Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A liberdade vigiada

 

De onde vem a ameaça dos novos meios digitais de comunicação contra as chamadas mídias tradicionais? Provavelmente vem de um aspecto da revolução tecnológica a que pouca gente ainda prestou atenção, e que assombra não apenas os chamados gatekeepers da informação, mas todos os setores que de alguma forma tentam manter sob vigilância os portões de acesso à plena cidadania para todos: o risco para essas instituições é a transformação do consumidor em cidadão.

As tentativas de controle do espaço cibernético tem se manifestado de diversas maneiras. As mais recentes de que tivemos notícia respondiam pelas siglas SOPA, que em inglês significa ato para interromper a pirataria online, e PIPA, que quer dizer ato de prevenção contra ameaças reais à criatividade econômica e roubo de propriedade intelectual.

As duas medidas, que foram bloqueadas pelo governo dos Estados Unidos, aparentemente positivas, na verdade carregavam em seus bojos instrumentos de interferência do Estado sobre as atividades dos cidadãos na internet.

A ampla reação da sociedade, que ameaçou com atos de desobediência civil em larga escala, e a atitude do presidente Barack Obama, que rejeitou formalmente medidas oficiais contra a liberdade de expressão na rede mundial de computação, conteve o ímpeto do autoritarismo.

Valor real

Mas o risco não terminou: o deputado republicano Michael Rogers, do Michigan, acaba de propor uma nova lei, denominada CISPA, cuja finalidade, ao sustentar a defesa dos interesses públicos e privados dos Estados Unidos na internet, pretende reforçar o Ato de Segurança Nacional de 1947.

O parlamentar repercute a paranoia americana que vê ações de invasão cibernética da China, Rússia e Irã em seus computadores, tablets e smartphones – a versão cibernética da Guerra Fria.

Na vida real, a proposta consiste em obrigar todas as empresas privadas, inclusive Facebook, Google, Pinterest, Youtube ou operadoras de telefonia, a entregar os dados de qualquer cidadão a qualquer órgão do governo diante de qualquer suposta ameaça cibernética.

O alerta, publicado pelo jornalista Samuel Biddle, editor do site Gizmodo (ver aqui, em inglês), especializado em estilo de vida digital, informa que o projeto foi aprovado discretamente pela Câmara dos Representantes na noite de quinta-feira (26/4), e tinha votação de urgência no Senado marcada para o dia seguinte. Segundo o jornalista, o presidente Barack Obama estaria disposto a vetar também essa proposta.

Voltando ao princípio destas observações: por que a mídia tradicional e outras empresas dominantes no cenário chamado de indústria cultural são e se sentem ameaçadas pelas mídias digitais?

Dizer que a razão é o fato de que as amplas possibilidades de interação e protagonismo abertas pelos novos meios tiram os indivíduos da circunstância limitadora do consumo e os insere no ambiente mais amplo da cidadania é apenas o ponto de partida dessa nova realidade.

Ainda assim, a maioria dos observadores do fenômeno da comunicação e os gestores das empresas dominantes no negócio parecem não ter atentado para esse aspecto: visto como consumidor, o indivíduo é menos valioso socialmente. Vale basicamente pelo que pode comprar.

Quando se vê e se percebe cidadão, ele se dá conta de seu valor real como ser humano, e passa a exigir ser tratado como protagonista nos fatos sociais e econômicos, não apenas como “público”, “audiência” ou target de publicidade e marketing.

O muro de vidro

Há outra questão ainda mais crucial: o que as mídias digitais estão proporcionando é o acesso direto a fontes de conhecimento, reduzindo o valor da informação mediada e filtrada pelos meios tradicionais.

Quando consegue olhar através dos portões onde vigiam os guardiães da informação, o cidadão compreende que sua visão de mundo vem sendo condicionada por um viés progressivamente limitador, porque os gatekeepers da imprensa são cada vez mais homogêneos ideologicamente e o produto informativo que oferecem é progressivamente limitado, do ponto de vista da diversidade de interpretações.

Sem os gatekeepers da mídia tradicional, o cidadão fica mais vulnerável a boatos sem fundamento, notícias falsas ou falsificadas, conhecimento irrelevante ou falso conhecimento? Ninguém pode afirmar que tal não acontece com as informações filtradas pelos meios tradicionais.

A imprensa é um muro de vidro, e vale mais quanto mais translúcida for.

Há muito mais ainda a se considerar sobre esse tema, e certamente teremos que voltar ao assunto, mas uma certeza se pode ter: quem olhou por cima do muro, mesmo que o muro seja de vidro, nunca mais vai ler jornal do mesmo jeito.