Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Filme lembrado, temática esquecida

É indiscutível que a característica mais notável do nosso século é o fato de vivermos numa época de comunicação de massa. Os jornais, o rádio, os filmes cinematográficos, a televisão, as revistas, a internet converteram-se, em nossa sociedade, nos principais fornecedores de fatos, ficção, entretenimento, realidades e informação.

Esses aspectos suscitaram várias indagações, estudos, pesquisas, que acabaram formando as chamadas ‘Teorias da Comunicação’. Assim, o termo ‘teoria dos mass media‘ define adequadamente um conjunto corrente de proposições, hipóteses de pesquisa e aquisições verificadas; há, porém, outros casos em que a utilização do termo foi utilizada de forma forçada, já que designava mais uma tendência significativa de reflexão e/ou de pesquisa, do que uma teoria propriamente dita.

Assim, a acumulação desses estudos recente provocou uma aceleração dramática na velocidade do comportamento comunicativo da maioria das pessoas da sociedade ocidental, como também, de uma influência no campo político, o que fez surgir vários questionamentos, como as que expõem Melvin L. De Fleur:

‘1) Qual foi o impacto provocado pelas sociedades sobre seus veículos de massa? Quais foram as condições políticas, econômicas ou culturais que levaram esses veículos a operar da maneira atual?

2) Como tem lugar a comunicação de massa? Seria a comunicação de massa um fenômeno distinto de outros tipos de comunicação? Ela difere em princípio ou apenas em detalhe de uma comunicação interpessoal mais direta?

3) Qual foi o impacto causado pelos veículos de comunicação sobre a sociedade. Que influência exerceram eles sobre os processos psicológicos, comportamentos manifestos ou culturas normativas dos indivíduos entre os quais se expandiram?’ [De Fleur, 1976:78.]

Por diversas razões, foi à terceira questão mencionada acima que a maior parte da pesquisa da comunicação de massa dirigiu-se no passado. Qualquer que seja, porém, a razão para o desequilíbrio entre os três problemas, a primeira e a segunda questão receberam consideravelmente menos atenção por parte dos estudiosos do que a terceira, e, esta dentro das pesquisas das Ciências Sociais nos Estados Unidos, foi a que se tentou na maior parte das vezes se responder, que sinteticamente seria: que efeitos produzem os mass media?

Dentre os vários paradigmas criados para tentar responder a essa questão clássica, podemos destacar a Hipótese da Agenda Setting, na qual, diferentemente de muitos trabalhos realizados no período antecedente, Cohen via a relação entre o conteúdo veiculado pelos meios de comunicação e as opiniões dos indivíduos sobre um determinado objeto ou candidato, não de forma tão direta e correlata, como tinham predominado durante quarenta anos de estudos, abordagens e resultados variados, os quais permaneciam a noção de que as mensagens da mídia exerciam uma influência mais direta e imediata no aprendizado e comportamento das pessoas. Mas como contemporâneo aos estudos das Ciências Sociais voltados a determinar a forma como se constituía a agenda pública – um instrumento de poder – Cohen transpôs essa perspectiva para a área da mídia, e reelaborou a questão dos efeitos, nos seguintes termos:

‘(…) a mídia não pode ser muito bem-sucedida em dizer às pessoas o que pensar, mas ela é assombrosamente bem-sucedida em dizer sobre o que pensar. O mundo olhará para diferentes pessoas, dependendo do que for colocado em evidência pelos escritores, editores e empresas que editam os jornais que elas lêem’ [Rogers, E. M., et. alli., 1993:72.].

Assim, avançando e apoiando-se com dados empíricos a idéia de Cohen, Maxwell McCombs e Donald Shaw foram a campo trabalhar com essa perspectiva, para verificarem a existência de uma possível correlação entre a agenda veiculada pelos meios de comunicação e os temas sobre os quais os eleitores/leitores demonstravam conhecimento e atribuiam interesse. Deram início a essa área de estudos investigando a capacidade dos meios de comunicação de massa consumidos pelos eleitores de Chapel Hill, estabelecerem a agenda da campanha presidencial de 1968 e fornecerem, consequentemente, um quadro referencial dentro do qual a definição do voto.

Os resultados dessa pesquisa publicaram num artigo que se tornou clássico [McCombs, Maxwell & Shaw, Donald. ‘The agenda-setting function os mass media’. Public Opinion Quartely, vol. 36, nº 02, 1972, págs. 176-187.], pois lançou as bases teóricas e metodológicas de um tipo de estudo que dominaria as discussões sobre os efeitos dos meios de comunicação a partir dos anos 70: a hipótese de agenda setting, segundo a qual a mídia tem o poder de estabelecer, não persuadir, a agenda do público, no qual o leitor/telespectador não apenas toma conhecimento sobre os temas veiculados, como passa a atribuir-lhes relevância a partir da quantidade de notícias recebidas e das valorações estabelecidas.

‘Em conseqüência da ação dos jornais, da televisão e dos outros meios de informação, o público sabe ou ignora, presta atenção ou descura, realça ou negligencia elementos específicos dos cenários públicos. As pessoas têm tendência para incluir ou excluir dos seus próprios conhecimentos aquilo que os ‘mass media’ incluem ou excluem do seu próprio conteúdo. Além disso, o público tende a atribuir àquilo que esse conteúdo inclui uma importância que reflete de perto a ênfase atribuída pelos ‘mass media’ aos acontecimentos, aos problemas, às pessoas’ [Shaw, E. ‘Agenda-Setting and Mass Communication Theory’. In Gazette – International Journal for Mass Communication Studies, vol. 25, nº 2, 1979, págs. 96-105, especialmente pág. 96.].

Dessa forma a hipótese de agenda setting representa antes a introdução de temas que os meios de comunicação de massa consideram importante saber e debater. Ou seja, a comunicação social não diz necessariamente ao público como deve pensar, mas quais as questões da atualidade sobre as quais é importante ter uma opinião. É nesse contexto que se pode afirmar que a imprensa tem muito poder e uma responsabilidade social muito grande na configuração da agenda de debates de uma sociedade, mas que nesse caso específico, falhou!

Mesmo com dados alarmantes como demonstram esses excertos do levantamento feito entre 2002 e 2004 pela Universidade de Brasília em parceria com a Secretaria Nacional de Direitos Humanos e o Unicef que registra casos de exploração sexual comercial de crianças e adolescentes em 927 dos 5.561 municípios brasileiros:

‘(…) a região que mais apresenta casos ainda é o Nordeste, com ocorrências em 289 cidades (31,1% do total)’;

‘A surpresa é a presença do estado mais rico do país, São Paulo, com casos registrados em 93 cidades, na liderança do ranking da exploração sexual infantil, geralmente associada à miséria’;

‘Mas as regiões Sul e Sudeste, que concentram a maior parte da riqueza nacional, tiveram ocorrências em 402 cidades, 43,2% do total nacional’;

‘Depois de São Paulo, o estado que registrou maior número de municípios é Minas Gerais, com 92, seguido por Pernambuco, com 63 cidades’;

‘(…) em Paranaguá, no Paraná, em que meninas de 11 e 12 anos fazem programas ao ar livre por R$ 1,99’;

‘(…) em cidades como Recife há casos de crianças de 5 anos sendo exploradas sexualmente em troca de R$ 0,10, R$ 0,50, e até mesmo de um prato de comida’;

Balé de impossibilidades

Partindo da premissa teórica, acreditávamos que uma questão tão problemática como demonstram os dados já citados – a prostituição infantil, temática central do filme Anjos do Sol, lançado na sexta-feira 18 de agosto em São Paulo, com 60 cópias em capitais e localidades importantes do interior do Brasil, dirigido por Rudi Lagemann, o Foguinho, que por mais de 20 anos foi colaborador de alguns dos principais cineastas brasileiros (Walter Salles e Cacá Diegues, entre outros), que conta a história de uma menina que, na cena inicial, é vendida pelo pai, iniciando a trajetória que a leva a se prostituir num garimpo, à beira da selva, a fugir e a encontrar outra selva na cidade grande – tornar-se-ia tema de debates e reflexões; enfim, esperava-se que se tornasse prioridade na agenda dos principais jornais impressos do país (Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo, de São Paulo, e Jornal do Brasil e O Globo, do Rio de Janeiro), que acabasse definindo os assuntos sobre os quais as pessoas conversariam dentro de casa, no ponto de ônibus e no trabalho.

Contudo, numa análise que levou em consideração as reportagens dos referidos jornais no período de 18 a 20/8 (sexta-feira, estréia do filme, sábado e domingo) chegamos a um dado alarmante: todos os jornais, sem exceção, apenas se referiram ao filme em sinopses nos seus encartes de cunho cultural, como a Ilustrada (Folha) e o Caderno 2 (Estado); quando assumiu vulto maior, o filme, não o tema, somente foi citado por ter concorrido e vencido nas principais categorias em que concorreu no templo do cinema, o Palácio dos Festivais de Gramado.

Por fim, se alguma função imprescindível tem a imprensa (no seu sentido mais amplo) no Brasil seria a de acabar com essa ‘realidade construída e mentirosa’ que todos levamos, essa vida falsa de ouvintes de rádio, telespectadores de televisão, leitores de revistas ou jornais, de todos que acompanhamos de boca aberta o balé de impossibilidades da vida social ou mesmo da vida política nacional.

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Professor universitário, mestre em Sociologia Política pela Universidade Federal de São Carlos, pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (Nemp-UFSCar), especialista da Agência Nacional do Direito da Infância (Andi); professora universitária, especialista em Metodologia e Didática do Ensino Superior, coordenadora pedagógica da Representação de Ensino/Secretaria de Educação de Rondônia