Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Carlos Heitor Cony

‘Em todo o mundo, a mídia está enfrentando dificuldades, seja pelo alto custo da informação e do entretenimento, seja pela concorrência que torna a oferta maior do que a procura. Para piorar o quadro, ela vive de fatos que não cria nem domina. Fatos que não acontecem em ordem programada. Deixam de estourar durante semanas e meses e, de repente, estouram todos ao mesmo tempo.


Foi o que ocorreu nas duas últimas semanas. Morre o papa. Morre o príncipe de Mônaco. O herdeiro do trono da Inglaterra se casa com uma plebéia. No plano doméstico, acusações graves contra um ministro, contra o presidente do Banco Central. Um ex-presidente do mesmo banco é condenado a dez anos de prisão.


Bastava um só desses acontecimentos para render dias de mídia farta, jornais, TVs e emissoras de rádio tendo assunto para editoriais, resenhas, opiniões, comentários e fofocas nas seções especializadas.


Alguns deles terão suíte garantida (uso a palavra ‘suíte’, que era comum nas redações para designar o desdobramento, a continuidade de um fato ou de uma notícia.) A eleição do papa, por exemplo, pode manter a mídia numa boa durante semanas, quem sabe até mais do que isso, conforme as coisas acontecerem na capela Sistina e, um pouco também, fora dela.


O casamento do príncipe Charles parece que já deu o que tinha de dar. E o outro príncipe, o de Mônaco, deu azar: morreu quase ao mesmo tempo em que morria um papa. A seu modo, representou as cores do baixo clero na mídia internacional.


Lembro o político brasileiro, candidato presidencial que quase foi eleito. Ia embarcar num avião quando notou que no mesmo vôo viajaria um time de futebol, o do Botafogo dos áureos tempos. Cancelou a viagem. Explicou para a mulher: ‘Se o avião cair, ninguém falará de mim’.’


Roberto Damatta


‘A morte do Papa’, copyright O Globo , 13/04/05


‘Você pode medir a experiência de uma pessoa perguntando-lhe sobre os Papas de sua vida. Cada geração tem um Papa, e o Papa se identifica de tal ordem com o papado e com a Igreja da qual é o chefe com poderes divinos e infalíveis, que temos a impressão de que ele possui a perpetuidade do cargo e do papel que encarna. E não é para menos, pois, sem essa Igreja Católica Apostólica Romana que tanto criticamos, não haveria a tal civilização ocidental.


Para muitos, o Papa foi o polonês Karol Wojtila, encarnado no papel como João Paulo II, cuja morte abre um enorme vazio no seio da comunidade católica mundial, ao mesmo tempo que revela ao mundo o poder de preenchimento e renovação desta comunidade.


Quando eu crescia e tomava consciência de que havia um Papa em Roma, um chefe da Igreja capaz de decretar dogmas, uma palavra cujo sentido profundo eu até hoje tenho dificuldade em assimilar e compreender, uma torrente de questões pesavam sobre minha consciência de católico, porque a materialidade do Papa, o castelo onde residia, as roupas ricas e bizarras que vestia, o trono do qual se dirigia ao povo, a retórica aristocrática que o envolvia e que remetia às origens históricas e simbólicas do papado, perturbavam a mensagem de pobreza e despojamento de Cristo. Como, indagava, o Papa pode ser tão gloriosamente rico, se Cristo foi esplendorosamente pobre?


Era difícil para mim entender que Cristo não foi nem Papa nem chefe de uma igreja – uma instituição humana e, como tal, repleta dos sinais e estigmas deste mundo. Cristo, como Deus encarnado, deixou para um dos seus discípulos, Pedro, as chaves do Reino e a tarefa de organizar aquilo que viria a ser o pontificado – a ponte a ligar este mundo com o outro. A escolha de Pedro, apóstolo que negou Cristo três vezes, como gerente das portas do Céu, é mais do que reveladora. É adequada e justa como um ato de aceitação do humano (com suas dúvidas e seus paradoxos) pelo divino. Algo igualmente coerente com o papel paradoxal dos porteiros e guardiães das entradas, espaços entre a casa a rua.


Se deveria haver uma segunda mediação entre o Céu e a Terra, um caminho a ser pavimentado pela Igreja, mais rotineiro e tranqüilo, entre Deus e os homens. Uma mediação menos cruenta, menos terrível e messiânica, ela teria que ser colocada sobre os ombros daquele apóstolo que foi a um só tempo o mais humano e o mais emblemático. E se deveria existir uma igreja de Cristo neste mundo, uma instituição destinada a oferecer piedade e salvação para todos os homens, irmanados sem diferença pela mensagem universal e antitribal de Cristo, essa igreja teria de se revestir dos sinais da pompa e da circunstancia que, afinal de contas, marca todo chefe das grandes instituições humanas.


Só mais tarde, então, é que eu fui compreender que, muito menos do que o trono, os palácios e as vestes, era a conduta, o exemplo, a autenticidade pessoal, e as decisões que contavam. Na Igreja, a pompa é uma metáfora para uma grandeza que se situava fora deste mundo. Já nas realezas e nos governos dos estados seculares, a pompa é uma das formas reais de afirmação do poder de destruir e mandar.


Neste sentido, o papado é cercado de pura pompa, ao passo que um chefe de Estado tem, como insinuou Stalin para Pio XII, suas divisões e, hoje, suas bombas de hidrogênio. O chefe de um estado tem poder físico, o Papa conta ‘apenas’ com esse contundente poder mobilizador da fé, da esperança e da caridade que testemunhamos com certa surpresa nesses dias de despedida do corpo do Papa e de reconstituição do papado.


Eu que supunha que Deus estava devidamente morto, fiquei surpreso com a tsunami de religiosidade e de transcendência despertada pela morte do Papa. É claro que aguardava o espetáculo das demagogias, do qual salta aos olhos o gesto do comandante Fidel ao quebrar o seu jejum de missa. Mas me surpreendeu os gestos de solidariedade, de fé e de admiração pelo Papa, testemunhos de um misto de nostalgia e atração pelo divino, esse divino que fica do outro lado, e que a vida moderna tem sistematicamente exorcizado quando projeta pôr neste mundo aquilo que as religiões de salvação situavam no outro.


É certo que a avassaladora homenagem ao Papa no seu funeral aconteceu porque o papado é uma instituição centralizadora, porque a Igreja ainda tem um importante papel a desempenhar no mundo moderno e porque, com certeza, João Paulo II foi um Papa que entendeu o seu papel como um agente religioso – como um peregrino como foi muito justamente chamado — num mundo globalizado.


Tudo isso ajuda a entender a avalanche de fé que baixou sobre a Terra, transformando a Roma moderna numa cidade de devoção à antiga, onde o espetáculo não era apenas o do esporte, da moda, do dinheiro, da sensualidade e da boa vida. Era o do reconhecimento de uma liderança, de um símbolo de limites: de uma referência moral. Essa referência sem medo de acreditar e com consciência plena de que a limitação humana transborda na divindade, tal como a busca da vida faz com que a divindade procure o humano.


ROBERTO DaMATTA é antropólogo.’





O PAPA E A CHACINA
Esther Hamburger


‘Papa vira espetáculo, e chacina é esquecida ‘, copyright Folha de S. Paulo, 13/04/05


‘Hoje a cripta papal na basílica de São Pedro será aberta ao público. Apesar do desejo do pontífice, que teria manifestado a vontade de ser enterrado na terra, vale o espetáculo institucional de um ritual milenar -fúnebre e de sucessão.


No Brasil, a cobertura televisiva mostrou detalhes meticulosos da cerimônia majestosa, em detrimento de outro ritual, esse bem menos glorioso, o enterro das vítimas de mais uma hedionda chacina carioca.


A cripta de Karol Wojtila tem três camadas. O invólucro discreto de madeira clara que envolveu o corpo do papa polonês durante os dias de velório foi colocado dentro de uma urna de chumbo, marcada com as insígnias de seu governo. Por fim, um revestimento de carvalho envolveu as duas primeiras. Ligeiramente elevada, longe da terra, a cripta tem acabamento final frio e discreto.


Nos últimos dez dias, correspondentes internacionais descreveram as diversas fases do velório e o sepultamento, captando depoimentos de líderes políticos mundiais e fiéis emocionados.


À diferença da improvisação que marcou o ritual fúnebre de celebridades populares nos últimos anos, a morte do papa segue à risca um cerimonial todo pré-definido.


O papa, que ficou conhecido por inserir a Igreja Católica na era da mídia, não escapou do espetáculo na hora da morte. Perversa e inadvertidamente, a extensão da cobertura didática abafou um outro ritual de morte de interesse coletivo.


Sensacional, dramático, banhado em sangue, o aberrante resultado do desabuso da polícia na Baixada Fluminense acabou aparecendo como menos relevante.


Apesar de suas características apelativas, a morte arbitrária de cidadãos inocentes teve menos espaço na TV. Esse é o momento em que a cobertura da hora da morte escapa à vontade do papa, dos meninos da baixada e dos pauteiros.


Esther Hamburger é antropóloga e professora da ECA-USP’





Marcelo Coelho


‘Massacres e milagres ‘, copyright Folha de S. Paulo, 13/04/05


‘Peço desculpas pelo lugar-comum, mas, se a chacina da Baixada Fluminense tivesse acontecido em algum bairro de classe alta de São Paulo ou do Rio, tudo estaria de pernas para o ar, governadores e ministros estariam pedindo demissão, o presidente Lula e sua comitiva não teriam embarcado para assistir ao funeral do papa e talvez começasse de fato a mudar a escandalosa rotina de violência policial instaurada no país.


Certas expressões correntes -’violência policial’, por exemplo- terminam encobrindo de forma mais ou menos inocente o descalabro dos fatos. Talvez fosse mais exato falar em ‘criminalidade policial’.


Toda vez que ligo o rádio e ouço histórias de seqüestro, sou informado de que algum PM participava do crime. Já não se percebe nenhum vestígio de ironia quando o locutor diz que tais e tais membros da polícia foram indiciados por formação de quadrilha. Será que não se trata de uma quadrilha só?


Quantos serão os policiais que ainda resistem a integrá-la é uma pergunta que não tenho como responder. Dada a situação de desgoverno crônico dessa área, quem sabe um dia seja mais fácil extingüir a polícia em vez de extingüir a criminalidade.


Segundo o que li, justamente se tentava moralizar a atuação policial naquele pedacinho da Baixada Fluminense. Os descontentes logo se manifestaram; mas não por meio de boicotes, tiros para o ar, uma greve que fosse. Saíram matando a esmo os cidadãos.


Jaílton da Silva, por exemplo, tinha 25 anos, trabalhava numa oficina mecânica e se lembrou de que devia R$ 2 no bar do Caíque, perto de sua casa. Foi fuzilado na calçada. Dentro do bar, um menino de 14 anos chamado Bruno jogava fliperama. Sua mãe viu os assassinos saírem de um carro e começarem o massacre. O impulso era atravessar a rua em direção ao bar, mas seu marido a arrastou para dentro de casa, evitando que fosse morta também.


Imaginemos que a história fosse um pouco -só um pouco- diferente. Imaginemos um grupo de oito policiais militares atuando num bairro como Higienópolis. De repente, esses policiais começam a ter problemas com a lei. Não tinham feito nada de mais: mataram duas pessoas, talvez traficantes, vagabundos ou assassinos. Em seguida, deceparam um dos cadáveres, jogando a cabeça no pátio da unidade em que serviam.


Os oito policiais terminam presos. Seus colegas não se conformam. Pegam um carro e -não vamos esquecer, estamos num bairro nobre de São Paulo- fuzilam 30 pessoas que entravam no shopping ou retiravam dinheiro numa agência do Itaú. Cobrem de sangue a calçada da avenida Angélica e acertam um menino de 14 anos que tinha ido pegar um videogame numa locadora da rua Maranhão.


Não sei se, nesse caso, as revistas semanais falariam da morte do papa na primeira página. Os protestos contra a chacina de Higienópolis sem dúvida parariam o país. Mas o que tivemos foi apenas uma chacina em Nova Iguaçu. Lá se realizou, aliás, um ato público contra o ocorrido: não juntou mais de 400 pessoas.


De qualquer modo, minha hipótese de uma chacina em bairro nobre é claramente forçada. Sabemos que qualquer região metropolitana brasileira tem sua parcela de áreas conflagradas, nas quais a disputa pelo território e pelo poder segue padrões dignos da África ou do Haiti (como bem lembraram Fernando Gabeira e Contardo Calligaris aqui na Ilustrada), ao lado de áreas onde uma caricatura de civilização, com seus shoppings e butiques, trata de seguir o seu caminho e seus caprichos.


Sobre o futuro da Igreja Católica, o sociólogo Antônio Flávio Pierucci desenvolveu um raciocínio muito interessante no suplemento Mais! deste domingo. Ao contrário das igrejas protestantes, em especial as pentecostais, o catolicismo estaria cada vez menos voltado para a conversão dos indivíduos, afirmando-se apenas como uma religião característica de determinados povos e culturas específicas. Perde, assim, o poder de transmitir uma mensagem universal, para pessoas isoladas e ‘disponíveis’ aos seus ensinamentos. Transforma-se em patrimônio cultural que carregamos de nascença, mais do que num conjunto de convicções a que aderimos individualmente.


Talvez isso explique, em parte, o paradoxo que vivemos nestes dias de comoção pela morte do papa. A maioria dos que lhe prestaram homenagem provavelmente não compartilha da extrema rigidez das atitudes defendidas pelo Vaticano. Está em curso, a meu ver, um fenômeno mais próximo do culto televisivo à personalidade de João Paulo 2º do que um movimento de reflexão individual no sentido de seguir as virtudes preconizadas por ele.


Assim, o catolicismo desindividualiza-se, ‘culturaliza-se’, para seguir o raciocínio de Pierucci, mas sem deixar de ter apelo para o sujeito desenraizado e sem deixar de seguir uma linguagem ‘moderna’: obedece à lógica da cultura de massas, das revistas de celebridades, da espetacularização. O papa, como já se dizia, é pop. Desse ponto de vista, sua intransigência em várias questões impopulares terá funcionado como o simulacro de um absoluto, como uma marca diferenciadora, como um recurso identitário, algo capaz de impor mais o respeito do espectador distraído do que atos de obediência ou introspecção.


Organiza-se, e imagino que a idéia não venha de agora, a canonização de João Paulo 2º. Noticiam-se seus primeiros milagres. Espero que sejam tão numerosos quanto os benefícios que a pesquisa com células-tronco é capaz de oferecer à espécie humana.’