Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A revolução é um porquinho ferido

Quando eu tinha idade para ser comunista, suspirava imaginando uma sociedade com meios de comunicação coletivizados, a informação deixaria de financiar mansões com 15 suítes na praia, acesso a espaços VIP e outras vulgaridades capitalistas, para se transformar numa construção coletiva, voltada para um mundo mais fraterno e menos desigual. Envelheci e, como ocorre aos sensatos, abandonei delírios marxistas. Tornei-me um cético. Mas só agora, quase duas décadas depois, percebo que minhas utopias juvenis também pecavam pelo excesso de fé na humanidade.

Bem, não passamos por nenhuma revolução bolchevique nem rotativas foram empasteladas. Porém, pelo cérebro inquieto dos nerds, a democratização dos meios de comunicação galopa em campo aberto. Gigantes da comunicação estão imensamente mais preocupados em sobreviver num ambiente onde todo mundo propaga informação do que em se aliar com escrotos para enriquecer manipulando as massas ignorantes.

De um celular, um adolescente imberbe e cheio de espinhas no rosto compete com o New York Times. Enfim, o cenário para a construção coletiva está pronto.

E qual a nossa obra?

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Com exceções que só servem para confirmar a regra, militantes da causa animal são sentimentalmente preguiçosos. É muito fácil morrer de amores por quem te recebe em casa saltitante em troca de ração e cafuné. Seres humanos têm uma inarredável inclinação para a infelicidade, querem sempre mais, mais e mais. Lidar com bípedes dá um trabalho danado.

Dias atrás, li num jornal de Curitiba uma tirinha que beira a genialidade. Um sujeito dizia: “Jamais compartilhamos tanto!” Um mendigo perguntava suplicante, com a mão estendida: “Pratos de comida?” A resposta veio cortante: “Não. Fotos de felinos!”

Apesar desta convicção, não contem comigo para reproduzir a máxima do Dussek. Como eu não troco a mensalidade de sócio do meu clube de futebol nem a TV a cabo por uma criança pobre, que eles sejam livres para manifestações públicas de afeto pelos bichinhos. Quem se refestela no conforto de uma modernidade egoísta não tem o direito de recriminar os defensores de animais que, devo admitir, são dotados de sentimentos raros de compaixão.

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O problema deste movimento hegemônico pró-animais reside justamente no esperneio por sobrevivência das grandes companhias de mídia. Com a turma inundando o Twitter e o Feicebúqui com fotos de animaizinhos cheirosos e ameaças de linchamento contra torturadores de yorkshire, veículos carentes de audiência tomam a futilidade por assunto sério. E não falo só de picaretas oportunistas, pois isto sempre houve. Clique aqui e leia uma notícia que encontrei na capa, repito, na capa do portal da maior empresa de comunicação do país.

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A cada 12 horas, um pedestre morre atropelado em São Paulo. Ano passado, cada vez que o sol nasceu lá para os lados de Itaquera, a cidade já estava sem os dois motociclistas mortos na véspera. Não sou um cara com visão antropocêntrica do mundo. Adoro cães, inclusive. Mas, numa metrópole de trânsito tão letal, deve haver notícia mais relevante para a capa do que um porquinho ferido ao cair do caminhão na Vila Mariana, né?

Ok, sou jornalista dado a gracejos e rupturas conceituais. Não sou tão careta assim. Um porco cadente pelas ruas de São Paulo, claro, não deixa de ser curioso e sedutor para a leitura.

Mas… na capa?!

Pareceu-me subserviência exagerada às aspirações coletivas.

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Foi aí que me dei conta da ingenuidade dos meus tempos de comunista. Passei a juventude querendo a democratização do poder de emitir informação, para que o povo ficasse entretido com gatinhos, cachorrinhos e… porquinhos?!

Eis a revolução, amigos.

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O jornalismo de verdade precisa, de vez em quando, até para que não se esqueça, dizer o que o público precisa saber, e não só o que ele quer saber.

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[Fabrício Cardoso é jornalista, editor-executivo do Diário de S.Paulo]