pensamento: A História e o Futuro da Tecnologia de Expansão da Mente), ambos publicados em 1985. Nenhum teve edição brasileira, nem os que foram lançados depois.
De lá para cá, estabeleceu-se como cronista do mundo digital e futurista do comportamento online, aura consolidada com suas colunas para o jornal San Francisco Examiner nos anos 90. Em 2002 escreveu seu visionário livro Smart Mobs: The Next Social Revolution (Multidões Inteligentes: A Próxima Revolução Social),que já antevia os movimentos populares e organizados online que ocorreram no ano passado, como a Primavera Árabe e o movimento Occupy Wall Street.
Rheingold vem ao Brasil para falar de seu quinto livro, Net Smart: How to Thrive Online (Esperteza de Rede: Como Prosperar Online), lançado no mês passado, durante o festival Arte.mov, que é realizado nesta semana em Belo Horizonte. O Link conversou com ele por e-mail sobre as mudanças políticas e sociais que estão acontecendo graças à nova realidade digital.
“A inovação depende da natureza aberta da internet”
Qual sua visão sobre as redes sociais, do ponto de vista de um dos pioneiros das comunidades virtuais?
Howard Rheingold– Na minha opinião, redes sociais como o Facebook são uma espécie de bênção mista. Elas permitem que as pessoas se conectem entre si, embora, em alguns casos, isso não é um benefício positivo, Basta lembrar das pessoas chatas que você deixou para trás quando mudou de casa, escola ou emprego. As rede sociais também tornam muito mais fácil compartilhar informação com pessoas com quem mantemos vínculos sociais. Este aspecto fortalece o tal “capital social” – a capacidade de grupos conseguirem atingir metas coletivas fora de instituições formais como contratos, leis, governos – que depende de “redes de confiança e normas de reciprocidade” de acordo com sociólogos. Contudo, tais serviços não fazem aquilo que era feito em comunidades virtuais que permitiram o crescimento rápido da internet e que tornavam possível conectar pessoas com interesses em comum mas que não se conheciam. O Facebook restringe a comunicação, transforma a privacidade em produto e comercializa toda ação de seus usuários. Ao mesmo tempo, há milhares, talvez milhões, de listas de e-mail, fóruns online, salas de bate-papo, blogs e wikis com área de comentários. Meu maior medo em relação ao Facebook é que ele tenta fechar a internet aberta. Sir Tim Berners-Lee, criador da World Wide Web, recentemente nos alertou sobre isso em um artigo. Berners-Lee não precisou pedir permissão a ninguém para criar a web e os criadores do Google não tiveram de pedir a ninguém para reprogramar um serviço controlado para transformá-lo em uma companhia multibilionária a partir de um alojamento universitário. A inovação depende da natureza aberta da internet, mas o Facebook está caminhando diariamente para transformá-la em um sistema fechado em que ele dita as regras.
A vigilância tecnológica e as violações de privacidade
Você acha que estes serviços ameaçam a privacidade? O conceito de privacidade mudou?
H.R.– Como colunista, sempre alertei sobre as ameaças à privacidade, há 15 anos. Muito pouca gente nos EUA parece se importar. Nós estávamos despreocupados – para não dizer ansiosos – em trocar nossa privacidade pela conveniência e, especialmente depois do 11 de Setembro, pela ilusão de segurança. Os avanços tecnológicos de hoje rastreiam todos os nossos passos online e constroem poderosos portfólios de informação sobre bilhões de pessoas. Câmeras de vídeo nas maiores cidades do mundo podem reconhecer rostos de pessoas específicas. E agora não tememos mais apenas o Estado – nossos vizinhos, ex-cônjuges, estranhos que ficam com raiva da gente no trânsito e anotam nossas placas, todos eles podem descobrir muita coisa sobre qualquer um de nós. Acho que está claro que a privacidade não significa mais o que significava antes das rede sociais. Quando o Facebook acionou seu feed de notícias – permitindo que você veja atualizações instantâneas sobre o que todas as pessoas na sua lista de amigos estão fazendo naquele momento –, as pessoas se sentiram ultrajadas e houve uma espécie de revolta. Seus usuários sabiam que qualquer pessoa poderia ver o que elas haviam postado em seus perfis, mas a simples ideia de que estas informações poderiam ser publicadas em suas redes de forma instantânea aborreceu o senso de privacidade de muitas pessoas que já usavam a rede social. Mas agora o feed de notícias é aceito por todos. Os limites da privacidade vão mudando. Acho que é importante distinguir entre informações que podem ser constrangedoras para outras pessoas e aquelas que podem dar poder a outras pessoas em relação a nós mesmos. É muito tarde para parar essa vigilância tecnológica e as violações de privacidade promovida pelos governos e por iniciativas comerciais. O melhor que podemos fazer é educar as pessoas de forma que elas possam tomar as providências necessárias para proteger suas privacidades. Eis a razão de eu ter escrito o livro Net Smart, que ainda não tem uma edição no Brasil.
Incerteza crítica
Você acha que as comunidades online podem melhorar a vida fora da internet? O mundo digital pode fazer as pessoas se sentirem parte de uma comunidade mesmo quando não estão conectadas à internet?
H.R.– Sem dúvida. Sou um sobrevivente do câncer e posso garantir que isso funciona. Há pessoas no Brasil e em qualquer país do mundo que têm recebido muitos benefícios desta comunidade – informação necessária, apoio emocional, sensação de pertencimento – de comunidades virtuais. Uma pesquisa recente feita pelos sociólogos Barry Wellman, Keith Hampton, entre outros revelou que as pessoas que passam mais tempo se comunicando online com seus vizinhos também se envolvem mais com eles fora da internet. Esta questão era usada como jurisprudência por filósofos de escritório e juristas, mas pesquisas científicas recentes revelaram que a participação em comunidades online não é necessariamente alienante e em muitos casos pode trazer benefícios para a vida fora da vida conectada da internet.
Uma vez que todos estão online, a tendência para o futuro é que nos tornemos mais isolados ou gregários?
H.R.– Sei que as pessoas que realmente criam uma cultura na qual elas participam – seja comentando num blog, organizando uma wiki, participando de uma comunidade virtual ou outras centenas de formas de contribuir com a cultura online –, se veem como cidadãos ativos, comparados a pessoas que se veem apenas como consumidores passivos de uma cultura criada por outros. A incerteza crítica vem do fato de não sabermos a forma como este conteúdo será disseminado. As pessoas saberão que existem formas de participar? Estas habilidades não são ensinadas nas escolas, apesar de muitos ensinarem isso uns aos outros. De outra forma, não teríamos a web! Novamente, este elemento educacional foi um dos motivos pelo qual escrevi meu livro. Até criei um currículo para professores de universidade ensinarem essas habilidades.
“Multidões inteligentes não são necessariamente multidões sábias”
Como você acha que os levantes populares organizados online durante o ano passado vão evoluir nos próximos anos?
H.R.– Escrevi um livro sobre este fenômeno há dez anos e notei que a combinação entre telefonia móvel, internet e computador pessoal estava criando uma nova mídia que diminuiu bastante as barreiras para tornar a ação coletiva possível. Mesmo antes dos eventos que você mencionou, as eleições na Coreia e na Espanha mudaram devido ao uso deste tipo de mídia. As pessoas têm como organizar ações com pessoas que nunca tiveram contato. Da mesma forma que a imprensa escrita permitiu que as pessoas criassem democracias nas quais os cidadãos podiam decidir pelo futuro de seus governos, as tecnologias de hoje têm permitido novas formas de organização política. E não apenas política – a Wikipedia, a comunidade do software livre, a resposta voluntária a catástrofes e muitas outras formas de ação coletiva ainda estão apenas surgindo. Multidões inteligentes não são necessariamente multidões sábias, e as pessoas se organizam tanto para construir quanto para destruir coisas. De novo, acredito que a educação – o que as pessoas sabem sobre seus novos poderes – fará a diferença.
***
[Alexandre Matias, do Estado de S.Paulo]