Eis dois incisos do Artigo 5 da Constituição Federal, com grifos meus:
XLIII – a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;
XLIV – constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático.
E eis o que o ex-delegado do Dops/SP, Cláudio Antônio Guerra, declarou a respeito do atentado do Riocentro, em 30 de abril de 1981: os comandantes da operação foram “os mesmos de sempre”, quais sejam (ele apontou) o coronel de Exército Freddie Perdigão, do SNI; o comandante Antônio Vieira, do Cenimar; e o então coronel Brilhante Ustra, do DOI-Codi paulista. Guerra, portanto, acusou Brilhante Ustra de comandar um atentado terrorista, que não só é imprescritível e insuscetível de graça ou anistia, como nem sequer estaria abrangido pela anistia de 1979, pois esta só abarcou fatos ocorridos até 15 de agosto de 1979. Desta vez não há como ele sair pela tangente do pacto de conciliação nacional…
Temos, portanto, um antigo comandado fazendo denúncia pública contra os comandantes (e também os outros executantes) de uma ação terrorista. Nada, absolutamente nada, isenta os que continuarem vivos de responderem por tal tentativa de provocar um pânico que, ao que tudo indica, teria consequências as mais terríveis, com um sem número de espectadores de um espetáculo musical morrendo pisoteados.
Ex-delegado virou pastor
A crermos no que a Folha de S.Paulo publica na sexta-feira (4/5), as autoridades estão, simplesmente, ignorando este crime gravíssimo:
“A Polícia Federal abriu investigação sobre o paradeiro de supostas vítimas do ex-delegado Cláudio Guerra, que afirma ter matado e incinerado corpos de presos políticos na ditadura militar.
O ex-policial prestou depoimento a um delegado da PF há cerca de um mês. A presidente Dilma Rousseff e o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, foram informados do relato, que está em sigilo.
A intenção é enviar as informações à Comissão da Verdade, ainda não instalada.”
Não é só à Comissão da Verdade que devem ser enviadas as informações. O Ministério Público tem de ser imediatamente acionado, para verificar se existem criminosos a serem acusados e, em caso afirmativo, iniciar de imediato tais procedimentos.
O atentado em questão foi um dos casos mais emblemáticos de feitiço virando contra o feiticeiro: a bomba explodiu no colo de quem pretendia utilizá-la contra inocentes. Agentes da repressão política, insatisfeitos com a distensão do ditador Ernesto Geisel, tentaram explodir três bombas para criar pânico durante uma apresentação de Chico Buarque e outros músicos famosos no Riocentro, em homenagem ao Dia do Trabalhador de 1981. O objetivo era inculpar a esquerda pelo atentado, como forma de convencer Geisel de que os DOI-Codis e outros centros de tortura continuavam sendo necessários e não deveriam ser desativados.
A confirmação veio de um ex-delegado/terrorista que virou pastor evangélico e agora sente remorsos dos crimes que praticou ou testemunhou. Ele deu depoimentos aos jornalistas Rogério Medeiros e Marcelo Netto, cujo Memórias de uma guerra suja está sendo lançado pela editora Topbooks. O portal Último Segundo antecipou vários trechos do livro – vide aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.
Para que o atentado parecesse da esquerda
Eis o que Guerra conta:
“Participei do atentado ao Riocentro e fiz parte das várias equipes que tentaram provocar aquela que seria a maior tragédia, o grande golpe contra o projeto de abertura democrática.
O destino daquela bomba era o palco. Tratava-se de um artefato de grande poder destruidor. O efeito da carga explosiva no ambiente festivo, onde deveriam se apresentar uns oitenta artistas famosos, seria devastador. A expansão da explosão e a onda de pânico dentro do Riocentro gerariam consequências desastrosas. Era evidente que muitas pessoas morreriam pisoteadas.
Aquela bomba [que estourou por engano no colo do sargento Guilherme Pereira do Rosário] era uma das três que deveriam explodir no show. O capitão Wilson [Luís Chaves Machado] estacionou o veículo embaixo de um fio de alta tensão e a carga elétrica desse fio, a energia que passava em cima do Puma, fechou o circuito da bomba, provocando a explosão. O erro foi do capitão. (…) Eu era especialista em explosivos.”
Em seguida, Guerra e sua equipe deveriam prender os esquerdistas a serem responsabilizados pelo atentado:
“Fui para lá com uma lista de nomes. (…) Mas deu tudo errado. Com a explosão da bomba no Puma, os militares policiais civis e os policiais civis que levavam outras duas bombas abortaram a operação.”
Guerra revela que haviam sido suspensos todos os serviços de apoio do Riocentro, incluindo o policiamento e a assistência médica, para que não houvesse socorro imediato às vítimas. Até as portas de saída foram trancadas e, nas placas de trânsito, picharam a sigla da extinta VPR, para que parecesse ser um atentado da esquerda.
Fleury dopado
De resto, quem acompanha meu trabalho não terá sido surpreendido por nenhuma das ditas revelações bombásticas do livro. Nem a de que resistentes foram executados e tiveram seus restos mortais incinerados, nem a de que o delegado Sérgio Fleury (e também o jornalista Alexandre Von Baumgarten) foi vítima de uma queima de arquivo. É o que eu sempre disse.
Quando a luta armada acabou, Fleury e outros rapinantes viram evaporarem duas fontes de vultosos ganhos adicionais: a divisão de tudo que apreendiam com os militantes e as gratificações de empresários fascistas. Os torturadores da PE da Vila Militar (RJ) resolveram compensar as perdas achacando contrabandistas. Depois tentaram até tomar deles uma carga mais valiosa, mas o episódio acabou em tiroteio e no desmascaramento dos bandidos fardados. Já Fleury, bandido à paisana, desesperou-se com a falta de fundos para sustentar o vício na cocaína e chantageou seus ex-patrocinadores ricaços, ameaçando revelar o que sabia sobre eles: não só o financiamento de práticas hediondas, mas também a participação voluntária de alguns deles nas torturas.
Reaças, canalhas e tarados, eles tomaram as providências cabíveis para manterem escondidas suas vergonhas. Onde já se viu dono de barco morrer afogado? Percival de Souza que me desculpe, mas 2+2 continua sendo 4. Então, desde sempre eu contava esta história como minhas fontes me relataram. E o delegado arrependido confirma agora a veracidade do que sempre afirmei:
“Fleury tinha se tornado um homem rico desviando dinheiro dos empresários que pagavam para sustentar as ações clandestinas do regime militar. Não obedecia mais a ninguém, agindo por conta própria. E exorbitava. (…) Nessa época, o hábito de cheirar cocaína também já fazia parte de sua vida. Cansei de ver.
Dias depois [de Guerra ter começado a vigiá-lo, buscando detectar uma oportunidade para o assassinarem], os planos mudaram porque Fleury comprou uma lancha. Informaram-me que a minha ideia do acidente seria mantida, mas agora envolvendo essa sua nova aquisição – um ‘acidente’ com o barco facilitaria muito o planejamento.”
Segundo Guerra, Fleury foi dopado e ainda o atordoaram com uma pedrada na cabeça antes de o atirarem no mar.
Por último: quanto aos dez companheiros massacrados e sumidos pelas bestas-feras da repressão, os casos eram igualmente notórios; só se acrescentaram detalhes, reavivando nossas feridas. Prefiro lembrar-me do sempre sereno Joaquim Pires Cerveira cantando seus sambas para nos animar durante o calvário no DOI-Codi carioca e do jeito ingênuo de garotão que o Bacuri exibia nos seus bons momentos.
***
[Celso Lungaretti é jornalista e escritor. http://naufrago-da-utopia.blogspot.com]