Sem livrarias, não há leitores; sem leitores, a diversidade de editoras não se sustenta; sem editoras, raros escritores conseguem alcançar um grande público.
Em algum ponto dessa engrenagem é preciso estimular o começo de um “círculo virtuoso”, diz o colombiano Fernando Zapata López, diretor do Cerlalc, órgão da Unesco responsável pelo fomento ao livro e à leitura na América Latina, no Caribe, em Portugal e na Espanha.
A ideia decerto não é de simples execução. Para López, por exemplo, o círculo não se completa sem a proteção aos direitos do autor, tema delicado em tempos digitais.
“Queremos uma sociedade criadora de conteúdo ou mera consumidora? E, na busca por conteúdo, queremos proteger o autor? Falamos de apoio à indústria cultural, mas ela não existe sem autor. Não se pode pensar só em consumo quando se fala de cultura.”
A ideia do direito autoral como fator de desenvolvimento econômico e social deu notoriedade a López durante sua gestão como diretor geral da Direção Nacional do Direito do Autor na Colômbia.
Ex-professor da Universidade Nacional da Colômbia, López está há dois anos à frente do Cerlalc. O trabalho inclui ajudar governos a desenvolverem a circulação do livro e a formação de leitores.
Recentemente, o Cerlalc divulgou seu primeiro balanço de hábitos de leitura de países membros, com dados de dez que promoveram pesquisas nacionais -nele, o Brasil ficou em quinto lugar no número de livros lidos ao ano (4), depois de Espanha (10,3), Portugal (8,5), Chile (5,4) e Argentina (4,6).
É ainda um balanço incipiente, mas foi a primeira vez em 40 anos que o Cerlalc pôde analisar um cenário tão amplo. Em Bogotá, onde fica a sede do órgão, López recebeu a Folha de S.Paulo para a entrevista a seguir.
As pesquisas nacionais reunidas pelo Cerlalc são de épocas distintas de uma década em que países da América Latina investiram em políticas de leitura. Como foi trabalhar com esses números?
Fernando Zapata – Bem, a relação da cultura com os números nunca foi amorosa, mas eles ajudam a entender o cenário.
O Brasil foi o primeiro país a usar a metodologia de perguntas proposta pelo Cerlalc, na pesquisa de 2007. Outros países, como a Argentina, o Peru, Portugal, fizeram as pesquisas antes, com outras metodologias. Mas agora os países já fazem seguindo nossas sugestões, para padronizar. A Venezuela está fazendo, a Colombia está fazendo, El Salvador vai fazer.
É claro que não são como pesquisas eleitorais ou de consumo. O hábito de leitura, algo tão pessoal, não sei se podemos determinar. Mas temos mostras de comportamento geral, mediante as quais podemos projetar resultados.
Quais os maiores problemas envolvendo a leitura na América Latina?
F.Z. – Falta insistir na leitura desde cedo, dentro de casa. Temos uma massa de leitores por obrigação. A leitura se dá na educação, seja nos níveis básico, elementar ou universitário, e no trabalho. Mas fora desses marcos não temos a leitura por gosto, por hábito.
O acesso à internet não pode levar a um aumento do hábito de leitura?
F.Z. – A pesquisa brasileira abordou a leitura via internet, mas não afinamos as perguntas o suficiente para precisar se o que se lê na internet equivale ao que se lê num livro.
Quando ligo o computador, a página inicial hoje me dá um serviço de notícias sobre artistas, acidentes, política etc. É uma leitura rápida e fácil. Podemos considerar isso quando falamos de leitores?
Pesquisas têm mostrado que essa leitura ampla não equivale a uma profunda. O que não quer dizer que todos que leem na internet façam leitura superficial. Por isso digo que não afinamos as perguntas. Não dá para perguntar isso a alguém: “Você faz leitura superficial ou profunda?”
O que também entra na discussão é se a formação deve focar na capacidade cognitiva, abarcando mais informação e menos profundidade, ou permanecer no protótipo que ainda temos.
Isso é um tema de debate, mas não um tema do Cerlalc. A internet não vai resolver nem a questão da leitura em livro digital se não houver uma sociedade leitora.
O livro digital é tema do Cerlalc?
F.Z. – Sim. Em toda parte fala-se do digital, mas as políticas públicas não acompanham. Para um governo dar apoio ao livro, é preciso acesso à internet. Antes, são necessários computadores, e antes ainda, uma cultura para computadores.
E aí entram outras questões. Queremos uma sociedade criadora de conteúdo digital ou uma mera consumidora? E, na busca por conteúdo, queremos proteger o autor?
É preciso que se crie um ambiente sustentável, de apoio ao autor, capaz de gerar um círculo virtuoso. Falamos de apoio à indústria cultural, mas a indústria cultural não existe sem autor. Não se pode pensar só em consumo quando se fala de cultura.
O que se pode fazer para melhorar o diálogo entre as culturas de língua portuguesa e espanhola?
F.Z. – Esse é um tema frequente nas conversas com o Brasil e outros países. É desejável que o intercâmbio cultural entre o português e o espanhol se dê de maneira horizontal.
O ideal seria que a cultura, a língua, as artes visuais, em particular o livro, viajassem na mesma velocidade com que viajam produtos e serviços na América Latina. É bem mais fácil conseguir nos mercados de Bogotá produtos brasileiros do que livros do Brasil nas livrarias. Mas isso requer investimento.
Mesmo na língua espanhola, quase não se acham livros equatorianos em Bogotá ou colombianos em Santiago. Só viaja o livro que satisfaz uma demanda comercial. Mas demandas comerciais nem sempre são construídas em cima de bons autores. Um editor não se arrisca a fazer a edição de um livro para um mercado de 20 leitores.
O ideal seria ter um catálogo que você, de qualquer parte do mundo, pudesse consultar. Sem que fosse necessário o trânsito que se faz hoje em dia, por uma ou outra empresa do mercado. Não sou contra a Amazon nem contra o Google, só acho negativo não termos nosso próprio catálogo.
Os países da América Latina têm em comum a má distribuição de livrarias, que é uma questão que envolve poder público e iniciativa privada. Que tipo de ação é possível num cenário como esse?
F.Z. – Há o exemplo francês. Em Paris, há apoio aos livreiros, com subsídio do governo para os aluguéis.
Na América Latina há, segundo pesquisas do Cerlalc, 14 mil livrarias. Muitas são papelarias, quando não supermercados, contadas pelos países como livrarias para a cifra ficar apresentável. Mas, em muitos países, você sai da capital e não encontra uma livraria.
Os economistas dizem que esse é um modelo imperfeito, porque nele o que se produz não se oferece, não se vende, não se consome.
Como se explica uma classe de produtos que não são vendidos porque não há hábito de consumo? Todo produto, seja café, seja sabonete, requer um estudo e a colocação no mercado, um esforço em publicidade. Ninguém consome sabão se não sabe que ele existe. E assim produtos e serviços têm nichos assegurados.
O livro como produto cultural não tem esse nicho assegurado. Algo falha. Por isso economistas falam que é um modelo imperfeito.
Na maioria dos países, o livro tem na base o investimento privado, e o editor se encarrega de que o círculo funcione. Mas o livro é um produto que requer estabelecimentos e hábitos a serem criados, então o Estado passa a ter compromisso. Para efeito da economia de um país, o livro é uma mercadoria, mas requer engrenagem especial.
Que outros exemplos de ações de governo bem-sucedidas existem?
F.Z. – No México, há um projeto que se iniciou na Conaculta (Conselho Nacional para as Artes e a Cultura, espécie de Ministério da Cultura).
Eles criaram há anos o Educar, livrarias públicas onde se vendem livros, filmes, artesanatos, produtos de qualquer área das artes.
Essas livrarias cresceram, hoje há mais de cem no território mexicano, e você consegue nelas todo tipo de bens culturais produzidos por empresas do Estado ou privadas. Dá tão certo que hoje se fala na privatização do experimento.
Isso mudou os hábitos de leitura?
F.Z. – Pode-se dizer que influiu no consumo de bens culturais. Como proposta econômica, foi um êxito do governo. Para saber o impacto sobre os leitores seriam necessários estudos mais extensos. Esse tipo de ação completa o círculo virtuoso de que falei antes: mais leitores, mais editores, mais autores.
Como se mede o impacto de uma política de leitura?
F.Z. – Não vou responder, vou contar uma anedota. Cada vez que vou a Cuba, fico surpreendido por um fenômeno. Não é algo que me contem: eu vejo. Vou a feiras literárias de cima abaixo na América, então sei como elas são.
A feira ocorre num lugar um pouco distante de Havana, o transporte é difícil, enfim, as condições que sabemos que existem por lá.
A feira dura um mês e é itinerante. Em Havana, fica 15 dias. As filas para entrar são impressionantes. Você vê cubanos comprando livros e livros. Eles têm 187 editorias em atividade, com catálogos elegantíssimos, é algo que surpreende.
Quando você fala com um cubano, está falando com alguém com enorme capacidade de leitura.
Perguntei a eles como conseguem isso. O fato é que, dois meses antes da feira, promotores de leitura dessas editoras, que são funcionários de governo, visitam todas as províncias de Cuba. E todos promotores leram todos os livros que serão lançados na feira. E realizam atividades de leitura.
Qual o índice de leitura por lá?
F.Z. – Não se sabe, não foi medido. Analfabetismo não há, a taxa de educação é tremenda. Se fizessem lá uma pesquisa de hábitos de leitura, os resultados seriam acima da média da América Latina.
E na Colômbia, como é o impacto da implantação de bibliotecas iniciada em 2002? Os dados mais recentes, de 2005, ainda mostram números baixos [2,2 livros/ano].
F.Z. – O projeto de uma biblioteca em cada município, sempre com bibliotecários, começou no governo anterior e continua neste. A pesquisa que está sendo feita agora deve mostrar a diferença.
A movimentação na Biblioteca Luís Angel Arango, na Candelária [bairro de Bogotá], chama a atenção. É uma movimentação que no Brasil você só vê em shopping.
F.Z. – Dizem que a Luís Angel Arango é a que mais recebe público na América Latina. Ela é sustentada pelo Banco da República, tem o acervo mais importante do país. É uma excelente espaço físico, com serviços importantes, como entrega a domicílio, toda uma operação de mercado em torno do livro e da leitura. Além disso há em Bogotá as bibliotecas do sistema distrital.
Isso é diferente do que se fez em Medellín, cidade que foi premiada por seus parques-bibliotecas, uma resposta do governo local à violência. Eles chamam de “espaços para a vida”. Contrataram serviços especializados para medir impacto: caíram os índices de homicídio, de assaltos, de maus tratos contra as mulheres.
***
[Raquel Cozer é repórter da Folha de S.Paulo]