Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Joaquim Furtado

"Cobertura informativa do Euro 2004 tem sido feita num registo propício a esbater fronteiras entre jornalismo e entretenimento. Sobretudo nos meios audiovisuais.

À evidente quebra do princípio jornalístico, do distanciamento em relação aos factos, segue-se uma conversão que transforma emissões informativas em modelos de diversão e espectáculo.

Se é verdade que a informação sobre desporto, nomeadamente sobre futebol, é um caso à parte dentro do jornalismo, tratando-se de um mega-acontecimento como é este campeonato da Europa – para mais, realizado em Portugal e disputado, também, pela selecção portuguesa – em maior grau se acentuam os sintomas de envolvimento dos jornalistas com os factos que descrevem, apresentando-os sob a óptica da sua opinião. E, neste caso, dos seus próprios gostos e desejos.

Se uma aparência de isenção pareceria artificial e mesmo deslocada, a pura militância parecerá excessiva se, como tem acontecido, a natural adesão emocional for acompanhada de sinais, ‘décors’ e adornos que tornem o jornalista parte do evento.

Algo que, ao transformar divulgação em campanha, não seria aceitável em nenhuma outra área ou tema, da política à economia.

Genuíno, o entusiasmo português que neste momento empolga o país em torno da sua selecção nacional de futebol, é muito induzido por aquela ‘não neutralidade activa’ dos ‘media’, co-autores, aliás, deste tipo de ‘acontecimentos mediáticos’ que ‘fazem parar uma nação ou o mundo’ (1).

Mas haverá aqui algum fenómeno, verdadeiramente, novo?

Distinguindo entre as transmissões dos eventos desportivos (que são espectáculos) e a informação sobre esses eventos, ou ainda o noticiário sobre o desporto em geral, Jean-Jacques Jespers (2), sublinha o estatuto particular de que o desporto goza na televisão. E afirma que não estamos a falar ‘propriamente de jornalismo’, quando nos referimos às transmissões em directo ou à informação a elas ligada: ‘não se encontra aí nem a necessidade de recortar escrupulosamente as fontes, nem a abordagem crítica, nem a exclusão de toda a propaganda (…) nem as outras regras deontológicas (…). As entrevistas são, a maior parte das vezes, conversas-ritos sem função informativa que apenas têm por finalidade valorizar os media, manter o fervor à volta das vedetas do desporto-espectáculo, participar na celebração de valores ou mitos desportivos e manter o sentimento de `união´ dos apaixonados, a sensação de pertencerem a um `mundo à parte’.

Embora, frequentemente, conduzidas por jornalistas, estas emissões (que coexistem com outras, cujos apresentadores não estão sujeitos ao código de conduta do jornalismo) fazem parte, segundo Jespers, do ‘mesmo género para-jornalístico que a imprensa cor de rosa, a imprensa rock, etc.’.

O inevitável envolvimento pessoal do jornalista ou do apresentador, na imagem do acontecimento que relata, torna a televisão num meio que – como alguém disse – ‘apela mais ao sentimento do que ao entendimento’.

Também na rádio, mas com mais evidência na televisão, a presença do comunicador – sobretudo quando em directo – transporta para o espectador

características pessoais, psicológicas e emocionais. Acrescentando a estas, a emoção própria do desporto, superlativa numa competição desportiva como aquela que decorre entre nós, encontramos o clima excepcional que se vive à volta da selecção portuguesa. Isto sem mais conjecturas, de natureza freudiana ou outra, sobre o ego nacional, a auto-estima deprimida ou o nacionalismo ‘revigorado’, aspectos também estimulados, directa ou indirectamente, por parte da comunicação social.

É, contudo, a informação espanhola que protagoniza um caso de ética, que convém referir, ocorrido na cobertura do Euro 2004.

Nas vésperas do jogo entre Portugal e Espanha, a rádio Cadena Ser telefonou a Luis Filipe Scolari pedindo-lhe declarações sobre o encontro. O seleccionador rejeitou a entrevista mas a estação, sem lhe pedir autorização, gravou as suas palavras de recusa e, também sem lhe pedir consentimento para isso, difundiu-as (sendo que, no dia seguinte a mesma rádio voltou a contactar Scolari e a ‘pô-lo no ar’, de novo sem a sua anuência).

Ao fazê-lo, o jornalista espanhol violou princípios deontológicos tipificados que, também, o Livro de estilo do Público consagra no capítulo referente ao direito à privacidade: ‘o espaço privado dos cidadãos é o único limite editorialmente imposto nas páginas do Público’.

São depois citados diversos exemplos de violação da privacidade, figurando entre eles ‘a gravação de conversas sem o consentimento do interlocutor – recurso admissível em casos muito excepcionais e com menção obrigatória do não consentimento do interlocutor’.

Ao divulgar um comentário feito em ‘off’, o comportamento da conhecida estação espanhola viola um princípio ético básico permitindo, ao mesmo tempo, a interpretação de que o faz ‘servindo a causa’ espanhola no torneio.

O clima bélico que antecedeu A realização do jogo deve-se, aliás, a essas declarações em que Scolari falou de guerra, de matar e de morrer e de portugueses e espanhóis, no seu estilo algo ‘primário’ que parece conseguir interpelar com mais eficácia o nacionalismo envergonhado e a religiosidade complexada dos portugueses, do que o proselitismo militante de muitas paróquias políticas e religiosas…

O caso acabou, afinal, por marcar a agenda de muita da comunicação social e não só dos dois países. O que também diz bastante das matérias de que se faz o noticiário destes eventos de que, ao longo destes dias, temos sido testemunhas e parte, repetindo até à exaustão respostas iguais para as mesmas perguntas, revelando desejos no lugar de previsões e rejubilando com resultados e expectativas.

Vir a UEFA, do meio das euforias e das emoções, advertir a Cadena Ser por uma conduta que viola os princípios éticos do jornalismo, isso sim, surpreende. Mas foi, na verdade, o que aconteceu. O que é também uma importante vitória no campeonato.

1) Daniel Dayan e Elihu Katz, ‘A história em directo’, Minerva

2) ‘Jornalismo televisivo’, Minerva Editora"