Embaladas por uma musica triunfal, um grupo de mulheres grávidas galga, lentamente, uma linda colina verdejante. Sorridentes e confiantes, elas olham adiante. Sob uma leve aragem, o cabelo das moças ganha movimento… Junto, agitam-se as roupas diáfanas, imaculadamente brancas, deixando ainda mais à vista a evidência da gravidez avançada. Tudo emoldurado por um céu de um impecável azul…
A cena acima descrita foi ao ar na propaganda eleitoral de 2002, no programa do então candidato Lula. Sob a batuta de Duda Mendonça, representava mais um apelo emocional a apontar o surgimento de um novo país. ‘Amanhã’, dizia a propaganda nas entrelinhas, ‘vai nascer um novo país, que triunfará sob um céu de brigadeiro!’ Macabéia rediviva, o Brasil estava grávido de futuro. Estava chegando a hora da estrela. A esperança, enfim, venceria o medo…
Um amigo, à época, teve uma interpretação bem diferente. Quando viu a propaganda pela primeira vez, pulou da poltrona. ‘Danou-se! – exclamou – É a colina dos Teletubbies! Elas estão grávidas dos Teletubbies! Eu sabia, o futuro era esse: seremos engolidos pelos Teletubbies!’
Seremos engolidos
Quatro anos depois, no momento mesmo em que retorna às telas a propaganda eleitoral, aquela estranha previsão ganha espaço na memória. Até porque a discussão essencial que ela levanta – a da transformação da disputa eleitoral em grande espetáculo publicitário – acabou sendo tema indireto das maiores denúncias enfrentadas pelo governo Lula. Tanto que levaram a uma série de modificações na legislação que rege o pleito.
Estas mudanças, no entanto, são ainda muito tímidas diante das necessidades de qualificação do debate eleitoral. Isso porque a transformação do voto de ato de cidadania em ato de consumo vem ocorrendo há tempos. E há tempos os candidatos já não são representantes de ideais, mas mercadorias cujas características são adaptadas pelos Dudas Mendonças às exigências do ‘mercado eleitoral’. Ou alguém se esqueceu das corridas diárias do ex-presidente Collor, que saía da Casa da Dinda sempre vestindo uma camiseta com um novo e bombástico slogan? Ou de FHC, comendo buchada de bode? Ou de Roseana Sarney, a ‘Número Um’?
‘É musiquinha pra lá… É musiquinha pra cá… Com a musiquinha você vai ter que se virar!’, resumem os humoristas do Casseta & Planeta. Por tudo isso, mais do que o cerceamento dos possíveis exageros do discurso publicitário durante a campanha, é urgente a qualificação da cobertura dada pela imprensa ao processo eleitoral. Nisso, ainda estamos muito longe do ideal… Não que o tempo e espaço sejam exíguos. Pelo contrário: a imprensa – nas diversas mídias – consagra ao tema muita importância, escalando grande número de profissionais para abordá-lo. Contudo, ainda restam vários desafios para que este tempo e espaço se convertam em maior qualidade jornalística. A título de exemplo, podemos citar três ‘síndromes’…
O determinismo da imagem
Em primeiro lugar, talvez seja preciso superar aquilo que poderíamos chamar de ‘Síndrome da Fórmula 1’. A imprensa não pode se calcar em pesquisas para fazer a cobertura das eleições como se estivesse transmitindo uma corrida de automóveis, concentrando-se em quem está na frente. Não que tais consultas não devam ser levadas em conta. No entanto, é pernicioso tomá-las como parâmetro único ao dedicar tempo e espaço a este ou àquele candidato. Mesmo porque isto acaba muito parecido com as estratégias utilizadas por muitos programas televisivos de baixa qualidade, que se baseiam nas preferências do público para apelar e, com isso, ganhar audiência. É, ainda, falar ao consumidor fingindo estar falando ao cidadão.
Outra ‘síndrome’ que poderíamos arrolar seria a do ‘Diário de Bordo’. Uma cobertura que se resume a contar o que o candidato fez corre o sério risco de não servir para nada. Que importância tem para a população saber que o presidente Lula estava numa cidadezinha do Maranhão, fez um comício em outra do Piauí, depois voou para uma terceira de Santa Catarina e, lá, terminou seu dia? Na maioria das vezes, as pessoas nem conhecem tais lugares. Em que estas informações vão contribuir para a qualificação dos parâmetros de escolha do eleitor? Não que se deva deixar de acompanhar os candidatos. Mas precisa haver um filtro crítico. Até para que o repórter não se converta num Pero Vaz Caminha.
Por último, resta a ‘síndrome da visualidade’. Esta ataca principalmente a televisão e está profundamente ligada à característica anterior. Trata-se da necessidade de corporificar em imagem tudo o que vai ser abordado. Se não existem imagens, a pauta cai. Assim, a cobertura fica praticamente reduzida ao factual e vários temas importantes deixam de ser aprofundados por não serem ‘adequados’ ao meio.
Co-autora da ‘qualidade’
Isto não quer dizer que a cobertura não tenha qualidades e nem que os problemas se reduzam aos acima colocados. No entanto, é evidente a necessidade de aprimoramento. As emissoras públicas de televisão têm apontado caminhos interessantes, como a promoção de debates – não necessariamente com candidatos, mas principalmente com especialistas das mais diversas áreas – em torno de temas capitais para o país. Mas, inclusive porque os veículos comerciais são refratários a estas soluções, ainda há muito que caminhar.
Outra questão importante é a da multiplicidade dos cargos. De certa forma, a eleição presidencial faz com que fiquem eclipsadas todas as demais disputas. Se pensarmos nas eleições parlamentares – principalmente no caso dos deputados estaduais e federais –, o que existe de fato é uma omissão. Impotentes diante do desafio materializado na absurda quantidade de candidatos, os meios de comunicação simplesmente se calam.
Este silêncio – que obviamente não é fenômeno novo – constitui duro golpe na democracia. Se a imprensa livre e atuante é uma das bases da sociedade democrática, o parlamento também o é. Se a primeira não se manifesta sobre o processo de escolha dos integrantes do segundo – por mais complexo que isto seja – não cumpre uma de suas funções mais nobres e se torna co-autora da ‘qualidade’ da representação parlamentar brasileira.
Panorama de desafios
Neste contexto, sem cobertura da imprensa, o que resta à população para orientar seu voto é a colcha de retalhos do Horário Eleitoral Gratuito. Um espetáculo deprimente em que uma infinidade de candidatos a deputado se ‘estapeiam’ por alguns segundos de exposição. Na maioria das vezes, tragicômica. Que tipo de representantes podemos esperar quando a informação se reduz a isso? É, sem dúvida, um espaço aberto à vitória dos Teletubbies…
Para inverter este panorama, é necessário que a imprensa trabalhe com mais seriedade no tratamento das eleições parlamentares. Se não é possível um olhar individualizado, que ao menos se informe a população a respeito de parâmetros que possam balizar a escolha a fazer. Que se busque qualquer coisa, que se erre, mas que se faça algo, pois a cobertura das eleições parlamentares brasileiras não pode nem mesmo ser acusada de medíocre, pois – com raras e honrosas exceções – ela inexiste.
Enfim, todas estas coisas criam um panorama de desafios seriíssimos. Que devem, no entanto, ser enfrentados. Se é que desejamos que a estrela a brilhar seja a de uma cidadania responsável, base de uma democracia sólida. E não a do primeiro Teletubbie que aparecer.
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Mestre em Semiologia pela UFRJ, professor de Rádio e TV Pública da Universidade Presidente Antônio Carlos em Barbacena e Juiz de Fora (MG)