O presidente do TSE, Marco Aurélio Mello, não é uma criação de Luigi Pirandello, mas seus últimos pronunciamentos deixam no ar a impressão de se tratar de um personagem à procura de autor, embora com roteiro definido. Pior: avalizado por aplausos entusiásticos de conhecidos editores e colunistas políticos. Isso é mais um fato a confirmar a conclusão de Luciano Martins Costa em artigo publicado na edição 347 deste Observatório.
Sob o título ‘A partidarização oculta e os problemas reais’, o autor concluía afirmando que…
‘…problema mesmo é constatar que a imprensa abdicou de participar da formulação de grandes estratégias sociais e políticas para se resignar ao papel secundário de correligionária na tarefa de fazer muito barulho para não revelar o essencial’.
O que o ministro e o jornalismo revelam nessa quadra? Um padrão ético duvidoso que parece se estabelecer nos marcos de um crescente esvaziamento da esfera política. Um padrão estético que naturaliza a partidarização da imprensa e do judiciário. Algo que se apresenta como nova dinâmica do processo político, mas que nada mais é que a arquitetura de sua destruição. Como se a reorganização de função dos atores tradicionais abrisse espaço de militância a quem, em tese, caberia função substancialmente fiscalizadora. Do ovo da serpente saíram togas e editoriais que se amparam uns nos outros.
Bombardeio midiático
A ação política teatralizada em nada contribui para o aperfeiçoamento democrático. Revela tão-somente a politização do judiciário, colocando em risco o princípio da separação dos poderes públicos no Brasil. O que Mello tem dito destoa do papel constitucional conferido ao TSE. A esta instância cabe apenas o papel de zelar pela lisura do pleito. Qualquer tentativa de se auto-investir como ‘lócus da consciência da cidadã’ pode reduzir o princípio de independência dos poderes republicanos a uma dimensão meramente nominal.
Marco Aurélio Mello tende a ver a si próprio como portador de uma missão social. Um ‘juiz militante’ propenso a julgar demandas e se pronunciar orientado por configurações conjunturais e tendências ideológicas. A mídia, em última instância, é a tribuna requerida para suas ações espetaculares. Ecoadas com louvor por Mervais, Clóvis, Fernandos, Josias e Doras, entre tantos outros.
Quem viu o pronunciamento do presidente do Tribunal Superior Eleitoral abrindo oficialmente a campanha assistiu à fala de um cidadão engajado. Tão contundente quanto normativo. Um juiz que solicita aos eleitores que faça dos recortes midiáticos a base de suas escolhas precisa ser examinado atentamente.
Ao afirmar que ‘parlamentares envolvidos em escândalos não são dignos de respeito e muito menos de voto’ , descrevendo a atual crise ‘como um verdadeiro escárnio’, Mello se esqueceu de um aspecto central do direito moderno. Como nenhum deputado foi punido por decisão judicial transitada em julgado, ele ignorou, em sua peroração judicativa, um princípio elementar do Estado democrático: o direito ao contraditório.
Como orador que busca formatar o senso comum de acordo com os interesses defendidos por uma das partes envolvidas no pleito, beirou à perfeição. Conseguiu o enquadramento adequado à estratégia discursiva do moralismo vazio da direita. Se cálculos políticos embutem uma matriz narrativa, as semelhanças entre suas palavras e o campo semântico da oposição são de valor pedagógico inestimável. Poucas vezes a Justiça brasileira veio a público sem qualquer veleidade de ocultar sua natureza de aparelho ideológico.
‘Observe a situação de hoje a exigir de todos nós muita responsabilidade. Sim, devemos exercer a cidadania com os olhos voltados à preocupação com o bem-estar geral, com o patrimônio público’.
Como ler esta ‘orientação’ ao eleitor? No bombardeio midiático a que temos assistido, ela não opera no vácuo. Elege temas e molda sentidos. Se sobra alguma dúvida quanto à tomada de posição, a crítica à proposta de um dos candidatos a dissolve inteiramente.
Marco Aurélio não se esqueceu de atacar a proposta de Constituinte, defendida pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. ‘Já se falou em Constituinte. Para quê? Vamos amar um pouco a Constituição moderna.’ Em sua opinião, o Brasil não precisa de mais leis, ‘mas de homens públicos e de cidadãos que se envergonhem de atos de corrupção’.
Folhas e tribunais
Estamos diante de algo inédito na história republicana do país. Uma campanha aberta por juízos de valor de quem deveria primar pela isenção. É muito preocupante para passar despercebido. A instrumentalização político-partidária do campo jurídico embute receios que vão das dúvidas quanto aos critérios que serão utilizados nas demandas dos concorrentes a uma eventual utilização do arcabouço legal para consecução de golpismos brancos. Pisamos no pantanoso terreno das suposições. Mas não há como negar que o cenário se vislumbra assustador.
Como ignorar as afirmações de Mello, reproduzidas a seguir?
‘Os fatos que condenem os candidatos devem ser levados em consideração pelo eleitorado mesmo que não tenham sido condenados pela Justiça. Pouco importa a existência ou não da decisão condenatória’;
‘Gostaria de aplicar o Código de Defesa do Consumidor contra a propaganda enganosa. Isso sempre ocorrerá, mas nós não somos ingênuos’.
São trechos que falam por si. No primeiro, a Justiça é tratada como penduricalho de menor importância. No segundo, a cidadania se desloca para o campo do consumo, e é na esfera de circulação de mercadorias que Mello a vê. Nesse contexto, cabe a indagação: quem fiscalizará o TSE? A legitimação recíproca entre folhas e tribunais parece não comportar o direito de recurso à cidadania.
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Professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha-RJ)