O colunista Clóvis Rossi, da Folha de S. Paulo, aprontou mais uma. Na sua coluna diária (menos às segundas) em que destila sua incontida raiva contra a atual administração federal, publicada na quarta-feira (16/8), sob o título ‘Delinqüente é o Estado’, o respeitado jornalista procura, mais uma vez, dar uma de paladino do oeste na defesa da moral, dos bons costumes e da ética. Só para variar, ‘cai de pau’ no Estado brasileiro, especificamente em função da avalanche de denúncias de corrupção, ‘mensalões’, sanguessugas etc. À primeira vista, palmas para ele. Mas, depois de uma olhadela mais atenta, sente-se um odor pouco agradável, algo de podre… vamos direto ao assunto.
Rossi escreve o seguinte:
‘André Moysés Gaio, mestre em ciência política e doutor em história social, professor da Universidade Federal de Juiz de Fora, manda instigante trabalho cujo título resume tudo: ‘O Estado delinqüente’. A intenção de Gaio, para resumir mais do que deveria, em razão do espaço, é ‘apresentar a noção de Estado delinqüente para explicar uma modalidade de crime que conta com a iniciativa e a liderança de agentes públicos’. Ou, posto de outra forma, não é que os agentes públicos se corrompam facilmente no Brasil. É pior: eles tomam a iniciativa, lideram o saque aos bens públicos. Acrescentaria, por minha conta e risco, outro detalhe: cada vez mais aparecem implicados agentes públicos graduados.’
Completando o raciocínio, é elencada uma série de denúncias de corrupção envolvendo altas autoridades do governo, da Justiça, do Congresso, da Polícia Federal e dos militares. E como sempre, em seus textos, há um gran finale.
‘O corolário inevitável do teorema traçado por Gaio é simples: qualquer solução para o pântano brasileiro passa, inexoravelmente, por resgatar o Estado das mãos dos delinqüentes. Fácil de falar, quase impossível de fazer.’
As cortinas se fecham debaixo de entusiasmados aplausos e todos se retiram com a sensação de bem-estar pelo que viram/leram. E a vida volta ao normal, como sempre.
O problema deste tipo de jornalismo é que não aprofunda nada e fica só na superficialidade do fato, na aparência distorcida da realidade. É claro que não é essa a intenção do colunista. Ele apenas dá sua opinião sobre determinado assunto e tudo bem. Quem quiser aceitar, que aceite. Quem não, que não aceite. Simples. Mas, aquele odor estranho vem exatamente de onde o jornalismo brasileiro, de maneira geral, se recusa a investigar. Prefere divulgar opiniões de especialistas, autoridades (não todas, é claro, só algumas escolhidas a dedo) do que ‘enfiar o pé na jaca’ e descobrir de onde vem o cheiro forte e por que fede.
Exemplos aos milhares
São raros os veículos de imprensa que ainda têm a postura de ir atrás deste ‘cheiro forte’, fazendo um jornalismo investigativo. Em vez disso, repetem releases, fazem campanha, divulgam denúncias antes de saber se são verdadeiras ou não. Às vezes, pode acontecer de acertarem. Mas, e se não acertarem, e se for mentira, o que fazer? Coloca-se no ‘Erramos’ e fica tudo como antes? Muita gente já se prejudicou por causa desta atitude irresponsável.
O que Rossi, e por tabela, o cientista político Gaio parecem esquecer é que a corrupção, em qualquer de suas formas, é inerente à chamada sociedade de consumo ou capitalista. É mais uma forma de competição no mercado e na disputa do poder. Não é privilégio do Estado brasileiro ou de qualquer outro Estado capitalista, seja democracia de estilo liberal-burguês ou regime ditatorial. Faz parte do sistema, da sociedade de mercado e sem ela muitas coisas simplesmente não funcionariam. Não é questão de se justificar a corrupção. Do ponto de vista ético, moral, ela é injustificável. No entanto, a sociedade de consumo, no seu capítulo Mercado, não investe muito na questão ética e nem na moral especialmente se isso representar algum entrave na fluidez dos negócios.
Exemplos existem aos milhares aqui e lá fora, mas há um que, talvez, seja bem emblemático. Diz respeito ao desenvolvimento do setor energético brasileiro, especificamente o setor elétrico. Desde o começo da década de 50, na esteira do nacionalismo que culminou com a criação da Petrobras, no governo de Getúlio Vargas, parte da burguesia industrial brasileira, principalmente a paulista, lutava pela ampliação do parque gerador, transmissor e distribuidor de energia elétrica.
Empresa privadoada
Até então, quase todas as empresas de energia elétrica que exploravam o mercado brasileiro estavam nas mãos do capital estrangeiro, especialmente nas grandes cidades e capitais. No estado de São Paulo, mas não só, estas empresas não estavam muito interessadas em investir na ampliação do setor elétrico. Com isso criava-se um gargalo para o crescimento da indústria paulista. Na década de 1950 e 60, grupos ligados aos industriais paulistas, técnicos, engenheiros, intelectuais, universitários, todos sob uma ótica nacionalista-desenvolvimentista, desenvolveram trabalhos mostrando a necessidade de o estado paulista investir no setor elétrico. Foi criada uma série de companhias de eletricidade com a função de construir usinas hidrelétricas, aproveitando os rios que cortam o estado. Ainda na ditadura militar foi fundada a Centrais Elétricas de São Paulo (Cesp).
A CESP foi inicialmente constituída, em 5 de dezembro de 1966, pela fusão de onze empresas de energia elétrica que atuavam isoladamente, a fim de centralizar o planejamento e racionalização dos recursos do estado de São Paulo no setor energético, recebendo o nome de Centrais Elétricas de São Paulo. As onze empresas fusionadas, das quais cinco eram empresas de economia mista com participação majoritária do governo estadual, eram: Usinas Elétricas do Paranapanema (Uselpa), Companhia Hidroelétrica do Rio Pardo (Cherp), que detinha o controle acionário de: Central Elétrica de Rio Claro (Sacerc) e de suas associadas; Empresa Melhoramentos de Mogi Guaçu; Companhia Luz e Força de Jacutinga e Empresa Luz e Força de Mogi Mirim Centrais Elétricas de Urubupungá (Celusa), Bandeirante de Eletricidade (Belsa), que controlava: Companhia Luz e Força de Tatuí e Empresa Luz e Força Elétrica de Tietê Companhia Melhoramentos de Paraibuna (Comepa). A CESP, a partir de sua criação, passou a ser a maior empresa de geração de energia elétrica brasileira…
Em 27 de outubro de 1977, a razão social da CESP foi alterada para Companhia Energética de São Paulo, com isso se procurava-se ampliar a atuação da empresa abrindo espaço para o desenvolvimento de outras formas de energia que não somente a hidrelétrica. Assim teve início o estudo de fontes alternativas de energia, como o hidrogênio e o metanol. A CESP passou a ser uma empresa reconhecida mundialmente em função de sua tecnologia desenvolvida nas áreas de geração, transmissão e distribuição de energia elétrica. Os trabalhos desenvolvidos na área de meio ambiente e hidrovia foram pioneiros no setor elétrico brasileiro, e serviram de referência ao setor. (Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/CESP)
E aí, no governo Mário Covas, a empresa estatal paulista foi privatizada, ou como dizia o jornalista Aloísio Biondi, foi privadoada ao capital privado. Mas essa é uma outra história que nunca foi devidamente contada pela mídia brasileira. A grande imprensa não teve a mesma coragem e o desprendimento que apresenta nos dias de hoje, quando denuncia os escândalos no Estado.
Ditadura e silêncio
Usando o termo cunhado pelo jornalista Elio Gaspari, colega de Rossi na Folha de S.Paulo, a privataria ocorrida no governo anterior, quando foram privatizados os setores elétricos e de telecomunicações, além do siderúrgico e da empresa de mineração Vale do Rio Doce, tão escandalosos quanto o que ocorre hoje em dia, ficaram escondidas nas páginas internas dos jornais por pouco tempo, isso quando eram citadas. De maneira geral, estes episódios passaram em branco. Afinal, o interesse maior eram as privatizações e os milionários negócios que representavam para os governos estaduais, como o de São Paulo, e para o governo federal de então.
Bem, voltando ao assunto em pauta, o que importa nisto tudo é o seguinte: costumava-se dizer que a engenharia brasileira de grande porte e que a indústria mecânica pesada e eletroeletrônica do país se desenvolveram nesta época face às grandes obras, especialmente no setor elétrico. Grandes barragens e usinas hidrelétricas que hoje represam e geram eletricidade para São Paulo e o país foram construídas nos rios paulistas Paraná, Grande, Tietê, Paranapanema. Foram obras gigantescas para a época, as maiores do mundo de então, como a Usina Hidrelétrica de Ilha Solteira e de Jupiá, ambas no Rio Paraná. Era motivo de orgulho para todos do setor, e no entanto, como se soube mais tarde, quase todas estas grandes obras foram superfaturadas. Custaram mais do que deveriam custar e quem pagou essa ‘pequena quantia a mais’? O erário, o Estado, a poupança social advinda de impostos e taxas que cidadãos paulistas pagaram e pagam todos os anos. Durante décadas esta informação, conhecida em vários meios ligados ao poder, inclusive pela imprensa paulista, ficou escondida.
É claro que a ditadura militar de 64 ajudou nesse silêncio. Havia censura nos meios de comunicação do país e não havia transparência nenhuma nos negócios em que Estado e empresas privadas atuavam. Não é à toa que foi neste período ditatorial que a corrupção, em todos os níveis da sociedade brasileira, mais se desenvolveu e se fortaleceu. Mesmo com a democratização e a eleição de presidentes pelo voto direto e popular, essa sistemática se manteve.
Na surdina
Não só no Estado, mas também no setor privado e no comportamento das pessoas (‘tem que levar vantagem em tudo, certo?’, dizia um anúncio dos anos 70), a corrupção existe, o tal ‘jeitinho’ brasileiro para ‘levar vantagem em tudo’. Pequena, média ou grande, a verdade é que ela faz parte do dia-a-dia da sociedade brasileira, apesar dos setores que combatem a corrupção constantemente. Quando as pessoas fazem de tudo para não pagar o imposto de renda, independentemente de sua legitimidade, esse procedimento de sonegação é, também, corrupção. É o mesmo mecanismo do caixa dois que as empresas fazem para fugir do fisco ou para esconder a corrupção com o Estado e ou entre elas mesmas, nos seus negócios.
Nos países do G-8, o chamado ‘grupo dos oito países mais industrializados do mundo’ também existe corrupção. Casos como o da Enron americana, do banco HSBC de Hong Kong na Inglaterra ou de outros setores da economia destes países mais industrializados são alguns exemplos. Na França, no Japão, na Itália, Espanha é comum ver casos de corrupção envolvendo empresas privadas, administrações federais e autoridades do governo. A diferença, em alguns casos, é que nestes países existe uma sociedade civil mais forte e organizada que pressiona setores governamentais e a própria Justiça para que os corruptos sejam julgados e responsabilizados pelo que fizeram.
Às vezes dá certo, às vezes não, talvez conforme o montante do dinheiro envolvido. Se for muito alto, envolvendo muita gente importante, muitas ‘autoridades’, tal como aqui, a coisa tende a cair no esquecimento e tudo se resolve na surdina. Situações assim já foram mostradas inúmeras vezes pela imprensa, na literatura, no cinema, no teatro. Não é mais segredo para ninguém medianamente informado.
Importa é o partido?
No Brasil, o Estado, tradicional e historicamente, tem sido ferramenta de acumulação de capital e de distribuição da renda nacional à burguesia, seja ela nacional, seja estrangeira. Como nunca houve uma sociedade civil organizada e forte por aqui, as pressões sociais, políticas, partidárias para que corruptores e corruptos fossem penalizados simplesmente não existiam. Exceção feita quando interessava à burguesia patropi na disputa política pelo poder. Aí, era uma outra história.
A campanha contra Getúlio Vargas, em seu último governo como presidente eleito (1951-1954), é apenas um exemplo da utilização da questão da ética na política na disputa do poder por setores da burguesia que eram contra a Petrobrás. E assim foi também durante o governo JK (1956-1960), Jânio Quadros (1961) e Jango Goulart (1961-1964), últimos presidentes eleitos até o golpe militar de 1º de abril de 1964. A ditadura militar só reforçou esta característica do Estado brasileiro, além de reforçar a corrupção como uma moeda no tráfico de influências entre políticos, autoridades e empresários do país ou do estrangeiro.
A corrupção é uma forte moeda política de poder, usada e abusada por todos os governos que passaram pela capital do Brasil, mesmo depois da ditadura militar. Uns mais, outros menos. Uns com mais maestria, outros com menos. Mas, sem dúvida, tem sido a mais forte moeda de poder existente no país. Então, querer resgatar o Estado das mãos dos delinqüentes, como propõe Rossi, realmente não é uma tarefa fácil, até porque quem são exatamente esses delinqüentes? Serão só autoridades, empresários, políticos não importa de qual partido? Ou importa, sim, o atual partido que está no poder e é por isso que é necessário resgatar o Estado das mãos destes delinqüentes? É isso?
O que menos importa
Essa proposta precisa ficar mais clara e objetiva. Talvez seja necessário um trabalho mais fundo de investigação jornalística, e não apenas comentários opinativos. Provavelmente, nesta investigação, o repórter encontrará coisas mais interessantes e, talvez, mais perigosas do que simplesmente a existência de figuras políticas e de empresas do Estado na complicada e extensa teia da corrupção. Talvez o jornalista consiga desvendar os motivos que impedem que a corrupção endêmica acabe de vez, porque se isso acontecer de fato, muito provavelmente as estruturas de vários setores da economia brasileira, com fortes ligações internacionais, ficarão seriamente abaladas, provavelmente a bolsa perderá negócios, o dólar voltará a subir.
Um trabalho jornalístico mais profundo e sério encontrará obstáculos difíceis de ultrapassar, informações extremamente sigilosas e confidenciais, algo parecido aos filmes americanos em que o mocinho jornalista arrisca a vida em nome da ética e da responsabilidade social da informação. Parece ficção. Será que é?
Ou, posto de outra forma, como o cacoete que Rossi gosta de usar, a corrupção não é de forma alguma característica deste Estado, deste governo, deste partido, destes políticos, deste Congresso. É sim, característica do sistema capitalista, goste-se ou não do termo, e mais ainda, da forma histórica com que as elites deste país construíram o aparelho de Estado, visando unicamente a sobrevivência dela própria, facilitando a acumulação de capital nacional ou transnacional, transferindo renda da poupança nacional para seus bancos, empresas etc. Quanto ao país, oras bolas, isso é o que menos importa. Então, caro Rossi e caro Gaio, que delinqüentes são esses?
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Jornalista