Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Último Segundo

‘O resultado do conclave que vai escolher o sucessor do papa João Paulo 2º é completamente imprevisível, mas o
processo de escolha deve ser rápido, segundo a maioria dos observadores
italianos entrevistados pela BBC Brasil.


Os cardeais temem passar uma imagem de indecisão, segundo Marco Politi,
especialista em Vaticano do jornal La Repubblica.


A história reforça essa hipótese. Os últimos cinco papas da Igreja Católica
foram eleitos em no máximo três dias. Até agora, o nome que teve maior destaque
como candidato à sucessão foi o do cardeal Joseph Ratzinger.


Ele continua um forte candidato, só que Ratzinger teria posto uma condição
para entrar efetivamente como candidato: obter a maioria absoluta dos votos,
isto é, ao menos 58, já no primeiro escrutínio.


Oposição


Ratzinger é um dos homens mais preparados e de maior autoridade dentro da
Igreja Católica, além de ter sido o principal colaborador de João Paulo 2º.


Ele já vinha sendo apontado como um dos mais fortes ‘papáveis’ há varios
meses, quando se especulava sobre o futuro da igreja com o agravamento do estado
de saúde do papa João Paulo 2º.


Durante as últimas reuniões dos cardeais, da semana passada, o nome de
Ratzinger foi citado pela imprensa italiana como o único candidato certo, graças
a cerca de 50 preferências entre os 115 cardeais eleitores.


Em oposição à candidatura de Ratzinger, segundo os vaticanistas, o nome mais
cotado seria o do ex-arcebispo de Milão Carlo Maria Martini.


Defensor de uma igreja mais aberta ao diálogo com a sociedade e com maior
participação dos bispos no governo central, Martini, por sua vez, apoiaria o
atual arcebispo de Milão, Dionigi Tettamanzi.


Segundo o vaticanista Luigi Accattoli, do Corriere della Sera, Ratzinger –
que é decano do Colégio de Cardeais – teria o apoio dos italianos Angelo Scola,
Camillo Ruini, Tarcisio Bertone e Giacomo Biffi e dos colombianos Afonso Lopes
Trujillo e Dario Castrillon Hoyos.


Martini contaria com o consenso de um grupo basicamente centro-europeu,
formado pelos alemães Karl Lehman e Walter Kasper, pelo francês Jean Louis
Tauran, pelo tcheco Miloslav Vlk, pelo belga Godfried Danneels e pelo
norte-americano Francis George.


Novos nomes


Os dois candidatos, o conservador Ratzinger e o reformista Martini, poderiam,
contudo, ser apenas ‘porta-bandeiras’ de duas linhas políticas diferentes, na
avaliação dos vaticanistas.


Outros nomes estariam prontos a aparecer, segundo eles. Até agora circularam
os nomes de cerca de 20 candidatos à sucessão de João Paulo 2º. Instituição de
história secular, o conclave nada tem a ver com os processos eleitorais comuns.


Apesar de catalizar a atenção do mundo ocidental, os candidatos não fazem
campanha (pelo menos aparente), os programas não são conhecidos oficialmente, é
proibido falar com jornalistas, e tudo é coberto de grande mistério.


Fase ‘mágica’


As análises feitas pela imprensa não se baseiam em informações oficiais, mas
em rumores, comentários e declarações, às vezes não vindas de cardeais
diretamente envolvidos.


‘É uma nova e revolucionária fase da história do jornalismo: fase mágica’,
define com ironia Giancarlo Zizola, ensaísta e estudioso de Vaticano, autor de
diversos livros sobre a sucessão papal e o conclave.


Ele diz que, diante da impossibilidade de obter informações diretas, visto
que os cardeais aceitaram a imposição do silêncio, a mídia faz conjeturas e
especulações.


Quem justifica a escolha de um italiano por suas habilidades diplomáticas e
conhecimento da ‘máquina’ do Vaticano, é desmentido por aqueles que indicam a
internacionalização da igreja como irreversível.


O critério de eleger um papa dando preferência a uma região diferente do
mundo de cada vez, na opinião de d. Claudio Hummes, em entrevista publicada
neste domingo na primeira página de Il Sole 24 Ore, seria ‘uma distorção
absurda’.


Segundo ele, assim, o conclave perderia sua característica. ‘O conclave deve
escolher o homem considerado como o mais rico em virtudes evangélicas e carisma
para carregar a cruz do papado. Não é importante de onde vem, mas sua
experiência de igreja e a qualidade espiritual’, definiu d. Claudio.


Divisões


O nome do arcebispo de São Paulo está na lista dos 20 mais citados para
suceder João Paulo 2º, mas nos últimos dias, perdeu destaque.


Não houve, até agora, confirmação de coalizões de cardeais por área
geográfica. Os alemães estariam divididos em torno de candidatos diferentes,
assim como os norte-americanos e os próprios italianos.


Os Estados Unidos e a Alemanha, dizem os observadores, têm uma forte
influência no conclave também, porque são os maiores contribuintes financeiros
do Vaticano.


A Alemanha possui seis cardeais eleitores. Os Estados Unidos, 11. O Brasil,
mesmo sendo, segundo as estatísticas, o país com maior população católica do
mundo, possui apenas quatro.


Apesar das especulações e rumores, o porta-voz do Vaticano, Joaquín
Navarro-Valls, disse que, durante as reuniões dos cardeais, nenhum nome foi
citado para a sucessão.


As discussões foram sobre os temas e os desafios do futuro pontificado,
segundo ele.


‘Neoconservador’


Para o vaticanista do semanário Espresso, Sandro Magister, até agora não foi
apresentado um projeto bem delineado e de qualidade, que seja uma alternativa ao
de Ratzinger e Camillo Ruini – presidente da Conferência Episcopal Italiana e
vigário de Roma.


Os dois estariam à frente do que Magister define como grupo neoconservador,
com uma pauta bem precisa: retomar o controle do governo da igreja, com nova
campanha missionária, limpar a ‘sujeira’ apontada por Ratzinger no interior da
igreja – que ele definiu como um ‘barco prestes a afundar’ -, reforçar a
doutrina e a moral do clero e sobretudo se concentrar no desafio da cultura
leiga que se afasta de Deus e da vida.


O vaticanista não vê programas, mas apenas três objeções a esta linha. Uma
delas, a que dá prioridade à justiça social – com Hummes e Maradiaga – teria
apoio fraco no conclave, na avaliação de Magister.


O grupo que é contrário ao celibato e a favor da participação das mulheres na
igreja e da comunhão aos divorciados – com o apoio de Martini, Danneels e do
norte-americano Mahony – também não teria chances, segundo ele.


Em terceiro, a linha dos moderados, com os italianos Giovanni Battista Re,
Angelo Sodano e Crescenzio Sepe, rivais entre si mas unidos na oposição a
Ratzinger, de acordo com sua análise.


Qualquer que seja o resultado, não haverá provas das votações. As cédulas
eleitorais e as anotações dos cadreais são queimadas no final de cada turno de
votação na estufa que lança a fumaça branca ou preta, que avisa se o novo papa
foi eleito ou não.’


 


Carlos Heitor Cony


‘Mídia frustrada’, copyright Folha de S. Paulo,
17/04/05


‘Não deixa de ser curiosa a tendência dos profissionais da mídia, a nacional
e a internacional, em relatar os preparativos do conclave que elegerá o novo
papa. Tratam a questão como se fosse uma convenção de partidos políticos, a
aprovação pelo Congresso de uma MP, a queda ou a nomeação de um ministro.
Reclamam da inexistência daquilo a que estão mais habituados: as ‘fontes’, que
dão o serviço para os profissionais que se mostraram úteis no passado.


É evidente que há correntes e até mesmo conchavos entre os cardeais, mas em
bases distintas, firmadas e confirmadas numa tradição secular que, bem ou mal,
tem dado certo. Se o conclave de 1978 tivesse sido aberto, aceitando análises,
sugestões e pressões dos profissionais da mídia, jamais um desconhecido cardeal
polonês teria sido eleito.


O estupor que predomina na mídia, no momento, é sobre o silêncio ‘imposto’
aos cardeais. Jogam a culpa na personalidade autoritária e conservadora do
cardeal Joseph Ratzinger, que foi a sombra de João Paulo 2º em várias questões e
terá forçosamente papel importante no conclave. O silêncio não é invenção
dele.


Como qualquer outra instituição, a igreja tem o mesmo direito das associações
que se dedicam à filatelia, à numismática, aos ‘boards’ que dirigem bancos e
empresas que são obrigadas a adotar, em sigilo, o planejamento para os
exercícios a curto ou a longo prazo.


Compreende-se a frustração dos profissionais da mídia, habituados a receber
informações quentes de como se processam as coisas num determinado setor. Vivem
disso, valorizam-se com isso, mesmo quando não conseguem as ambicionadas ‘inside
informations’.


Todos apreciariam andar nos corredores vizinhos à capela Sistina como andam
nos corredores dos Congressos nacionais, dos palácios presidenciais, nos
corredores da Rede Globo, perseguindo furos. Mas o furo do conclave, certo ou
errado, é mais em cima.’




Mario Vargas Llosa


‘O maior espetáculo do mundo’, copyright O Estado de S. Paulo,
17/04/05


‘A agonia, a morte e as exéquias de João Paulo II provocaram uma comoção sem
precedentes em todo o planeta. Até agora, só o assassinato do presidente Kennedy
fora objeto de uma emoção parecida, embora, postas numa balança, a repercussão
internacional deste último episódio resulte mínima comparada à do falecimento do
primeiro papa polonês da História.


Deve-se ver nesse extraordinário espetáculo um fenômeno superficial,
meramente midiático, instigado pela curiosidade frívola que os meios de
comunicação haviam mantido em ebulição, transformando Karol Wojtyla, desde
aquele 16 de outubro de 1978 em que subiu à cadeira de São Pedro até sua morte,
num dos ícones mais divulgados da atualidade? Sem dúvida, esse é um fator a
considerar na hora de explicar a quase incrível mobilização destes dias e a
atenção de boa parte do mundo voltada a Roma por causa do desaparecimento do
Sumo Pontífice. Mas é um fator entre outros, mais sérios, que convém tratar de
perfilar, já que contém advertências sobre a realidade política, espiritual e
cultural do mundo em que vivemos e seus caminhos imediatos.


A personalidade carismática e enérgica, de grande comunicador, e a coragem
pessoal que João Paulo II demonstrou ao longo de seu pontificado devem ser
levadas em conta, é claro, assim como a rotundidade retilínea de suas
convicções, algo que atrai muitos mortais, pois lhes dá segurança, os exonera
das corrosivas dúvidas e os absolve de ter de escolher entre opções às vezes
dilacerantes. Que outro, sobretudo se esse outro é alguém tão resoluto e claro
como Wojtyla, creia, pense e decida por alguém é algo que não só seduz muitos
católicos; trata-se de uma debilidade à qual é propensa boa parte da humanidade,
e não só entre os crentes, pois também ateus e agnósticos sucumbem a essa
tentação. É certo, também, que sua pregação em favor da paz, dos pobres, da
aproximação às outras igrejas, principalmente a judaica, e da solução negociada
dos conflitos e seus esforços nesse campo, durante a crise dos Bálcãs, por
exemplo, ou em prol de uma reabertura do diálogo entre Israel e Palestina,
contribuíram para lhe conferir uma imagem de líder sensível e carregado de
humanidade.


Dito isso, a idéia de democracia de João Paulo II não era precisamente aquela
cultivada por muitos de nós que nos consideramos democratas e para quem os
âmbitos da religião e do Estado devem estar tão claramente diferenciados quanto
o privado e o público. A idéia de um Estado laico e uma religião confinada na
esfera individual e familiar era intolerável para este papa que nunca deixou de
condenar com firmeza toda medida social e política que entrasse em conflito com
os ensinamentos da Igreja, ainda que se tratasse de disposições e leis aprovadas
por governos de inequívoca origem democrática, respeitosas do sistema legal
vigente e apoiadas pela maioria da população. A idéia de consensos alcançados
com base em concessões recíprocas, de coexistência na diversidade de modos de
vida e de costumes e práticas diferentes e às vezes inimigos entre si – a
essência mesma de uma sociedade democrática – tinha para João Paulo II uma
limitação dogmática: para os não-católicos também não devia ser tolerado aquilo
que ao rebanho católico era proibido e, segundo sua mensagem explícita, as leis
da cidade assim deviam determinar. No uso do preservativo, no divórcio e na
descriminação do aborto, entre outros temas, sua intransigência foi inabalável.
Essa concepção da democracia respondia a um modelo ideal que, mais que social
cristão, era excludentemente social católico.


Depois do nazismo e do comunismo, outra besta negra para Karol Wojtyla foi o
liberalismo, que ele denunciou com severidade destemperada em suas encíclicas.
Ele enxergava no liberalismo, como nas caricaturas e estereótipos dos marxistas
sobre o capitalismo, a origem de um sistema materialista, desumanizado,
rapinante e explorador, que sufoca a vida espiritual, incita à cobiça e ao
individualismo egoísta, aumenta os abismos econômicos entre ricos e pobres e
relaxa a moral e os costumes.


Por isso, atacava o mercado livre, descria da competência concedida ao
veredicto dos consumidores e defendia um intervencionismo estatal na economia
que, guiado pela doutrina da fé católica, impedisse os excessos, redistribuísse
os benefícios e garantisse a justiça social. A transparente boa intenção e a
eloqüência fogosa com que o papa vindo de Cracóvia promovia essas idéias não
podem atenuar seu anacronismo.


Sua rejeição da modernidade não dizia respeito somente ao domínio econômico.
Era ainda mais contundente quanto ao sexo e às relações humanas. Se, a partir do
Concílio e do pontificado de João XXIII, os chamados católicos ‘progressistas’
cultivavam ilusões sobre um ‘aggiornamento’ da Igreja, que admitisse o controle
da natalidade, que os sacerdotes se casassem, que a mulher assumisse funções
sacerdotais, e ainda medidas como a eutanásia, os matrimônios gays e a clonagem
de órgãos humanos, logo descobriram que, com João Paulo II, a Igreja não só não
faria a menor concessão em nenhum desses assuntos como, pelo contrário,
retrocederia até as posições mais tradicionais e intolerantes.


O paradoxal é que essa regressão conservadora, ao invés de acentuar as
divisões numa Igreja que já se encontrava muito dividida, parece tê-las
cancelado por um período que poderia ser longo. É uma das façanhas de João Paulo
II: ter conseguido uma unificação, um alinhamento na Igreja católica que ninguém
teria se atrevido a prever há um quarto de século.


Parece evidente que, hoje, a instituição está mais coesa, menos ameaçada por
crises e divisões, do que nunca antes em meio século. A unificação foi obtida
pelo método mais expedito: expulsando do rebanho os dissidentes e heterodoxos
ou, no mais indolor dos casos, mantendo-os dentro, mas mudos e invisíveis. A
Teologia da Libertação está liquidada e os que ainda a apregoam aos brados, como
Leonardo Boff, ou os teólogos críticos e pugnazes da linha oficial vaticana,
como Hans Küng, fazem mais ruído fora do que dentro da Igreja, onde sua
influência, por obra do papa falecido, parece decadente e talvez extinta.
Gustavo Gutiérrez conserva seu prestígio, mas suas posições se moderaram muito e
tudo indica que a mais alta hierarquia já não as considera ‘subversivas’.
Prelados e sacerdotes ‘progressistas’ foram marginalizados e substituídos em
cargos de responsabilidade por quem defende a tradição. Nos 27 anos de
pontificado de João Paulo II, as organizações mais próximas da ortodoxia
conservadora, como Opus Dei, Legionários de Cristo, Sodaliscium, entre outras,
se beneficiaram de um apoio entusiasta e conseguiram uma posição poderosa dentro
da instituição. Ao menos por enquanto, os católicos ‘progressistas’ parecem uma
espécie encurralada, lutando contra a extinção.


Como não é concebível que uma sociedade progrida e prospere sem uma vida
espiritual e religiosa, e, no caso do Ocidente, religião quer dizer sobretudo
cristianismo, teria sido desejável que o catolicismo se adaptasse, como já fez
no passado, quando as circunstâncias o obrigaram a aceitar a democracia, às
realidades de nosso tempo em matéria sexual, moral e cultural, começando pela
emancipação da mulher e terminando pelo reconhecimento do direito à igualdade
das minorias sexuais. No entanto, em grande medida por obra da formidável
personalidade de Wojtyla e sua pregação contagiante, aconteceu o contrário. Isso
não deixará de ter efeitos sobre a vida política e, na Europa, talvez signifique
uma involução antiliberal semelhante à que teve lugar nos Estados Unidos com a
irrupção dos movimentos religiosos fundamentalistas nos processos eleitorais.


Como explicar que um papa de corte tão inequivocamente antimoderno seja
chorado, venerado e lembrado por tantos homens e mulheres, dentro e fora da
Igreja Católica? Porque em terra de cego quem tem um olho é rei. Nesta época de
grandes naufrágios ideológicos, os antigos sistemas filosóficos que pretendiam
substituir, ou complementar, a religião como explicação do mundo e da História e
estabelecer pautas para a convivência, o progresso e a justiça caíram em total
descrédito. Tudo isso se reflete na mediocrização generalizada dos líderes
políticos e na decepção provocada pelo oportunismo e o cinismo de que os
governantes mais conspícuos costumam se vangloriar. Nesse contexto, o surgimento
de alguém tão claramente guiado por princípios em sua atuação, tão coerente e
persuasivo e tão dotado para a comunicação preencheu um vazio e lhe rendeu uma
imensa popularidade. Em suas incansáveis excursões pelo mundo, ele logo alcançou
uma estatura de gigante. Seu êxito, ao contrário do que alguns escreveram nestes
dias, não se deve a suas idéias antiquadas e a seu reacionarismo. Raríssimas
vezes as idéias conquistam o grande público. Foram os gestos, as imagens,
emoções e paixões que ele era capaz de despertar com sua palavra e suas obras, e
também com a percepção, acertada ou equivocada, de que atrás de tudo isso havia,
em quem assim atuava, um ser de exceção, que fizeram de Wojtyla um herói de
nosso tempo.


Não sou crente e os assuntos do outro mundo nunca me importaram. Se ele
existe, talvez ali o magistério e as realizações de João Paulo II sejam
proveitosos para as almas. Neste, temo que tenham deixado um tanto maltratada a
cultura da liberdade.’




José Pedro Castanheira


‘O imenso adeus’, copyright Expresso, Portugal,
16/04/05


‘Falecido às 21.37 horas de sábado, dia 2, o corpo de João Paulo II esteve
exposto na Basílica de S. Pedro desde o meio da tarde de dia 4 até ao final de
dia 7. Segundo as autoridades de Roma e do Vaticano, foram mais de quatro
milhões os peregrinos que, vindos de todo o mundo, quiseram despedir-se
pessoalmente do Papa. Entre eles esteve o enviado especial do EXPRESSO.


‘Onde está a fila?’, foi uma pergunta, milhares de vezes gritada, que
perturbou a peregrinação nos dois primeiros dias. Quarta-feira, porém, o caminho
já está devidamente assinalado. Quando, passam poucos minutos das 4h da
madrugada, um taxista resmungão me deixa junto à ponte Vittor Emanuel II, é só
seguir as indicações. Sabia-se que a Basílica estaria encerrada entre as 2 e as
5 horas, para limpeza e certamente para recompor o cadáver de Karol Wojtyla,
falecido há mais de três dias. A esta hora, contudo, já são milhares os
católicos e simples admiradores concentrados ao longo do percurso que dá acesso
a S. Pedro. O andamento é razoável ao longo do Burgo S. Angelo e da Via de Porta
Castella, mas baixa subitamente quando, ao virar à esquerda, entro no Borgo Pio.
Depois de ultrapassar uma camioneta de recolha do lixo, atulhada de garrafas
vazias, páro pela primeira vez. Consulto o relógio: 5.02 da manhã, que defino
como hora de partida. Estou no nº 32 do Borgo Pio, contíguo à Praça de Catalona.
A noite ainda vai escura, mas a multidão, que ocupa a rua a toda a largura, está
animadíssima. Vestes desportivas mas quentes, mochilas às costas, máquinas
fotográficas, telemóveis e garrafas de água – eis o retrato-robô do peregrino,
de ambos os sexos, mais para o novo que para o velho, oriundo dos quatro cantos
do mundo, mas com uma fortíssima componente italiana. Lá da frente, de vez em
quando, vem uma revoada de palmas, que se propaga por toda a fila como um
rastilho. Outras vezes, é um grito juvenil e cadenciado, ‘Giovanni Paolo!
Giovanni Paolo!’, inspirado nos gritos de guerra das claques de futebol. Mais
raro, ouve-se um cântico religioso, como um Aleluia, ou de cariz popular, como o
Santa Maria del Camino.


Particularmente activo é o grupo da paróquia de S. Mighele de Potenza, que
rivalizava com o de San Padre Pio, vindo do Sul. O primeiro é mais ortodoxo nas
suas manifestações, rezando não raro uma Avé Maria. Aqui e além, uma vara com
três ou quatro balões vermelhos e brancos, a assinalar a presença da Polónia,
que desembarcou em massa em Roma – admitindo-se que tivesse vindo um milhão de
conterrâneos de Wojtyla. Também bandeiras nacionais, mas menos: da Polónia, do
Brasil e, claro, de Itália, e até as bandeiras arco-íris dos movimentos
anti-globalização.


De jejum de pequeno-almoço, vou-me consolando a olhar para os restaurantes de
portas fechadas e nomes sugestivos. Um deles chama-se Il Papalino. ‘É muito bem
frequentado, até por cardeais’, comenta alguém atrás de mim. Francês de Lyon,
Jean-Jacques Jariglio vive em Roma desde 1978. Alto funcionário de uma agência
das Nações Unidas, é a terceira vez que vela um Papa. O primeiro foi Paulo VI.
‘Morreu em 6 de Agosto de 1978, um domingo, em Castel Gandolfo’, recorda. ‘Fui
ver o corpo dele. A fila começava no princípio de colunata da basílica e só
demorei uma hora’. Semelhante foi o tempo de espera para ver o corpo de João
Paulo I, Papa durante escassos 25 dias. ‘Costuma dizer-se que foi Papa entre
duas luas’, diz Jean-Jacques, que prevê, optimista, que a espera, desta vez, se
prolongue por três a quatro horas. ‘Foi o que demoraram uns amigos meus,
ontem’.


Uma farmácia fechada mostra a temperatura ambiente: 13 graus. Por enquanto,
de calor ninguém se pode queixar. Atrás, um jovem sacerdote lê a bíblia em
inglês para uns amigos.


Completo a primeira hora no nº 60 do Borgo Pio. Em frente, uma das muitas
lojas de artigos religiosos. Coincidência ou não, um grupo propõe-se rezar um
terço. É a Comunidade Missionária de Villaregia. Vieram meia centena, religiosos
e religiosas, de nacionalidades tão distantes como Brasil e Porto Rico, Peru ou
Costa do Marfim. A iniciativa não recolhe muitas adesões e é abafada por mais
uma revoada de aplausos ritmados. Ao fundo, alguém pede assistência, num
passa-palavra imediato e em tom crescente, até chegar ao pessoal da Cruz
Vermelha, que logo trata do assunto.


A multidão avança compacta, densa, ruidosa e lenta, a fazer lembrar a lava de
um vulcão a descer uma encosta suave. No meu curto raio de acção, destaca-se a
figura alta, negra e elegantíssima de um jovem de cabeção. François Djob, de 29
anos, é dos Camarões, de etnia Bassa, Depois de três anos de Teologia, está a
cursar Bioética na Universidade Regina Apostolorum. Veio com vários amigos e
colegas: muitos mexicanos, um haitiano de sotaina e um brasileiro. Marivaldo de
Melo é uma força da natureza. Mestiço da Bahia, apresta-se para ser diácono.
Aprendeu italiano sozinho, ensina português aos amigos francófonos, junto de
quem está a dar os primeiros passos no francês. ‘A primeira vez que o Papa
esteve no Brasil foi em 1980, mas não o vi. Porquê? Então, ainda não tinha
nascido’, ri, divertido, Marivaldo, que só deseja estar presente na praça de S.
Pedro ‘quando for anunciada a eleição do novo papa. Vai ser um momento histórico
belíssimo’. O Brasil é o país com maior número de católicos. Só no Colégio Mater
Ecclesia, onde Marivaldo vive, ‘há 70 brasileiros, num total de 250
seminaristas’.


Viramos agora à esquerda, para a Via del Mascherio. São 7 horas. O sol ainda
não apareceu, mas a luz já é suficiente para ler. Ou melhor: tentar ler. Parada,
a multidão é de tal modo compacta que não é possível sequer folhear um jornal.
Algumas paragens prolongam-se por quase meia hora. O ‘pelotão’ é farto em
surpresas. Uma delas é Anna Manikowska. Muito loura, olhos azuis, 28 anos, são
várias as similitudes com o Papa. Polaca, nasceu em Cracóvia – de que Wojtyla
foi bispo durante 15 anos – e é poliglota: polaco, francês, inglês, italiano,
árabe e… português. Técnica, em Roma, do Fundo Internacional de
Desenvolvimento Agrícola, ‘aprendi português só com a ajuda de cassetes. Mas
quando fui a Portugal, no Verão, tive muita dificuldade em perceber o que me
diziam. Comecei por Sintra e Ericeira, aluguei um carro e visitei o país quase
todo, durante dois meses’.


Junto ao ‘passetto’, a ponte que liga o Castelo de Sant’Ângelo ao Vaticano –
palco de tantos mistérios e segredos -, completo três horas. A meu lado, um
jovem pousa no chão uma enorme mochila e a viola. Uma pausa para a namorada
sardenta o cobrir de beijos. Vieram da Eslovénia. Universitários, Mate é de
História, enquanto Martina deseja ser professora. ‘Eu toco, mas ela canta muito
bem’, explica, feliz. Fazem parte de um grupo de 150 jovens que vieram de
Liubliana, em autocarros, onde passaram a noite. Uma aventura inolvidável, por
40 euros. ‘Tenho dois amigos que passaram o fim do ano em Lisboa, no encontro de
Taizé. Gostaram imenso’. Com idade para serem avós dos namorados eslovenos é um
casal chileno. Vieram de propósito de Santiago, saldar uma dívida. ‘João Paulo
salvou o Chile e a Argentina de entrarem em guerra’, justifica o homem, perante
o silêncio exausto da esposa, seguramente com mais de 60 anos. Chegaram sábado,
a tempo de presenciarem o anúncio oficial da morte, feito pelo cardeal Camillo
Ruini, vigário da diocese de Roma. ‘Foi impressionante e inesquecível. A
multidão recebeu a notícia com total serenidade e mergulhou no silêncio e na
oração. Depois, começámos a cantar o Aleluia’.’Si muove, si muove’, grita-se de
satisfação. A fila, sempre controlada por forças policiais, desloca-se às fatias
de milhares. Agora terão sido uns 15 a 20 metros, no Borgo Sant’Ângelo. Pena não
terem sido mais. Ou até menos. É que fiquei mesmo ao lado de uma área de
sanitários que o município de Roma semeou ao longo do percurso, para uso dos
peregrinos. Elementos da protecção civil – identificados pelo colete verde
alface – e da Cruz Vermelha tentam impor alguma ordem ao verdadeiro assalto às
cabinas, enquanto distribuem garrafas de água. A multidão é agora atravessada
transversalmente por alguns dos seus elementos, em direcção aos sanitários e em
demanda de água. Apesar dos pedidos de ‘permezzo, permezzo’, os empurrões são
constantes. No meio, um jovem italiano, cabelos longos, óculos escuros e t-shirt
de Chipre, prepara tranquilamente um charro. À sua volta, habituados e
tolerantes, ninguém se incomoda com o fumo – aliás suave. Verifico então que são
raros, raríssimos mesmo, os fumadores. E os que puxam do tabaco fazem-no quase
sempre nas orlas da fila, em respeito pelos que não fumam.


Às 10.18h, viramos à direita, para a Via della Traspontina. Apesar dos
constantes apertos, consigo tirar a mochila das costas, donde retiro uma carta
da cidade. O mapa é daqueles turísticos, onde nunca se consegue encontrar o que
se procura. Curiosos, dois jovens italianos observam-me. Vieram algures do Sul,
uma viagem de cinco horas de comboio. Só falam mesmo um italiano do Sul,
incompreensível de tão cerrado. Ele trabalha, ela ainda estuda e não pára de
sorrir. Parados, há tempo para tudo. Para olhar, de longe, para as montras de
uma livraria fechada, que ostenta na montra um poster do Papa nos seus bons
velhos tempos: jovial, sorridente, desportista, enérgico. Ou para ler um folheto
de propaganda, distribuído aos milhares, da Juventude Ardente Mariana, um dos
muitos grupos ultraconservadores que prosperaram sob este pontificado,
encorajados pela força dada à Opus Dei e congéneres. A próxima etapa é a célebre
Via della Conciliazione, construída por Mussolini para ligar Roma ao Vaticano.
Um polícia informa, com os dedos da mão esquerda, que ainda faltam duas ou três
horas. São 11.15h. Esta avenida é muito mais larga, mas nem por isso se anda
mais depressa. O pior é que deixámos de caminhar à sombra. Despem-se os casacos
e as camisolas, abrem-se os guarda-chuvas, tudo serve para proteger as cabeças
do forte sol primaveril. Um casal romano assegura que ‘em Abril é sempre assim’.
Só que, comento, nos dias anteriores não fez tanto calor. Além de que a
esmagadora maioria da coluna não é de Roma – a capital privilegiada que pôde
prestar as homenagens ao seu bispo querido logo nos primeiros dias. À vista da
Basílica, a multidão ganha novo alento. Além disso, há muito mais motivos de
distracção: os candeeiros acesos, o movimento nas embaixadas do Brasil e da
Croácia, o estranho deambular dos helicópteros, o silvo das ambulâncias, o
frenesim dos colaboradores da Caritas, da Misericórdia, do município e da
Protecção Civil, a eterna generosidade dos rapazes e raparigas dos escoteiros.
Ecrãs gigantes estão dispostos nos dois lados da larga avenida. Os da direita
dão a imagem em directo do interior da basílica. Os da esquerda mostram
sucessivos ‘flashs’ dos 26 anos do pontificado, sobretudo das suas 104 viagens
por quase todo o mundo. A luz e o calor do sol encorajam. É impressionante a
quantidade de jovens, rapazes e raparigas. Os mais velhos parecem ter-se
resguardado – do previsível cansaço, do calor, mesmo da emoção. E a televisão
entra-nos pela casa adentro. Da chamada terceira idade, a principal fatia são
padres (de preto) e sobretudo religiosas (de cinzento), sempre em pequenos
grupos e de braço dado.


Com um boné preto do Euro 2004, André não consegue entender o meu péssimo
italiano – e muito menos o inglês. Em seu socorro vem uma mulher que se
apresenta como professora de inglês. ‘Viemos no domingo de Tortoli, na Sardenha,
de barco’, explica, à sombra do guarda-chuva. São 31 estudantes, de 14 e 15
anos, acompanhados de quatro professoras. Com a confusão, o grupo ficou
disseminado. ‘Desculpe, mas tenho de ver se não os perco’, despede-se a
professora, apressada. Na instalação sonora, ouvem-se leituras dos Evangelhos.
Depois, convidam-se os fiéis à oração em conjunto: um Pai-nosso, uma Ave-maria e
um Glória, mas são poucos os que participam, excepção feita ao Ámen final do
Glória. O ecrã da esquerda mostra um apontamento sobre a encíclica Laborem
Exercens, um dos documentos socialmente mais avançados do Papa, em contraste com
a rigidez e o conservadorismo dos textos em matéria de Moral. ‘O trabalho existe
em função do homem, e não o homem em função do trabalho’, ouve-se, em italiano,
inglês, francês, espanhol e polaco. Da paróquia de Bella, algures ao Sul de
Nápoles, veio um grupo de adolescentes. O cartaz que os identifica e que os vai
congregando, passa agora de mãos em mãos, para ser assinado por todos e cada um:
Felice, Dino, Cristiano, Arianne…. ‘Somos 54 ou 55. Viemos todos num
autocarro, hoje. Quatro horas de viagem’. A porta-voz é Renata, que tem a
vantagem de falar espanhol. ‘Nasci na Venezuela, onde vivem os meus pais, mas
vivo com a minha avó em Bella’, conta, orgulhosa da sua condição de bilingue
junto de um jornalista estrangeiro. Da mochila, tiro a minha segunda tablete
energética, que acompanho com uma garrafa de água dispensada pela Protecção
Civil. A água também dá para refrescar a cabeça dos mais encalorados. Tímidas,
duas senhoras pedem-me para lhes dispensar outras tantas folhas do bloco. ‘Com
muito gosto. Não precisam de mais?’, respondo. ‘Basta, obrigado’. É só para se
abanarem, à procura de um ar fresco…


Às 13 horas em ponto, entro na Praça Pio XII, a escassas dezenas de metros da
colunata de S. Pedro, desenhada por Bernini. Caminha-se sobre o lixo acumulado
de muitas horas e deixado por milhões: garrafas de plástico, cápsulas, cascas de
fruta, pastilhas elásticas, sacos de plástico, invólucros de bolachas e
chocolates. À direita foi montado um palco de dois andares, para as televisões.
Tenho tempo até para as contar e recontar: 22 equipas, algumas delas a fazer
directos, todas apontadas para a basílica e já a pensar nas cerimónias do
funeral. Conto também os passos até chegar à entrada da praça de S. Pedro, a
mais famosa praça da cristandade: sete primeiro, treze mais à frente, por fim
22. ‘Não tenham medo!’, foi o apelo e o grito de Karol Wojtyla, na primeira vez
que falou aos católicos, nesta praça, logo após a sua eleição, a 16 de Outubro
de 1978. Os católicos perderam o medo e aqui estão, a despedir-se, em tal número
que nunca ninguém imaginou. Em vez da voz do Papa, ecoa o excerto de um
belíssimo concerto para oboé de um autor barroco, talvez Marcello. Pousadas no
chão, indiferentes aos humanos, dezenas de pombas descansam e esperam as
migalhas. Caminhamos em direcção ao obelisco egípcio, roubado ao Circo
Neroniano. Contornamo-lo pela direita, para nova e demorada paragem ao lado da
fonte de Maderno – o mesmo artista que desenhou a fachada da basílica. A visão
da água, a cair dos vários pratos da fonte, traz alguma frescura à mole. Das
colunas do som vem uma ladainha. Às invocações do celebrante, os crentes
respondem, sempre em latim. A meu pedido, um romano de meia-idade transcreve no
meu bloco ‘Te rogamus, audi nos’ (Te suplicamos, ouvi-nos). O tempo sobeja para
atentar em todos os pormenores da basílica. A famosa cúpula, concebida por
Miguel Ângelo. As 140 estátuas de santos, semeadas no topo da colunata. Os dois
enormes relógios, ambos a marcarem 13.37h. A inscrição, em letras capitais, do
Papa que inaugurou a maior catedral do mundo, Paulo V Borghese, em 1612. À
direita, os aposentos pontifícios, mormente as três janelas do último piso, para
onde no dia 2 estiveram virados, em directo ou pelas televisões, os olhares de
todo o mundo católico.


Quase à entrada da basílica, surge um dos raros cartazes. É o maior que vi e
não podia ser mais expressivo: ‘Grazie Karol’. Ouve-se se novo o som triste e
lancinante do oboé (será mesmo Marcello? Não será Albinoni?), sublinhado pela
doçura acolhedora das cordas. Vem depois uma leitura do Evangelho de S. Mateus
(4, 19), sobre o chamamento dos primeiros discípulos. Junto ao Mar da Galileia,
Cristo aborda quatro pescadores (Pedro, André, Tiago e João), a quem propõe e
desafia: ‘Vinde comigo e farei de vós pescadores de homens’. O pico do calor dá
lugar a uma altercação – a primeira e única da jornada. Ao lado da fila, um
jovem transporta aos ombros uma pesada embalagem de garrafas de água. Sedenta e
cansada, uma mulher idosa pede-lhe uma. Igualmente cansado, o rapaz recusa com
modos poucos gentis. Os protestos fazem-se ouvir, forçando-o a explicar que a
água é para outras pessoas e não está autorizado a distribuir garrafas depois do
obelisco. O coro aumenta, à boa maneira italiana. O jovem esboça novos
argumentos, mas só consegue aumentar o eco dos protestos. Contrafeito, acaba por
ceder…


Falta subir as escadas de acesso à basílica. A proximidade intensifica a
confusão. As máquinas fotográficas saem das carteiras e mochilas e os telemóveis
dos bolsos. Fecham-se os guarda-chuvas, bonés e chapéus desaparecem. Por uma
vez, há encontrões sérios, logo justificados e perdoados. Os aplausos ritmados
voltam a fazer-se ouvir. As mulheres, sobretudo as mais velhas, cobrem os corpos
com casacos, camisolas ou xailes. Mais que o fresco do interior da basílica,
intui-se que é o pudor e o respeito que imperam. À minha frente, a fachada da
basílica revela-se: as colunas, as cinco portas, o rendilhado do bronze, o
famoso mosaico de Navicella, de Giotto. Sobretudo a Varanda das Bênçãos, onde o
costume manda que seja proclamada a eleição de cada Papa, que aqui dá a primeira
bênção Urbi et Orbi. Olho para trás: a fila arrasta-se por toda a Via della
Conciliazione, antes de se infiltrar, sinuosa, em inúmeras ruas, ruelas e
avenidas adjacentes. São 14.15 horas quando entro finalmente na Basílica.
Desligo o telemóvel e retiro da mochila o gravador, para onde passo a ditar as
minhas impressões. Compacta, a fila avança, lenta mas sem paragens. De cada
lado, funcionários impelem as pessoas a andar e são os únicos a falar. A música
de fundo é o célebre Adágio, atribuído a Albinoni, numa versão para órgão e
violino. Da nave central foram retiradas todas as cadeiras, o que permite ver o
belo soalho de mármore de várias cores. Tudo parece diferente da basílica que já
visitei meia dúzia de vezes: mais comprida e larga, mesmo mais alta, sobretudo
mais sumptuosa, com os dourados do tecto e da cúpula quase resplandecentes.
Identifico algumas estátuas por onde passamos: S. Camilo, S. Inocêncio Paulo, S.
Inácio. Mais adiante, o bronze de São Pedro. Depois de tanta espera, tanto
esforço, tanta expectativa, por uma vez ninguém estuga o passo. Todos se sentem
no direito de prolongar o seu Adeus. Finalmente paro. Passaram onze minutos
desde que entrei. À minha frente, uma floresta de braços levantados, a tirar
fotografias ao corpo de João Paulo II – ele que, na Constituição Universi
Dominici Gregis, sugerira que não fossem divulgadas imagens suas no leito de
morte… ‘O Senhor é meu pastor’, ouve-se nas colunas de som. Os restos mortais
de Karol Wojtyla estão depositados diante do Baldaquino de Bernini. Veste uma
casula de veludo vermelho e na cabeça a mitra de bispo. Mãos postas sobre o
peito, o báculo jaz sob o seu braço esquerdo. A cara pende um nadinha para a
esquerda. A palidez da face já é acizentada. Nos contornos da boca, em redor das
pálpebras, julgo adivinhar um sinal de sofrimento, um esgar de dor. Simples
imaginação. Nem parece o mesmo homem que vi, pela primeira vez ao vivo, em Nova
Iorque, em Outubro de 1979 e que, depois, o mundo inteiro se habituou a olhar e
admirar: o líder espiritual, o chefe da igreja, o ídolo das massas, o pastor das
almas, o dirigente político, o homem alegre e confiante. A força da morte
impõe-se à memória da vida. O inevitável aconteceu – também com o Papa,
representante de Deus ou simples homem. Dois rapidíssimos minutos foram quanto
me foi possível estar em frente do Papa, em respeito e recolhimento. Muitos
peregrinos ficam-se nas naves laterais e capelas adjacentes, como que usufruindo
de um direito conquistado. Em conversas sussurradas, em oração interior, a
descansar, de olhar perdido. Numa capela lateral, amontoam-se mensagens escritas
por crentes, numa última homenagem, confissão, confidência ou súplica. Saio da
Basílica. Ao regressar ao calor e à luz do sol, inspiro e olho para relógio. São
14.29 horas. Curioso, faço as contas: foram 9 horas e 27 minutos. Adeus, João
Paulo II. A vida e a Igreja continuam.’




José Luis Oliveira Lima


‘Algumas diligências da PF parecem filmes americanos’, copyright Revista
Consultor Jurídico (www.conjur.com.br)
, 18/04/05


‘Não é de hoje que a classe política percebeu que a facilidade com que
programas populares de TV atingem o grande público pode ser usada para ganhar
eleições. Nem é novo, nesse cenário, a utilização de truques dos espetáculos na
ação do Poder Público para impressionar as massas. O prefeito Rio de Janeiro,
César Maia, batizou a mandrakagem de ‘factóides’. Ou seja, pura enganação: fatos
sem importância nenhuma são vendidos como iniciativas de grande interesse
público.


Visitar locais atingidos por tragédias, pegar crianças pobres no colo, comer
sanduíches em botecos e ir a cultos religiosos com os quais não se tem qualquer
intimidade fazem parte do arsenal eleitoral primário desse tipo de show.


Mas, nos últimos tempos, o Poder Público enveredou por um terreno perigoso
desse negócio. Primeiro, escolhe-se uma pessoa, um grupo ou um setor que não
seja dos mais simpáticos à população. Em seguida, cria-se uma ‘operação’
espalhafatosa — de preferência com um nome bem cinematográfico. Montado o
cenário, joga-se a Polícia Federal ou estadual, que chegará apreendendo
documentos e computadores. Prendem pessoas e, ato contínuo, convocam-se outros
atores, que pode ser o Ministério Público ou uma CPI para dar continuidade ao
espetáculo.


Algumas diligências da PF parecem, na verdade, filmes americanos. A imprensa
acompanha tudo, presencia tudo. Buscas e apreensões são feitas em residências,
na presença de familiares e são amplamente divulgadas pelas emissoras de TV e
estampadas nos grandes jornais e revistas. Detenções de suspeitos e algemas.
Tudo é calculadamente mostrado, noticiado e publicado com grande alarde quer
pelos veículos mais sensacionalistas, quer pelos grandes grupos de
comunicações.


Nem fica claro, ao certo, quem é testemunha ou quem é investigado. Um simples
depoimento prestado é motivo para ter a vida virada pelo avesso. Não se preserva
a intimidade e o direito de se recusar a entrevistas vira arrogância,
presunção.


Na esfera federal, essa doença já foi diagnosticada pelo deputado petista
Paulo Delgado. Ele chamou a atenção para alguns desses ‘escândalos’ fabricados.
E para o que sobrou de operações pirotécnicas como as Anacondas, Vampiros,
Waldomiro Diniz, e o caso do Balé Bolshói que, entre outras, tiveram resultados
evidentemente pífios se confrontados com a barulheira que geraram no primeiro
momento. Quando chegam à Justiça, são reduzidos às suas verdadeiras
proporções.


A recente prisão do jogador argentino superou as expectativas desse show do
milhão. Um delegado de polícia entra em campo, não com uma bola, mas sim para
dar voz de prisão a um jogador. Porque não esperou o jogador entrar no vestiário
para prendê-lo? A reposta é simples. A Autoridade Policial deixaria de sair na
televisão, nos jornais, nas revistas, e com certeza não teria seus cinco
segundos de fama.


O jogador é algemado, colocado no camburão e toda a imprensa noticia isso
como um grande feito. Gostaria de entender qual o raciocínio da Autoridade, por
que expor o preso a tanta humilhação, qual o resultado bom dessa sensacionalista
postura para a sociedade? Talvez a Autoridade receba ainda uma promoção ou um
registro no seu prontuário pela sua ‘atuação exemplar’. Patético. É lógico que a
conduta praticada pelo jogador argentino deve ser repreendida dentro dos limites
da legislação em vigor, mas o achincalhe é inaceitável.


Para essas autoridades não importa se as pessoas têm família, pai, mãe,
filhos, tio. O importante é o ‘show’. Mas para quê? Porque a humilhação? Por que
o espetáculo?


Os recentes fatos espetaculosos devem servir de reflexão para toda sociedade.
Chega de show do milhão e de show do ratinho. Bom senso e discrição fazem bem
para qualquer um. Mas principalmente para as autoridades. Pode não vender tanto
jornal e tanta revista, mas, com certeza, o ser humano vai ser mais
respeitado.


De quebra, a polícia, o MP e as CPIs poderão se livrar do constrangimento de
ver suas ações desmoralizadas e recusadas no Judiciário. Sem falar das possíveis
indenizações por dano moral. Esse constrangimento, a longo prazo, levará do
desencanto ao descrédito porque, como se sabe, é impossível enganar a todos o
tempo todo.


Sobre o autor José Luis Oliveira Lima: é advogado criminalista, ex-
presidente da Caixa de Assistência dos Advogados de São Paulo, ex – conselheiro
da OAB-SP, ex -presidente da Comissão de Direitos e Prerrogativas da OAB-SP,
membro da comissão Teotônio Vilela de Direitos Humanos e membro do Instituto dos
Advogados de São Paulo.’




Olavo de Carvalho


‘Lavagem de notícias ‘, copyright Folha de S. Paulo,
18/04/05


‘No dia 31 passado, os jornais brasileiros espremeram em textinhos de 10 cm
uma das notícias mais importantes deste século e do anterior: documentos da
extinta Alemanha Oriental confirmavam que o atentado contra João Paulo 2º,
ocorrido em 13/5/81 na praça de São Pedro, fora planejado pelo governo soviético
e realizado através do serviço secreto búlgaro. A TV omitiu a notícia por
completo. Quarenta e oito horas depois, a menção discretíssima aos tiros que
devastaram a saúde do papa já estava esquecida -e, como se não tivesse nada a
ver com a sua morte, não voltou a aparecer no noticiário.


No meio de tantos insultos lançados à memória do falecido pontífice, os panos
quentes estendidos sobre a ação macabra de seus agressores foram, decerto, o
mais cínico e perverso. Mas não constituem novidade no comportamento da grande
mídia. Quando o escritor Vladimir Bukovski, o primeiro pesquisador a vasculhar
os arquivos de Moscou, voltou de lá com as provas de que a KGB havia subsidiado
durante mais de uma década a imprensa social-democrata da Europa Ocidental,
mesmo os jornais ‘soi disant’ conservadores opuseram uma renitente má vontade à
divulgação do fato, alegando que não era bom ‘reabrir antigas feridas’. Na mídia
nacional, permanece tabu a confissão do agente tcheco Ladislav Bittman de que a
famosa participação da CIA no golpe de 1964 foi um truque difamatório criado
pela espionagem soviética através de documentos falsos distribuídos por
jornalistas brasileiros que então constavam da folha de pagamentos da KGB. E
assim por diante.


Com 500 mil funcionários e uma rede mundial de milhões de colaboradores, a
KGB foi -e é- a maior organização burocrática de qualquer tipo que já existiu ao
longo da história humana (o paralelo com a CIA é grotesco pela desproporção),
com recursos financeiros ilimitados e funções que vão infinitamente além das
atribuições normais de um serviço secreto, abrangendo o controle de milhares de
publicações, sindicatos, partidos políticos, campanhas sociais e entidades
culturais e religiosas em todo o mundo. Sua influência na história cultural do
século 20 é imensurável. Entre os anos 30 e 70, não houve praticamente escritor,
cineasta, artista ou pensador famoso, na Europa e nos EUA, que não fosse em
nenhum momento cortejado ou monitorado, subsidiado ou chantageado por agentes da
KGB.


É impossível compreender a circulação das idéias no mundo nesse período sem
levar em conta o maciço investimento soviético no mercado ocidental de
consciências. A infinidade de crenças, símbolos, giros de linguagem e cacoetes
mentais que se originaram diretamente nos escritórios da KGB e hoje se encontram
incorporados ao vocabulário comum, determinando reações e sentimentos cujo teor
comunista já não é reconhecido como tal, ilustra a eficácia residual da
propaganda longo tempo depois de atingidos os seus objetivos imediatos. No
manejo desses efeitos de longo prazo reside uma das armas mais eficazes do
Partido Comunista, que, com nomes variados, é o único organismo político com
alguma continuidade de comando e unidade estratégica que subsiste em escala
mundial do século 19 até hoje.


A extinção oficial do império soviético não diminuiu em nada o poder da KGB,
apenas a renomeou pela enésima vez. As menções freqüentes da mídia ocidental à
‘máfia russa’ só servem para encobrir dois fatos que os estudiosos da área
conhecem perfeitamente bem:


1) A máfia russa é o próprio governo russo, e não outra coisa, e o governo
russo é a KGB e nada mais.


2) Desde o começo da década de 90 não há mais máfias nacionais em competição
sangrenta, mas uma aprazível divisão de trabalho entre organizações criminosas
de todos os países, uma autêntica ‘pax mafiosa’ que, por meio do narcotráfico,
do contrabando de armas, da indústria dos seqüestros etc., gerou um poder
econômico mundial sem similares ou concorrentes imagináveis.


Conforme mostrou a repórter Claire Sterling no seu livro ‘Thieves’ World’ (‘O
Mundo dos Ladrões’), Nova York, Simon & Schuster, 1994, a constituição desse
império do crime deu-se sob o comando da ‘máfia russa’, que continua regendo o
espetáculo. Muito antes disso, a KGB já tinha uma atuação intensa no
narcotráfico, prevendo a possibilidade de o usar um dia como fonte alternativa
de financiamento para os movimentos revolucionários locais, como veio mesmo a
acontecer (v. Joseph D. Douglass, ‘Red Cocaine. The Drugging of America and the
West’, Londres, Harle, 1999).


O leitor não deve estranhar a menção a organizações religiosas. Nos EUA, o
Conselho Nacional das Igrejas é notoriamente uma entidade pró-comunista (v.
Gregg Singer, ‘The Unholy Alliance’, Arlington House Books, 1975), e o mesmo se
deve dizer de seus equivalentes em outros países. A penetração da KGB nos altos
círculos da Igreja Católica e sua influência decisiva nos rumos tomados pelo
Concílio Vaticano 2º são hoje bem conhecidas (v. Ricardo de la Cierva, ‘Las
Puertas del Infierno’ e ‘La Hoz y la Cruz’, ambos pela Editorial Fênix, de
Barcelona). E Ali Agca, o assassino contratado pelos soviéticos para matar o
papa, não disse senão o óbvio ao declarar que não poderia ter agido sem a ajuda
de membros da hierarquia eclesiástica. Não por coincidência, as mais
estapafúrdias ‘teorias da conspiração’ literárias ou cinematográficas, que
envolvem nesse empreendimento assassino até mesmo a CIA, recebem da mídia mais
espaço e tratamento mais respeitoso do que os documentos oficiais que oferecem a
prova da autoria do crime.


Assim como existe lavagem de dinheiro, existe lavagem de notícias. Essa tem
sido a principal atividade da mídia ocidental elegante nas últimas décadas. Se
não houvesse outras fontes de informação, todo mundo já teria se persuadido de
que o comunismo jamais existiu e estaria pronto para aceitá-lo de novo como
utopia de futuro, com outro nome qualquer.


Olavo de Carvalho, 57, jornalista e ensaísta, é autor de, entre outros
livros, o ‘O Jardim das Aflições’ (É Realizações, 2001).’




ENTREVISTA / OCHS SULZBERGER JR.
Hugo Alconada Mon


‘‘Precisamos de fatos, dados, análise’’, copyright O Globo,
18/04/05


‘Aos 53 anos e mais de uma década à frente de um dos jornais mais influentes
do mundo, Arthur Ochs Sulzberger Jr. comemora os resultados contundentes do ‘New
York Times’. O jornal aumentou sua circulação, obteve lucro anual de mais de US$
300 milhões, tem o site de notícias mais visitado do planeta, comprou os jornais
‘International Herald Tribune’ e ‘Boston Globe’ e iniciou suas operações em TV.
Sulzberger Jr., que encarna a quarta geração de sua família à frente do NYT,
atribuiu esse sucesso ao fato de reinvestir os lucros no jornal – ou
‘instituição’, como prefere chamar – e ao ‘jornalismo de qualidade’ praticado no
diário.


O senhor sempre defendeu grandes investimentos no jornalismo porque acredita
em retorno a longo prazo. Ainda mantém essa premissa?


SULZBERGER: É claro! Vou te dar um exemplo: como ocorre em todos os jornais
dos Estados Unidos, a publicidade que chega hoje ao ‘Times’ é bem menor do que
foi na década de 90. Gostaríamos de manter nossas margens de lucro. A maneira de
conseguir isso é investindo na qualidade do jornal. No ano passado, reforçamos
as editorias de cultura, viagens, crítica literária, imóveis e outras. E
melhoramos o sistema de computador dos repórteres para facilitar seu trabalho.
Tudo isso exigiu um grande investimento, num momento em que cortávamos gastos na
empresa. Este ano, faremos algo similar. Criaremos uma nova seção, dedicada aos
jovens, e vamos reforçar a seção de negócios, que é publicada de segunda-feira a
sábado. Esses são investimentos que dão retorno: nosso índice de leitura sobe e
a publicidade dessas seções cresce.


Essa estratégia vai no sentido contrário ao que vem ocorrendo na maioria dos
jornais nos Estados Unidos e na América Latina.


SULZBERGER: Só faço algo que sempre fizemos no ‘New York Times’. Meu bisavô
comprou o jornal em 1896. Era o diário mais fraco da dúzia de jornais que então
circulavam em Nova York. Mas ele aumentou a qualidade do jornal. Desde o começo,
lançou uma revista semanal, que era publicada aos sábados, criou uma seção
literária, trouxe mais qualidade ao conteúdo e o ‘New York Times’ saiu na
frente. Meu pai, que também dirigiu o ‘Times’ durante um período de declínio,
decidiu, junto com o seu editor-executivo Abe Rosenthal, acrescentar novas
seções diárias. E conseguiu inverter uma tendência de queda nas vendas.


Mas não há um limite para se investir no jornalismo? Não há um ponto em que o
lado corporativo fala mais alto e o seu diretor financeiro diz: ‘basta’?


SULZBERGER: Sim. Mas o nosso diretor financeiro sabe como funciona o ‘New
York Times’. Ele conhece. Viu o que fizemos nos anos 60, na década de 70. Era
parte de nossa equipe quando criamos a edição nacional, em momentos muito
difíceis. E a edição nacional nos salvou, proporcionou um crescimento fenomenal
na nossa circulação e em nossos anúncios. Somos o único jornal dos Estados
Unidos cuja circulação cresceu em dez dos últimos 12 anos, porque investimos em
jornalismo. Não estou insinuando que outros jornais não o façam. Há alguns muito
bons nos Estados Unidos, como o ‘Washington Post’ e o ‘Los Angeles Times’, que
conheceram essa lição e a aplicaram.


A internet e os blogs seriam uma nova fase do jornalismo?


SULZBERGER: Dar uma opinião é diferente de fazer jornalismo. Eu tenho minhas
opiniões, você tem as suas, todos temos. Mas precisamos de fatos, dados,
análise. E isso não é barato. Apurar e difundir dados é custoso. Ler os jornais,
assistir à televisão e dizer: ‘Bem, o que eu penso acerca de tudo isso…’, isso
não é jornalismo, é mera opinião. Há espaço para opinião. É bom, mas não é
jornalismo.


Esses profissionais não conseguem maior sucesso e se tornam mais críveis
justamente porque opinam?


SULZBERGER: Não acredito que gozem de maior credibilidade do que os
jornalistas. O jornalismo consiste em buscar dados, fatos, em recolher e
difundir informação, para que os leitores elaborem suas próprias opiniões.
Muitos blogueiros e muitas pessoas que se dizem jornalistas na televisão estão
simplesmente jogando para a audiência. Não desafiam seu público, dizem apenas o
que a audiência quer escutar. Isso não é jornalismo e, portanto, não é um
negócio em que queremos estar.


O senhor vê a possibilidade de se fazer um ‘jornalismo de qualidade’ na
América Latina com as restrições econômicas que a região enfrenta?


SULZBERGER: É possível fazer jornalismo de qualidade em qualquer lugar do
planeta. Cada nação enfrenta seus próprios problemas e deve haver mudanças
legais naqueles países em que não há liberdade de imprensa. Devo dizer que o
presidente Bush e eu compartilhamos vários pontos de vista. Ambos, por exemplo,
herdamos de nossos pais e ambos também pensamos que a liberdade é e deve ser a
condição natural do ser humano. E isso deve ser alcançado. Compartilhamos essa
visão, assim como os meios para chegar a isso. O jornalismo é central e
essencial para a democracia. A democracia leva aos melhores governos. E os
governos melhoram, porque o jornalismo livre destaca os problemas e pressiona
por uma solução. Isso ocorrerá na Argentina, em Cuba, na Arábia Saudita. É
natural que seja assim.’