Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Marcelo Beraba

‘O papa João Paulo 1º morreu na noite do dia 28 de setembro de 1978, uma quinta-feira, mas sua morte só foi descoberta no início da manhã de sexta, por volta das 4h30, horário de Roma. No Brasil, ainda era madrugada.

Naquela época, quase todos os jornais brasileiros começavam a ser impressos depois da meia-noite. As máquinas já rodavam quando a notícia chegou ao Brasil, via telex. O jornalista Henrique Caban, então chefe da Redação do ‘Globo’, se lembra de que foi acordado pelo secretário da madrugada, por volta das 2h, com o pedido de autorização para parar as rotativas e trocar a manchete.

Algo parecido aconteceu nas principais Redações. A Folha começou a imprimir sua edição do dia 29 com uma manchete sobre a localização da usina nuclear: ‘Angra é sujeita a terremoto’. De madrugada, trocou o título: ‘O papa João Paulo 1º morreu’.

No período de 26 anos que separam as mortes de João Paulo 1º da de João Paulo 2º houve uma revolução nos jornais. Telex, máquinas de escrever, arquivos em papel, impressão depois da meia-noite – isso tudo ficou para trás, não há nem sequer memória nas Redações.

Erros e acertos

Os jornais melhoraram neste quarto de século? Não há dúvida. Têm mais recursos tecnológicos, as empresas estão mais bem estruturadas e, no geral, oferecem um produto mais bem feito.

A morte de João Paulo 1º foi uma grande surpresa. Ninguém esperava um pontificado tão curto, de apenas 33 dias. No dia do anúncio, sexta, a Folha substituiu a manchete com notícias das agências internacionais e limitou a cobertura à primeira página, com uma foto.

No sábado, saiu com uma edição de cinco páginas e um editorial. Publicou, então, textos enviados por seus correspondentes em Roma, Pedro del Picchia, e em Nova York, Paulo Francis. Há uma página biográfica assinada por Gerardo Mello Mourão, uma análise da UPI e um texto de Newton Carlos sobre a eleição do novo papa. No domingo, o jornal circulou com quatro páginas sobre o assunto.

A edição da Folha de domingo passado tinha 14 páginas e meia. Em comum com as edições de 1978 havia apenas a assinatura de Gerardo Mello Mourão.

Os jornais se beneficiam hoje do volume quase infinito de informações disponíveis sobre qualquer assunto e da instantaneidade da comunicação. O agravamento da doença do papa nos últimos anos deu a todos tempo para planejar e produzir com calma a edição da morte. Por isso, puderam oferecer mais textos históricos e analíticos. Mesmo assim, erraram.

A Folha informou, na terça-feira, que o papa não havia deixado testamento. E não publicou, na quarta, a íntegra da polêmica entrevista em que o cardeal d. Eusébio Scheid, do Rio, diz, entre outras coisas, que Lula não é católico, mas ‘caótico’.

De positivo, o jornal teve despachos de Roma bem informados e bem escritos enviados por Clóvis Rossi, teve um material de apoio produzido por um especialista, o professor Paulo Daniel Farah, não entrou na torcida nacionalista e inócua pela eleição de d. Cláudio Hummes e, na sexta, foi o único dos grandes jornais a questionar a interpretação corrente, e aparentemente errada, de que no testamento o papa cogitara renunciar.

Jornal velho

Há, no entanto, um problema grave nesta cobertura. Apesar de a morte ter ocorrido na tarde de sábado (16h37 no horário de Brasília), milhares de leitores receberam seus jornais, no domingo, sem a notícia.

Os diários tinham, em 78, infinitamente menos recursos que dispõem hoje. Mas entregavam jornais quentes. Os avanços que as novas tecnologias lhes proporcionaram não resultaram em mais tempo para produzi-los, ao contrário. Os jornais concluem suas edições cada vez mais cedo.

Há razões logísticas e comerciais para isso. A operação de distribuição é hoje mais complexa, e os jornais têm tiragens muito maiores e mais volumosas do que há 26 anos.

Mas nada disso conforta os leitores da Folha que moram em Salvador, em Recife ou em Porto Alegre e que não encontraram no jornal de domingo a informação que já tinham visto na TV, lido nos sites e ouvido nas rádios.

No caso da Folha, o jornal de domingo que é enviado por avião para o Norte, o Nordeste e o Rio Grande do Sul e é distribuído para parte das bancas 24 horas de São Paulo começou a ser rodado às 14h, mesmo diante da iminência da morte do papa. Menos de três horas depois a manchete ‘Papa sabe que está morrendo, diz cardeal’ estava velha. No ‘Globo’ ocorreu o mesmo. Começou a rodar às 11h30 com a manchete ‘Estado do Papa é irreversível’. E o ‘Estado’ cravou ‘Papa perde consciência; coração resiste’.

Com o anúncio da morte, a Folha parou a impressão, produziu um novo jornal e reimprimiu 37 mil exemplares para cobrir algumas cidades que deveriam receber a primeira edição. Mesmo assim, foram distribuídos 13.419 jornais com a manchete desatualizada. Se comparamos com a tiragem deste domingo, de 425 mil exemplares, isso tem um peso de apenas 3%. Mas para os leitores que receberam o jornal envelhecido não há consolo.

Por que os jornais precisam fechar tão cedo aos sábados? Segundo as empresas, para garantir que sejam entregues cedo no domingo (a distribuição é mais complicada do que durante a semana por escassez de vôos) e para colocar parte da tiragem nas bancas na tarde de sábado, atendendo principalmente aos que querem consultar antes os classificados. O fechamento prematuro da edição de domingo é uma invenção dos EUA importada na década de 80.

O problema da desatualização também afeta os leitores de São Paulo. Gilberto Pelinson Ximenes reclamou do ‘Placar’ de Esporte do domingo do papa. A seção trazia uma relação de 49 jogos de futebol realizados no sábado. Nenhum tinha o resultado, apenas um aviso: ‘[Jogo] Não encerrado até o fechamento desta edição’. No tempo de João Paulo 1º não tinha disso.’

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‘Reflexão – ‘Contar bem boas histórias’’, copyright Folha de S. Paulo, 10/4/05.

‘O jornalista Clóvis Rossi trabalhava na revista ‘IstoÉ’, em 1978, quando morreu o papa João Paulo 1º. Tinha 15 anos de profissão, já havia chefiado a Redação do ‘Estado de S.Paulo’ e começava a acumular experiência em coberturas internacionais, como o golpe militar no Chile (1973) e a Revolução dos Cravos (1974), em Portugal.

Rossi está em Roma desde o dia 1º e são deles os principais relatos que a Folha vem publicando desde a morte de João Paulo 2º, no dia 2.

Pedi a ele uma reflexão sobre o que mudou no jornalismo brasileiro nesses 26 anos que separam os anúncios das duas mortes.

‘A grande diferença entre o jornalismo que noticiou a eleição de Karol Wojtyla e o que anunciou a sua morte é o fato de que a mídia impressa perdeu a sua grande identidade: justamente a característica de ser o ‘anunciador’ de fatos.

Perder o que estava no DNA dos jornalistas desde Gutemberg causa a desorientação que todos sentimos hoje em dia nas Redações. E, suspeito, é um dos grandes fatores na formidável hemorragia de leitores de que sofre a mídia impressa (no mundo todo, porque a desorientação é global).

O drama é simples de expor: continuamos presos à ditadura do ‘realizou-se ontem’, quando hoje a internet e as TVs dão na véspera o que daremos muitíssimas horas depois.

No caso da morte do papa, quem se sentiria atraído pelos jornais cujos títulos tivessem sido (como, suponho, foram): ‘O papa morreu?’. Cento e dez por cento dos leitores já sabiam do ‘realizou- se ontem’ umas 12 horas antes de os jornais começarem a circular.

Constatado o problema, não me pergunte a solução. Eu não a tenho. Temo até que meus palpites – e faço questão de grifar palpites – sejam mais problema do que solução. Mas eu apostaria em um jornalismo que:

1 – Recuperasse a qualidade do texto. Afinal, é a única característica que diferencia jornal de TV (e, de certo modo, também da internet, que é mais afobada e, portanto, menos preciosa no texto). Temos que contar bem boas histórias, levar o leitor pela mão para o local dos fatos, com suas cores, sabores, odores.

2 – Montasse o quebra-cabeças. Antes, a nossa função era recolher as peças do quebra-cabeças e oferecê-las ao leitor. Hoje, as peças estão disponíveis em outras mídias. Resta-nos a competência de montá- las de forma que faça sentido para o leitor.

3 – Opinasse sobre a forma que tomou o quebra-cabeça.’’