Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A incômoda intérprete da América

É de se estranhar que Susan Sontag, muito antes de morrer de câncer, em 2004, tenha se tornado o ícone intelectual do pós-guerra dos Estados Unidos. Seu visual melancólico, de fato, foi fotografado com mais frequência e profundidade que o de seus colegas – o que se estendeu até seus momentos derradeiros. Também havia algo de retumbante em suas várias declarações públicas. A impaciente radical cultural dos anos 60 defendeu uma nova “erótica da arte”; depois de uma visita à guerra do Vietnã, denunciou a raça branca como um “câncer”; descreveu o comunismo em 1982 como um “fascismo com face humana”; encenou Esperando Godot em uma Sarajevo sitiada em 1993; e, depois, reagiu aos atentados do 11 de setembro com ataques ferozes contra políticos e formadores de opinião nos Estados Unidos, com sua campanha aparentemente conjunta para “infantilizar o público”.

Sua reputação, ainda assim, pode parecer não merecida. Alfred Kazin, cujos diários recém-publicados são um documento notável da vida intelectual americana, foi um crítico de textos individuais muito mais refinado. William F. Buckley, C. Wright Mills e Christopher Lasch tiveram mais influência sobre seus contemporâneos. Gore Vidal, Noam Chomsky, James Baldwin e Norman Mailer venderam mais livros.

Além disso, Susan escrevia raras vezes sobre os EUA ou autores americanos. Evitando o que o crítico Van Wyck Brooks certa vez descreveu como “a imensa e vaga nuvem de copas de árvores de idealismos” pairando sobre a cultura nacional dos EUA, ela preferiu a clareza adstringente das autocríticas europeias. Também é verdade, no entanto – e a publicação póstuma de seus diários confirma isso – que poucos outros atores dramatizaram sua jornada política e intelectual ou proclamaram sua alienação em relação à cena pós-guerra, nos EUA, de forma tão reveladora como Susan Sontag.

A “reconciliação” com o país

Detalhando sua “formação intelectual” neste segundo volume de seus diários, As Consciousness is Harnessed to Flesh: Diaries 1964-1980, Susan Sontag invoca personalidades e instituições que teriam simbolizado glamour a qualquer aspirante a intelectual nas províncias americanas dos anos 40: Knopf, Modern Library e, principalmente, Partisan Review [no Brasil, a primeira parte de seus diários, 1947-1963, foi editada pela Companhia das Letras]. Criada em 1934, a Partisan Review surgiu do descontentamento dos filhos e filhas – que tiveram a possibilidade de estudar – da primeira geração de imigrantes com a extrema iniquidade e materialismo da sociedade dos EUA. A Partisan Review também publicou nomes como Jean-Paul Sartre, Albert Camus e George Orwell, sustentando um radicalismo cosmopolita que era anti-stalinista, mas com orientação política assertivamente socialista e acolhedora do modernismo literário.

Susan admitiu, certa vez, que sua “maior ambição” era escrever para a Partisan Review. No início dos anos 40, no entanto, a revista estava se afastando de suas raízes na contracultura política e literária dos EUA dos anos 20 e 30. A exposição das brutalidades do stalinismo seguida tão prontamente pelos horrores do nazismo desiludiram as esperanças de escritores e intelectuais que esperavam construir uma sociedade equitativa nos EUA. De fato, programas políticos como o socialismo pareciam ter se tornado irrelevantes pela emergência pós-guerra dos EUA como país mais rico e poderoso da Terra.

Como Philip Rahv, um dos primeiro heróis de Susan, argumentou em simpósio da Partisan Review – “Our Country and our Culture” (nosso país e nossa cultura, em inglês) – em 1952, intelectuais que estavam anteriormente insatisfeitos com os EUA, agora, estavam dispostos a uma “reconciliação” com o país. Outrora despreocupadamente pobres, eles estavam em busca de status e dinheiro na nova distribuição política e econômica e cada vez mais inclinados a ser propagandistas do país do que seus críticos. E como a economia de alta expansão da Guerra Fria e suas instituições exigiam muitos labutadores intelectuais, os ex-boêmios não tiveram muito problema para encontrar patronos e empregadores poderosos.

Hostilidade à avant garde

Esses convenientes desenvolvimentos em suas carreiras foram necessariamente acompanhados por remodelações ideológicas, até mesmo tão extremas quanto a defendida pelo macarthismo. Os esforços de guerra dos EUA, extraordinariamente bem-sucedidos e lucrativos, como Rahv alertou profeticamente, haviam revivido as antigas ilusões de que o “'bom americanismo' contém o segredo para superar os perigos da história” e que os EUA estavam magicamente imunes a traumas socioeconômicos sofridos pelo resto do mundo.

Na opinião de Rahv, a crença compartilhada amplamente nos EUA como potência e referência mundial havia transferido o centro da ação política para a “esfera da política externa”. No início da Guerra Fria, os ex-radicais e ex-marxistas haviam começado a endossar a liderança americana do “mundo livre” contra o comunismo monolítico. Esses anticomunistas profissionais foram os precursores dos humanitários militantes e exportadores da democracia neoconservadores de nosso próprio tempo.

A suposição de que a história chegou à apoteose com a Pax Americana não correspondia exatamente à experiência da maioria das pessoas, particularmente na Ásia e na África, às voltas para libertar-se dos soberanos brancos. Eles – a grande maioria da população mundial – haviam entrado no que Irving Howe, outro notável escritor da Partisan Review, havia chamado de “era revolucionária”.

Nos EUA, contudo, essas centenas de milhões entrando na história moderna pela primeira vez foram vistos, amplamente, por meio das lentes distorcidas da Guerra Fria: algo do tipo, se você não está conosco, está contra nós. Esse provincianismo agressivo também teve seu impacto na vida intelectual. Rahv destacou como a complacente “disposição de aceitação” entre os intelectuais não havia apenas “despolitizado a literatura”, mas estava se tornando uma reverência vulgar ao estilo de vida americano e hostilidade à avant garde artística e literária.

“Imperialismo” voltou a ressoar

O início da carreira de Susan Sontag mostra como ela havia absorvido e reagido a essas tendências. Em busca de seu romance com a cultura francesa (e com uma mulher americana) em Paris no verão de 1958, aos 25 anos, e sustentada como todos os americanos na cidade pela força do dólar, Susan ficou alheia à intensa luta entre rebeldes argelinos e a polícia francesa em meio aos temores de um golpe direitista – eventos que não deixaram impassíveis a nenhum dos intelectuais a quem ela reverenciava. “A política não me interessava”, confessa o narrador de seu primeiro romance, O Benfeitor (1963), “mais do que qualquer jornal diário”; as revoluções pelas quais ele se importava eram aquelas das “percepções e observação”.

No início dos anos 60, Susan tornou-se defensora da suposta espiritualidade revolucionária da arte e da filosofia francesas, do nouveau roman (novo romance, em francês), nouvelle vague e estruturalismo. Ela elogiou a nova sensibilidade “audaciosamente pluralista”, que era “dedicada tanto a uma seriedade excruciante como à diversão, espirituosidade e nostalgia”.

Os ensaios reunidos em seu livro Contra a Interpretação (L&PM Editores, 1966) a consagraram como a principal intérprete americana da cultura europeia de vanguarda. A guerra do Vietnã, no entanto, que se intensificou depois de 1964, já invadia suas preocupações com o “princípio do prazer” na arte. Escrevendo em 1966, ela ponderou que para um país fundado sobre o genocídio, a guerra no Vietnã era “meramente a aplicação ao 'mundo' da ideia americana de construção da nação, livrando a natureza selvagem das pessoas escuras, nativas”. Os próprios vietnamitas, com quem teve encontros em Hanói em 1968, pareciam desconcertá-la. Sua cultura parecia não possuir nada da “complexidade” e “seriedade” (suas palavras favoritas) da arte e pensamento europeus. Com os EUA devastando a Indochina, contudo, a palavra “imperialismo” voltou a ressoar em Susan pela primeira vez desde que havia absorvido inicialmente o vocabulário esquerdista da Partisan Review.

O triunfalismo pós-guerra

O humor de Susan quanto a seu país continuou a obscurecer-se; e ela acabou colocando em dúvida suas crenças prévias sobre a autonomia da arte. Em nota em seu diário, em 1975, ela já se preocupava com seus ensaios “problemáticos” dos anos 60 e os justificava como uma reação às “ideias existentes” de então: “conformidade” burguesa e cultura middlebrow, como ficou conhecida a cultura convencional, pseudointelectual. Mas Susan nunca produziu muito com a “memória histórica” da ação política e de mudanças sociais que o Vietnã a ajudou a reviver. Ela ficou à distância da Nova Esquerda dos anos 60. Uma paixão efêmera com o comunismo foi abandonada durante os anos 70; os motivos parecem ter sido mais estéticos do que políticos.

Um moralismo essencialmente apolítico iria, daí em diante, ditar sua visão de mundo. Ela continuou nostálgica, contudo, do que chamou em um de seus últimos ensaios de “uma era que hoje parece muito remota em seus desafios intelectuais e energias introspectivas e código de auto-sacrifício e imensa esperança”. Susan parecia ter tido consciência durante o tempo todo de que a paixão por arte e pensamento que ela tanto valorizou nela e nos demais e sua própria busca por “distinção espiritual e ética” eram inseparáveis da busca mais ampla, por uma sociedade justa.

Como acabou se revelando, a maioria de seus colegas considerava suficientemente justa uma sociedade em que eles gozassem de status e riqueza. Os diários de Alfred Kazin, que examinam a si mesmo e ao mundo de forma muito mais penetrante do que os de Susan, registram uma fascinação consternada com a frenética escalada social e a apostasia política de sua geração de radicais da Partisan Review. Relatam como, a partir dos anos 60, a vida intelectual predominante nos EUA, privada da imaginação progressiva, foi tomada gradualmente pelo movimento neoconservador beligerante e provido de recursos.

A estagnação e despolitização da classe média, a fuga de vários radicais dos anos 60 para o mundo acadêmico e o desaparecimento da antiga esquerda aceleraram o processo no qual, como descrito por Arthur Koestler, “a intelligentsia, outrora a vanguarda da burguesia ascendente, torna-se a lumpenburguesia na era de sua decadência”. Ela também havia absorvido demasiadas lições amargamente paradoxais dos sucessos e derrotas da Europa para ficar impressionada com o triunfalismo pós-guerra – a noção vulgar ressuscitada de que a civilização havia chegado à fronteira final da democracia e do capitalismo no estilo americano.

A miopia da cultura intelectual

Pós-1989, sua percepção de um mundo desprovido de iconoclastas e idealistas parece ter se aprofundado. Falando sobre os anos 60, escreveu: “Como é de se desejar que parte de sua ousadia, otimismo, seu desempenho pelo comércio tivessem sobrevivido.” A nostalgia vinha acompanhada por seu desgosto por um mundo descuidadamente globalizado que estava “comprometido a unificar cobiças” e no qual todos se alimentam “ao mesmo tempo de entretenimento padronizado e fantasias de eros e violência”.

Diante dos atentados do 11 de setembro contra os EUA, ela agiu com rapidez contra o choque e pesar, atacando com fúria os “disparates hipócritas e enganação total sendo vendidos por figuras públicas e comentaristas de TV”. “Vamos, absolutamente, ficar juntos no pesar”, defendeu Susan na The New Yorker, “mas não vamos ser estúpidos juntos”.

Mas já era tarde demais. Os intelectuais lumpenburgueses – os ex-esquerdistas “opositores”, assim como os neoconservadores de Washington e os retroimperialistas – rapidamente aproveitaram a abertura em meio ao clima ideológico fervilhante; e Susan, na maioria das vezes, observou tudo horrorizada até sua morte em 2004, enquanto eles identificavam os novos inimigos da liberdade e encorajaram guerras calamitosas.

Não é difícil imaginar o que ela teria dito sobre as, agora, óbvias debilidades do capitalismo e da democracia dos EUA. Mas o que ela teria falado sobre a Primavera Árabe? A derrubada de ditadores pró-americanos aparentemente eternos é uma entre as muitas provas nos últimos 50 anos de que, como escreveu Irving Howe, embora “o impulso revolucionário tenha sido contaminado, corrompido, degradado, desmoralizado”, a “energia” por trás dele continua ora irrompendo “em uma parte do mundo, ora em outra”. A estranha ironia na carreira de Susan é que ela queria viver e trabalhar justamente em uma era revolucionária como essa – e ela viveu. O fato de que tenha deixado de identificá-la como tal diz algo sobre suas próprias escolhas políticas e estéticas. Mas diz mais sobre a auto-bajulação e miopia da cultura intelectual pós-guerra da qual ela, apesar de muitas divergências vigorosas, inescapavelmente pertenceu.

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[Pankaj Mishram, do Financial Times]