Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Cassiano Elek Machado

‘Morreu ontem, aos 89 anos, um dos maiores estilistas de palavras dos Estados Unidos no século 20. Saul Bellow, vencedor do Nobel de Literatura de 1976, morreu em sua casa, na pequena cidade de Brookline, Massachusetts, de causas não anunciadas.

O advogado do escritor disse que ele vinha enfrentando uma série de problemas de saúde, mas que ‘continuou afiado até o fim’.

Afiada é uma das características que se pode atribuir à prosa de Bellow, que tematizava em romances como ‘Herzog’ e ‘As Aventuras de Augie March’ a melancolia, uma melancolia cômica tipicamente judia-americana.

Mais escritor dos escritores do que do grande público, Bellow, nascido no Canadá, mas radicado nos EUA desde os nove anos, recebeu ao longo de toda a sua vida quilos de premiações e de referências elogiosas.

Ontem, logo após saber de sua morte, o maior escritor americano vivo, Philip Roth, declarou que ‘a coluna vertebral da literatura americana do século 20 foi desenhada por dois romancistas: William Faulkner e Saul Bellow’. ‘Juntos, eles são o trio Melville, Hawthorne e Twain do século 20’, completou Roth, em referência aos principais escritores americanos do século 19.

Mais premiado, não houve. O autor, filho de imigrantes russos, foi o primeiro a conquistar três vezes o principal troféu literário dos EUA, o National Book Award. Também colecionou prêmios Pulitzer e companhia.

Além de ganhar espaço nos jornais por suas histórias literárias, Bellow apareceu no noticiário também por contos de sua vida particular. A última vez foi em 1999. Aos 84 anos, o escritor teve sua quarta filha. Ela e sua mulher estavam ao seu lado ontem quando ele morreu.’



Moacyr Scliar

‘Um grande intérprete da sociedade americana’, copyright Folha de S. Paulo, 6/04/05

‘Escrever a ‘grande novela americana’ sempre foi o sonho dos escritores que vivem e viveram nos Estados Unidos. Aparentemente é um ideal que ainda não foi atingido, ao menos do ponto de vista dos críticos, mas muitos autores chegaram próximos a esse objetivo. Saul Bellow, morto ontem, é um exemplo maior.

Conheci-o há cerca de dez anos, quando, em um intercâmbio cultural, visitei vários escritores americanos. O encontro com Bellow era o que, para mim, se revestia de maior expectativa, afinal, tratava-se de um Nobel e de uma figura verdadeiramente lendária.

Eu havia lido vários de seus livros, começando pela primeira novela, ‘The Dangling Man’, de 1944, pequena obra-prima sobre a angústia de um jovem que espera sua convocação para o Exército, continuando com ‘Agarre a Vida’ (56), ‘Herzog’ (64), ‘O Legado de Humboldt’ (75), além de seu relato de uma viagem a Israel, ‘Jerusalém Ida e Volta’ (75).

Era também fã de seus contos, vários dos quais foram reunidos em ‘Trocando os Pés pelas Mãos e Outras Histórias’, de 1984. Mas, mesmo conhecendo boa parte de sua obra (ou talvez exatamente por isso), aquela era uma visita que me intimidava. De qualquer modo, lá fomos, minha mulher e eu, naquela gélida manhã de inverno, para o encontro que seria realizado na Universidade de Chicago, onde ele lecionava.

A conversa acabou tomando um rumo inesperado. Bellow, um homem elegante e amável, quis saber de onde eu era, de onde vinham meus pais. Ficou encantado ao saber que eu era filho de imigrantes judeus vindos da Rússia; era essa também sua origem. Só que os pais dele tinham se dirigido para o Canadá, onde nascera, na cidade de Lachine, em 1915, radicando-se depois nos EUA.

Claramente era um escritor que, sendo profundamente americano (um escritor de Chicago, para ser mais preciso), se valia de sua herança cultural para entender melhor a realidade do país. Não era um caso isolado; o mesmo acontecia com outros escritores -Norman Mailer, Philip Roth- que inauguraram, nas palavras do crítico Irving Howe, um novo tipo de regionalismo. Não geográfico, como aquele pelo qual William Faulkner retratou o sul dos Estados Unidos, mas étnico.

A verdade é que o imigrante recebe uma espécie de compensação por sua condição de marginal da cultura; ele é dono de um olhar privilegiado, um olhar que lhe permite enxergar a realidade do país de maneira diferente. Muitos descobrem assim novas oportunidades de ascensão econômica e social, caso dos imigrantes que criaram a indústria cinematográfica. Outros tornam-se revolucionários (Bellow tinha sido trotskista), e outros enveredam pelo caminho da literatura e da arte.

Através do prisma do judaísmo, Bellow tornou-se um notável intérprete da sociedade americana. Um intérprete coerente, que não fazia concessões. Quando lhe perguntei por que um escritor tão bem-sucedido continuava dando aulas de literatura ele respondeu: ‘Porque não sou um autor comercial. Prefiro ter meu sustento assegurado de outra maneira’.

Essa coerência, associada a um soberbo domínio da forma literária e a uma capacidade de revelar a condição humana pela ficção, garantiram a Bellow um lugar na literatura que ele jamais perderá.’



Antonio Gonçalves Filho

‘Morre nos EUA o escritor Saul Bellow’, copyright O Estado de S. Paulo, 6/04/05

‘O maior escritor da América, como a mídia costumava se referir a Saul Bellow, morreu ontem, aos 89 anos, em sua casa de Brookline, no estado de Massachusetts, Estados Unidos, após longa enfermidade. Bellow comeu peixe contaminado, em 1995. Ficou inconsciente por cinco semanas com seqüelas no sistema nervoso. Premiado com o Nobel de literatura em 1976, Bellow tem vários livros publicados no Brasil, entre eles o último, Ravelstein (2001, Rocco), que, de certo modo, resume a galeria de personagens neuróticos e desiludidos dessa sua longa carreira com outros deprimidos introspectivos, descritos por vezes em tom picaresco. Deles, o mais conhecido talvez seja o protagonista de Herzog (1964). Enquanto Woody Allen fez humor com os mesmos tipos, Bellow prefere jogá-los num precipício conradiano. Bellow interpretou a si mesmo em Zelig (1983), o filme de Allen que conta a vida de um homem que troca de personalidade como quem troca de roupa. É uma justa homenagem a Bellow, que fez de seus amigos modelos para a construção de seu fragmentado alter ego literário.

Ravelstein, por exemplo, era o seu amigo e mentor Allan Bloom, escritor e professor de literatura que morreu de aids há 13 anos. O poeta alcoólatra Delmore Schwartz foi o inspirador de O Legado de Humboldt. Exemplos dessa síndrome de Zelig são inúmeros, mas bastam esses dois. A biografia de Belllow escrita por James Atlas há cinco anos não entra muito nessa seara. Não discute a possível esquizofrenia literária de um escritor magistral, que tentou unir a memória proustiana com a modernidade corrosiva e pessimista de Joseph Conrad, seu ídolo. Defende que a origem de seus traumas foi a morte da mãe, quando Bellow tinha apenas 17 anos. Por causa dessa tragédia, conclui Atlas, o escritor, filho de judeus russos nascido em Quebec, Canadá, teria procurado em cada uma de suas cinco mulheres a figura protetora da mãe. Evidentemente, falhou em todas as tentativas, mas seu biógrafo Atlas errou muito mais, ao considerar a literatura de Bellow dependente exclusivamente de sua vida, e não da de seus amigos.

Bellow não inventou o judeu sem esperança de Herzog, sua criação mais popular. Ele sempre esteve a seu lado. É o protótipo do homem culto, genial, deslocado e perdido entre culturas antípodas. No caso de Bellow, a russa e a americana. Os avós do escritor seguiam o Talmude na Rússia czarista. Os pais, a bolsa de valores canadense. Já Bellow preferiu seguir as garotas que se refugiavam nas bibliotecas públicas na Chicago dos gângsteres. Os americanos viviam a Depressão, mas Bellow preferia a diversão. Corria atrás dos livros de Virginia Woolf sem perder de vista as meninas que freqüentavam as bibliotecas para espantar a fome, provocada pela falta de dinheiro. Bellow sempre foi um vulcão sexual. Heterossexual. Mas sem muita convicção. Bellow tinha como modelo o citado amigo Allan Bloom, um acadêmico gay que gastava fortunas em roupas extravagantes e fez fama com um best-seller sobre a cultura liberal americana.

Aparentemente, Bellow foi também um homem liberal, sem preconceitos. Um de seus personagens mais conhecidos, o velho judeu Arthur Sammler de Mr. Sammler’s Planet, critica o israelense que ataca um ladrão afro-americano com suspeita violência racial misturada ao ódio. Na vida real, Bellow provocou polêmica ao perguntar, numa entrevista, quem era o Tolstoi dos zulus, insinuando que a cultura negra não teria produzido um gênio literário como o russo. O livro foi escrito há 35 anos. É um retrato da bestialidade e da escalada da intolerância no mundo. Bellow, evidentemente, era um pessimista. Foi trotskista na juventude e recusou-se a seguir o modelo típico do escritor americano (Hemingway e companhia). Tampouco assumiu-se como um autor judeu. Dizia ser um escritor americano que, por acaso, também era judeu. Bem, o certo é que, lendo Herzog, fica difícil imaginar o depressivo Moses – sempre às voltas com Nietzsche e obcecado pela idéia do suicídio – como um gói. Ele é fruto de uma cultura que usa o humor como fuga para a condição trágica do excluído da terra prometida, do eterno exilado.

Para reforçar esse parentesco com o perdedor Herzog, Bellow adorava narrar a história de seus personagens na primeira pessoa. Seu modelo devia ser Charlie, o rico escritor de Humboldt, que, intimamente, apesar do sucesso, sentia-se um fiasco como pessoa. Antes de morrer, Bellow teve tempo para uma confissão: teria feito tudo diferente se vivesse de novo, dedicando menos tempo às mulheres. E, conseqüentemente, às suas neuroses.’



Daniel Piza

‘O planeta do Sr. Bellow’, copyright O Estado de S. Paulo, 10/04/05

‘Assim que soube da morte de Saul Bellow (aos 89 anos, na quarta passada), fui reler trechos de seus livros – romances como Herzog, O Legado de Humboldt, Agarre o Dia, As Aventuras de Augie March e O Planeta do Sr. Sammler, para não falar de seus contos e ensaios ou de sua última novela, The Actual (Presença de Mulher, na tradução brasileira), tão hábil em subentendidos, e seu último romance, Ravelstein, uma reencarnação do professor Allan Bloom. Bellow, como se vê em seu Tudo Faz Sentido ou na biografia escrita por James Atlas, teve uma vida agitada e rica; conheceu outros grandes intelectuais, como Hannah Arendt, Arthur Koestler e Edmund Wilson, foi editor e professor, casou cinco vezes, viajou pelo mundo todo. Mas o que queremos dele é o resultado disso na sua obra, em seu estilo agudo e colorido, em sua percepção densa da realidade.

Enquanto a literatura européia se entregava a silêncios pseudoprofundos e artifícios formais, nos anos 50 e 60, Bellow, longe de qualquer tradicionalismo, manteve viva a narrativa de ficção como existe desde Cervantes – com personagens enredados em conflitos que provocam seu desencanto e resistência. Tido como ‘conservador’ por frases saborosas como ‘Onde está o Proust de Nova Guiné?’ (contestação do relativismo ingênuo que desdenha a cultura européia que tanto alimentou Bellow), ele se dedicou a recriar o mundo fragmentário e ansioso dos indivíduos urbanos modernos sem pregar uma volta ao passado de suposta coesão social (se você quer identificar um conservador, procure essa palavra, ‘coesão’). A Era da Dispersão era ele também.

Não à toa Philip Roth o cumprimentou, nesta semana, como o maior escritor americano do século 20 ao lado de William Faulkner. Ponho Roth no mesmo plano que Bellow (e claramente acima de Updike, Auster e os demais), talvez até com mais inventividade, mas Roth não existiria sem ele. Personagens como Moses Herzog, Artur Sammler e Von Humboldt, alter ego do poeta Delmore Schwarz, têm uma pulsação que não nos abandona; no entanto, a narrativa não é linear e detalhista, mas digressiva e meditativa, o estilo é musical, espirituoso e, pioneiramente, usa repertório da ciência para ler os homens, em geral abandonados pelas mulheres, e as cidades, em geral tomadas pelas ironias.

‘Você não podia ser um sábio à moda antiga, sentado. Você devia treinar a si mesmo’, diz o narrador de O Planeta do Sr. Sammler, o livro-texto da metrópole moderna. ‘Você tinha de ser forte o bastante para não se aterrorizar com os efeitos locais da metamorfose, para viver com a desintegração, com ruas loucas, pesadelos sujos, monstruosidades vivas, drogados, bêbados e perversos celebrando seu desespero a céu aberto no centro da cidade. Você tinha de ser capaz de suportar os embrulhos da alma, a visão da dissolução cruel. Você tinha de ser paciente com a estupidez do poder, com a fraude dos negócios.’ Sem concessão nem medo, Bellow foi capaz de tudo isso. Um escritor que vai sempre nos convidar a reler é agora um homem que pode enfim descansar.

P.S. – Os gênios americanos de uma era vão morrendo. Marlon Brando, George Kennan, Arthur Miller, agora Saul Bellow. Não dá para viver de Keanu Reeves, Dick Cheney, Michael Moore e DBC Pierre, dá?

PROSEANDO

Extraído de Sobre o Ofício do Escritor, de Schopenhauer (Martins Fontes): ‘A ausência de espírito e o fastio dos textos elaborados por cabeças comuns derivam do fato de que elas falam sempre com meia consciência; (…) juntam mais frases inteiras (phrases banales) do que palavras. Pessoas inteligentes falam, em seus escritos, realmente a nós e, portanto, são capazes de nos animar e entreter: somente elas elaboram cada palavra com plena consciência, com escolha e propósito.’

UMA LÁGRIMA

Para o papa João Paulo II, morto no sábado retrasado aos 84 anos. Os obituários trataram de suas contradições: foi progressista na política, devido ao combate aos regimes autoritários do Leste Europeu, a começar por sua terra natal, a Polônia; conservador na moral, tendo atacado, em alinhamento com sua instituição, a Igreja Católica, coisas como a camisinha e a pílula, para não falar de aborto e célula-tronco; e reacionário na gestão, por ter retomado premissas anteriores ao Concílio Vaticano II e centralizado o poder com a Opus Dei. Mas vi um especial da RAI sobre ele, com muitas imagens raras de arquivo particular, e de novo ficou claro como, acima de tudo, ele foi carismático. Esse ex-ator e atleta tinha uma mescla de ‘timing’, humor e vigor no trato com multidões que dificilmente será igualada.

Embora ateu desde que me dei por gente, não posso negar estatura a um papa como ele, a qual contradiz a idéia de que as grandes figuras históricas já não existem. A força do catolicismo sempre foi a universalidade de seus conceitos (‘Atire a primeira pedra quem nunca pecou’) e imaginário (basta ver as fotos que vêm de Roma), que geraram, entre outros, Michelangelo e Bach; e João Paulo II, que tanto lamentou o afastamento entre fé e conhecimento, sabia disso. Mesmo assim, em muitos países, especialmente nos pobres, as correntes evangélicas e islâmicas ganharam força durante os 26 anos de seu papado. O inimigo, portanto, não é apenas o avanço da ciência e da moral secular, como dizem os cardeais; é mais ainda essa pompa e soberba do Vaticano que nem mesmo o sofrimento demasiado humano de Karol Woytila pode disfarçar. Resta ver por quem os sinos dobrarão agora.

DE LA MUSIQUE

O CD Mensagem 2 é tão bom quanto o primeiro, coisa rara nesse tipo de projeto. Mensagem é a adaptação do livro de Fernando Pessoa em canções de André Luiz Oliveira. O primeiro disco, de 1986 (remasterizado em 1991), tinha a maioria dos poemas mais conhecidos e participações de Caetano Veloso, Zé Ramalho e Ney Matogrosso. Mas o segundo é mais elaborado, principalmente na instrumentação, tem de novo Cida Moreira, aqui cantando Ocidente, tem o fado Antônio Vieira (‘No imenso espaço de seu meditar,/ Constelado de forma e de visão’), com Glória de Lurdes, e tem Calma, com Ná Ozzetti – além do próprio Oliveira, com D. Sebastião (‘Sem a loucura, que é o homem/ Mais que a besta sadia,/ Cadáver adiado que procria?’), Milton Nascimento e Gilberto Gil. Nem sempre a versão funciona, como no caso de Ulisses, com Zeca Baleiro, em que a música retira a melancolia labiríntica do poema. Mas o resultado é muito bom e demonstra como, além das idéias e imagens, a poesia de Pessoa é mais musical do que se diz.

POR QUE NÃO ME UFANO

Pego o jornal da quarta-feira e leio nas primeiras páginas: ‘Ministro Romero Jucá diz que não renuncia’ (só o governo não sabia da ‘ficha’ do sujeito?); ‘Suplente de Marina Silva emprega marido dela no gabinete’ (que ambiente poluído!); ‘Crise na saúde é nacional, admite governo’ (a intervenção no Rio é um começo ou o fim?); ‘Juízes querem mais 90 dias de férias como licença-prêmio’ (pois já têm 60 de férias); ‘Fonteles pede ao Supremo investigação de Meirelles’ (aquele a quem o governo quis dar escudo de ministro por MP). Tudo isso, seis dias depois de PMs terem saído pelas ruas da Baixada Fluminense matando 30 pessoas a esmo. A imprensa registra, as pessoas soltam ‘oooh’ escandalizadas, alguns são presos, mas logo o assunto cai no esquecimento – até a próxima chacina de inocentes.

No mesmo dia, em outra página, leio um texto de Roberto DaMatta sobre nepotismo. Segundo o autor de Carnavais, Malandros e Heróis, em nó conceitual, o único jeito de lidar com esse problema é permiti-lo em doses homeopáticas, criando ‘cotas de parentes a serem facultativamente nomeados pelos nossos ilustres políticos, mas com o compromisso de que essas nomeações fossem anunciadas e justificadas publicamente pelo próprio representante do ‘povo’ (sic)’. Supor que tal ‘costume’ possa acabar quando um parlamentar justificar as nomeações, à maneira do ilustre Severino Cavalcanti (‘Todos têm título universitário’), é sintoma grave do mal antropológico que apontei nos intelectuais brasileiros. Realmente, não verás país original como este.’



Ian McEwan

‘Legado de Saul Bellow é a visão plural da América’, copyright O Estado de S. Paulo / The New York Times, 9/04/05

‘Quando morre um grande escritor – acontecimento incomum, pois esta é uma categoria rara – prestamos homenagens revisitando as estantes de livros, em nossas bibliotecas ou nas livrarias. Pranto e celebração combinam dignamente. Transcorrerá algum tempo para termos a medida plena do empreendimento de Saul Bellow, e não há razão para não começarmos com uma coisa pequena, uma frase ou sentença que se tornou parte de nosso mobiliário mental, e uma parte dos prazeres da vida. Afinal, os bons leitores, como Nabokov advertia a seus alunos, ‘devem notar e acarinhar detalhes’. Os amantes de Bellow geralmente evocam um certo cão, latindo desamparadamente em Bucareste durante a longa noite da dominação soviética da Romênia. Ele é entreouvido por um visitante americano, Dean Corde, um típico herói sonhador belloviano, que imagina aqueles sons como um protesto contra a estreiteza da compreensão canina, e um apelo: ‘Pelo amor de Deus, alargue o universo um pouco mais!’ Nós aprovamos essa observação porque somos, num sentido, aquele cão, e Saul Bellow, nosso Dono, nos ouviu e atendeu.

De fato, a liberdade que Henry James reclamava para o romancista em seu ensaio A Arte da Ficção foi generosamente abraçada por Bellow; ele libertou a si mesmo e a sucessivas gerações das armadilhas formais do modernismo, que em meados do século 20 começara a sofrer uma pesada restrição. Ele não teve tempo para a afirmação de Virginia Woolf de que no romance moderno o personagem está morto. O mundo de Bellow é um mundo densamente povoado como o de Dickens, mas seus cidadãos não são caricatos nem grotescos. Eles se apóiam na memória como pessoas que você poderia se convencer de que as conheceu: o incorrigível escroque Lustgarten (‘parte sutil, parte doente’) em Mosby’s Memories, que leva sua família à ruína financeira importando um Cadillac na França do pós-guerra; o irritável pé-rapado, Cantabile, brandindo um revólver em O Legado de Humboldt: na sua agitação ele de repente sente necessidade de defecar, e obriga sua vítima, Charlie Citrine (‘um homem de cultura ou capacidades intelectuais’) a ir à latrina com ele. Citrine se distrai com reflexões sobre o comportamento símio enquanto Cantabile ‘se acocorava ali com seu olhar fuzilando’.

E mais vívido de todos, ao menos para mim, Moses Herzog, o sonhador mais acabado de Bellow, o menos prático dos homens numa América de ocupações materiais, vigorosas. Em Herzog, Bellow levou à perfeição a arte da digressão ficcional. Quando o herói vai visitar sua amada, a adorável Ramona, ele espera na cama enquanto ela sai para se trocar para o que Martin Amis chamaria de sua ‘roupa de bordel’. Nesses momentos, Herzog reflete em como o mundo inteiro o acossa, e Bellow parece estabelecer uma espécie de manifesto, uma lista de verificação retumbante dos desafios que o romancista precisa enfrentar, ou da realidade que ele precisa conter ou descrever. Serve também como um guia do leitor para a matéria-prima do trabalho de Bellow. Cheguei a conhecer essa passagem de cor de tanto a reler, e tomei emprestado dela a epígrafe para um romance, Saturday. Foi um risco, porque o pulso dessa prosa provavelmente faria a minha soar frouxa.

SELVAGERIA

A cidade de Bellow, é claro, era Chicago, tão vital para ele, e tão lindamente, prolificamente evocada, como a Dublin de Joyce; os romances não se passam apenas no século 20, eles são sobre esse século – suas espantosas transformações, sua selvageria, suas novas máquinas, as grandes batalhas de seus sistemas de pensamento, o fracasso retumbante dos sistemas totalitários, as benesses contraditórias do modo de vida americano. Esses elementos não são tratados em abstrato, mas escrutinados através dos caprichos de personagens, de um indivíduo tentando imaginar que lugar ele ocupa na massa da qual faz parte. E sempre, o passado se imiscui, memórias de infância, as ruas e cortiços abarrotados, quartos divididos, parentes e vizinhos opressores e excêntricos – os imigrantes pobres, atendendo ao apelo à identidade americana.

O crítico americano Lee Siegel escreveu recentemente que todo escritor britânico com uma conexão intelectual ou emocional com a América quer ser um Bellow. ‘Ele é o seu Rochedo de Plymouth, ou talvez sua Rodésia…’ Há alguma verdade nisso. O que encontramos nele que não podemos encontrar aqui, entre os nossos? Creio que o que admiramos é a generosa abrangência da obra – desde o século 19, nenhum escritor foi capaz de reproduzir uma sociedade inteira, sem condescendência ou antropologia social consciente de si mesma. Sem tropeços, Bellow consegue mover entre os pobres e suas ruas perversas, e as elites poderosas de universidade e governo, o sonhador privilegiado com o ‘pensamento oceânico’. Sua obra é a encarnação de uma visão americana de pluralidade. Na Grã-Bretanha parece que não somos mais capazes de escrever através das distorções crassas e sutis de classe – ou melhor, não conseguimos fazê-lo de forma graciosa, sem exagero ou caricatura. Bellow parece maior, portanto, do que qualquer escritor britânico pode almejar ser.

Escritores que admiramos e relemos são absorvidos nas letras miúdas de nossa consciência, no ruído surdo de nossos pensamentos, e neste sentido, não morrem jamais. Saul Bellow estava publicando nos anos 40 e sua obra se estende pelo século que ele ajudou a definir. Também redefiniu o romance, ampliou-o, libertou-o, tornou-o cálido com sentido humano e inteligência e grandes propósitos. Henry James uma vez propôs uma verdade óbvia mas proveitosa: ‘A qualidade mais profunda de uma obra de arte será sempre a qualidade da mente do produtor.’ Estamos dizendo adeus a uma mente de qualidade sem rival. Ele alargou nosso universo um pouco mais. Devemos tudo a ele.

O britânico Ian McEwan é autor, entre outros, de Reparação, Amsterdam, O Inocente e Saturday, o mais recente.’