‘O espetáculo que a mídia nos oferece tem a paradoxal virtude de ser um grande ensinamento para o país. Paradoxal, pois o mau exemplo dado pelos depoentes Marcos Valério, Silvinho Pereira e Delúbio Soares exibe uma prática petista de governar que não deve ser imitada por todos os que prezam a democracia. E a democracia pode se fortalecer pela experiência que estamos observando de cinismo, hipocrisia, dissimulação e, sobretudo, mentira. Os silêncios constrangedores do que parece ser uma ‘quadrilha’ com propósitos partidários, amparados por hábeas-corpus preventivos, são uma espécie de confissão de culpa de tudo o que fizeram e, assim, omitem. Versões estapafúrdias se seguem umas às outras e, o que é mais preocupante, tendo algumas a chancela do presidente da República, quando validou de Paris as últimas versões de seus companheiros e amigos.
Muitas analogias têm sido feitas entre o atual governo e o do ex-presidente Collor. Afora a questão dos montantes, que parecem ser muito mais elevados sob a égide petista, a corrupção atual tem duas características que a distinguem: o seu caráter sistêmico e a sua finalidade político-partidária. Sistêmica, a corrupção o é por ter sido feita através de uma simbiose entre o partido e o governo que atinge a máquina estatal como um todo, estabelecendo uma articulação entre o PT, empresas estatais, privadas e o governo. Criou-se todo um aparelho sob o comando de dirigentes partidários e governamentais que passou a reger as relações políticas. Político-partidária, pois a corrupção tinha o propósito de assegurar a hegemonia do PT sobre o Estado através da corrupção de outros partidos e do próprio Poder Legislativo. A democracia foi assim corroída desde dentro, exibindo uma prática leninista de desprezo das instâncias representativas, como se o Parlamento fosse mero instrumento de um projeto mais amplo, ‘socialista’, que poderia ser implantado num eventual segundo mandato. O dinheiro ia principalmente para o partido, embora já apareça que os ‘apparatchiks’ também se tornaram ‘apparatchiques’.
A mentira é um outro elemento dessa corrupção ‘política’, pois ela corresponde a uma certa prática de poder, não sendo casual. Delúbio e Silvinho Pereira são defendidos por advogados pagos pelo partido e não foram nem suspensos por este. Nem as aparências são guardadas. Neste sentido, a mentira não é apenas uma forma de ocultar algo, atos ilícitos ou imorais, mas, segundo o uso que dela é feito pelo PT, é também um instrumento político, de controle sobre os outros partidos e as instituições democráticas. Os rastros que estão sendo revelados exibem uma forma de impunidade, como se o partido e o seu governo fossem onipotentes, não estando obrigados a seguir as regras republicanas. Estas, no entanto, estão sendo fortalecidas pela mídia em geral e por CPIs e comissões que estão resgatando o sentido mesmo de coisa pública.
O problema moral da mentira surge quando políticos velam o que estão fazendo com o intuito de aproveitarem uma determinada situação em proveito próprio. No passado, esse tipo de político se pautava pelo lema ‘rouba, mas faz’. O produto do roubo era normalmente utilizado para o enriquecimento pessoal. A repercussão política de uma tal prática consiste, porém, no enfraquecimento da cena pública, pois as instituições são apropriadas privadamente por alguns, perdendo o seu caráter universal.
O problema político se caracteriza pelo uso sistemático da mentira enquanto meio de exercício do poder. O seu caso extremo se configura nos regimes totalitários, onde, graças à ausência completa de liberdade de imprensa e de expressão, os que detêm o poder o exercem sem nenhum tipo de constrangimento, impondo à população o que eles pretendem que ela creia. Há modos intermediários, que apresentam diferentes formas de autoritarismo, dependendo de sua realização. Em todo caso, podemos nomear uma determinada prática da mentira como leninista.
Na verdade, o que está em questão é: República ou desestruturação das instituições democráticas. A tarefa que se impõe, sobretudo de parte do Congresso Nacional, é o resgate do sentido da coisa pública por intermédio de uma punição exemplar dos envolvidos. Bons exemplos fazem avançar a democracia, maus a fazem perder.
DENIS LERRER ROSENFIELD é professor de filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.’
Carlos Chaparro
‘A desonestidade da incoerência’, copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 22/7/05
‘O XIS DA QUESTÃO – Graças à tecnologia, tudo se sabe, tudo se descobre, tudo se divulga. A transparência virou virtude inevitável. Também por isso, a coerência tornou-se a virtude de caráter fundamental na vida pública. E o que dói hoje, na alma brasileira, são as contradições entre o prometido e o realizado, entre o anunciado e o descoberto. O que leva os brasileiros à amargura da desesperança é a desonestidade da incoerência. Quem acreditou, foi enganado.
1. Falsa transparência
Transparência… Essa foi a palavra cinicamente repetida pelo Delúbio Soares, ao longo do seu depoimento na CPMI dos Correios. Digo com a maior transparência, estou sendo transparente, argumentava ele a cada resposta, como se estivesse falando a políticos ingênuos, naquela sala, e a cidadãos bobos, pela televisão. Na verdade, a evocação (talvez fosse invocação…) da ‘santa virtude’ da transparência não passava de simplório truque de escapismo. A tática geral era a da mentira, mesmo quando, no cacoete retórico, o tesoureiro ‘dos milhões não contabilizados’ nos tentava impingir a suposta transparência como sinal de virtude política e honestidade cívica, coisas que claramente lhe faltavam – na biografia, como comportamentos.
Um malandrão, esse Delúbio.
Mas deixemos pra lá o Delúbio e a sua falsa transparência. Até porque, se algo de transparente existe na história em que é protagonista, esse algo é a corrupção. Jamais se viu corrupção política tão transparente, apesar da engenhosa arquitetura montada, de lavagem e distribuição do dinheiro. Chega a ser surpreendente a transparência com que a fantástica trama aflora das investigações e se espalha no entendimento popular.
Devo a Delúbio, porém, o tema desta semana. Graças à sua insistência em usar o argumento da transparência, me ocorreu advertir os políticos para uma novidade que parece não terem percebido ainda – esta: a transparência, senhores políticos, tornou-se virtude obrigatória, inevitável, da qual ninguém mais consegue escapar.
Nem pessoas nem instituições.
Hoje, na sociedade em que vivemos, com usos e costumes determinados por tecnologias de informação e comunicação, em vertiginosa evolução, tudo se sabe, tudo se descobre, tudo se divulga. Por decorrência, foi-se o tempo das exaltações cívicas à transparência.
A coerência, essa sim, tornou-se a virtude de caráter fundamental na vida pública. Quanto mais ampla e inevitável é a transparência, mais a coerência se torna essencial, como guia de comportamentos, na vida pública.
A crise que sacode o Brasil de alto a baixo é, no seu âmago, uma crise de coerência. Quer a gente olhe para o PT ou para o Lula, para o José Dirceu ou para o Delúbio, o que nos magoa, frustra e assusta é a falta de coerência.
2. Virtude essencial
Transparência é a qualidade da limpidez, da visibilidade, da percepção clara. Coerência é algo mais complexo, um conceito que se irradia em nexos com a Filosofia, com a Moral, com as Ciências Naturais e Culturais.
Derivado do latim (haeso, que significa estar unido, reciprocamente aderido), o termo coerência teve seu emprego amadurecido na Física, para indicar que os átomos e as moléculas estão unidos entre si, nos corpos sólidos. Da Física transitou para a Filosofia e para as Ciências Naturais, como expressão indicadora da ausência de contradições, entre as partes de uma doutrina, de um argumento ou de um sistema.
Com sentido equivalente, passou a ser empregado também na vida moral, para definir a lógica da obediência aos princípios estabelecidos e aos compromissos assumidos.
O que faltou ao presidente Lula, naquela malfadada entrevista concedida em Paris à repórter Melissa Monteiro, assim como nas manobras protelatórias das investigações no Congresso, não foi só a grandeza e a lucidez de estadista, mas a virtude básica da coerência.
O Brasil não elegeu Lula para ouvir dele, dois anos e meio depois, que os crimes do PT (eleitorais e outros) são toleráveis, porque, afinal, no dizer do presidente, apenas fez o que os outros partidos sempre fizeram.
Os eleitores não confiaram o Brasil ao trabalhador Lula para que ele entregasse ao José Dirceu o poder de nomear amigos e correligionários, aos milhares, não para resolver os problemas do Estado e do País, mas para a mera ocupação partidária de espaços políticos, em estratégias e táticas de aparelhamento ideológico. E para a distribuição de benesses.
Nas expectativas dos que votaram em Luiz Inácio Lula da Silva não estava a possibilidade de um dia ouvi-lo dizer que é melhor dizer bobagens do que fazer bobagens – lamentável manifestação de que não percebe nem a grandeza nem a complexidade do cargo. Um Presidente da República age principalmente pelo que diz. A fala presidencial é sempre, e inevitavelmente, uma forma de ação, provavelmente a mais importante. Logo, o presidente Lula faz bobagens quando diz bobagens.
O Brasil não entregou o poder ao Partido dos Trabalhadores para que, ao contrário do que a história e o discurso partidário prometiam, se tornasse um agente institucional de permanência e expansão de maus costumes políticos, entre os quais o das alianças nutridas a corrupção.
O que dói hoje, na alma brasileira, são as contradições entre o prometido e o realizado, entre o anunciado e o descoberto, entre a ficção colorida da propaganda regiamente paga e triste realidade social que o governo não consegue transformar, por incompetência e escassez de recursos.
O que leva os brasileiros à amargura da desesperança é a desonestidade da incoerência. Quem acreditou, foi enganado.’
Carlos Heitor Cony
‘A temporada de caça’, copyright Folha de S. Paulo, 24/7/05
‘Li por aí que o senador Delcídio Amaral passou um dia inteiro selecionando denúncias que chegam à CPI dos Correios, a maioria delas vinda de anônimos que aproveitam a confusão para acusar desafetos políticos ou profissionais.
É sempre assim. Por ocasião do atentado da rua Toneleros, em 1954, que provocaria o suicídio de Vargas, a mídia de então, interessada em derrubar o presidente da República, noticiava um desfile de suspeitos na emboscada que mataria o major Vaz. Impressionante os nomes que surgiram e ficaram no noticiário durante os dias da crise.
Foram vistos naquela rua e naquele momento generais, deputados, governadores de Estado, empresários, além da arraia-miúda, como a copeira que trabalhava na casa de Lutero Vargas. Mais tarde, ficamos sabendo que houve apenas três testemunhas qualificadas, os jornalistas Armando Nogueira, Octavio Bonfim e Deodato Maia. Segundo os jornais, metade da população brasileira passou por ali -até mesmo um defunto que havia trabalhado na Guarda Pessoal do Catete. O denunciante pensava que o cara ainda estava vivo, e, vivo ou morto, devia ser suspeito.
Em caso menos emocionante, quando mataram a jovem Cláudia Rodrigues, obrigando-a a tomar uma overdose, eu morava em frente ao apartamento onde não apenas mataram a jovem mas trouxeram o cadáver para a calçada. Não vi nada naquela noite, embora estivesse a menos de 40 metros do crime. Nos dias seguintes, fiquei sabendo que metade da população do Rio por ali passara, cada jornal descobria que fulano ou sicrano participara da bacanal.
Pulando de dois casos antigos para a crise que está abalando a nação: quem foi ao Banco Rural, agência Brasília, nos últimos dois anos e meio? Quem foi visto pelas imediações? Os registros bancários, tal como vem ocorrendo, servirão como indícios ou provas. Mesmo assim, a temporada de caça está aberta.’
Dora Kramer
‘Longe deste sensato mundo’, copyright O Estado de S. Paulo, 24/7/05
‘Lula vive em cena virtual, como protagonista de um reality show para platéia dirigida Não há mais parâmetros a medir nem critérios a seguir para tentar entender o que, afinal de contas, pensa o presidente da República a respeito, nem digamos da crise, mas da realidade em si, do País que acredita governar.
‘Não existe mulher nem homem neste país de 180 milhões de habitantes que tenha coragem de me dar lição de moral e de honestidade. Está para nascer alguém que venha querer me dar lição de ética’, desafiou Luiz Inácio da Silva, repetindo conceito transmitido à Nação dias atrás, segundo o qual é ele o único fiel depositário da moral e dos bons costumes no Brasil.
Retomou também o discurso de ataque ‘às elites’ que se imaginava abandonado, por inconsistente e, sobretudo, incoerente com o perfil de boa parte dos eleitores de outubro de 2002 e dos mais que vieram se juntar em apoio a seu governo a partir de janeiro de 2003.
O estado emocional do presidente compreende-se; pela primeira vez em décadas de vida pública é alvo de desconfiança no campo da moral.
Forjou carreira acostumado a lisonjas e reverências por sua origem e trajetória. Quando criticado, contou com o contraponto da denúncia do preconceito e, ao assumir a Presidência da República, foi recebido como a representação da redenção nacional.
Acreditou nos superlativos, não deu a eles a real dimensão do happening cívico que assolava o Brasil, não levou em conta que exageros têm duas vias (a mão que acaricia se dá o direito de apedrejar) e agora toma como manifestação de insidiosa ousadia a suposição de que possa, pelo fato de ser o presidente, ter alguma responsabilidade sobre atos de corrupção em seu governo ou no partido do qual é o maior símbolo e ao qual entregou a administração da maior parte da máquina pública.
Portanto, o estado emocional do presidente compreende-se.
Impossível de entender nesta altura é a ausência de qualquer sinal de racionalidade em sua mente. Ninguém está, entre os 180 milhões de homens e mulheres deste país, a querer ministrar-lhe lições de ética. Bem como, já foi dito à exaustão, ‘as elites’ não se movimentam no sentido de exigir que baixe a cabeça.
Ao contrário. O que há tempos se pede ao presidente é uma demonstração inequívoca de entendimento a respeito do que seja o dever de um governante, a começar pela aplicação, ele mesmo, de seus preceitos éticos ao comportamento de seus subordinados no governo ou companheiros de partido.
Em momento algum o presidente Lula mostrou-se disposto a tratar desse tipo de assunto com a seriedade que o País merece, incluídos aí todos os casos de conduta imprópria.
Desde a viagem particular com recursos públicos da então ministra Benedita da Silva para Buenos Aires – tratada com a complacência de erro administrativo – até o mais rumoroso dos desvios, o da entrega de missão de confiança da Casa Civil a um funcionário cuja desonestidade comprovada foi reverenciada com a prerrogativa da demissão ‘a pedido’.
Nem um só episódio de malfeitoria mereceu do presidente da República uma ação enérgica que lhe pudesse conferir autoridade para se postar acima do bem e do mal como acredita ser seu direito inalienável à custa do rebaixamento moral de seus compatriotas, dos quais busca, de forma ofensiva, subtrair o direito à cobrança de responsabilidade inerente e à altura do cargo.
A todos os suspeitos o presidente conferiu o benefício, não da dúvida, mas da certeza da inocência a priori. Seria de esperar que tivesse aprendido a lição aplicada por Roberto Jefferson, em favor de quem advogou sem medir conseqüências.
Não aprendeu, como de resto continua ignorando que o Brasil é maior e mais complexo que porcentuais de pesquisas de opinião.
A defesa
A propósito de referências a respeito de seu comportamento durante o depoimento de Delúbio Soares e do uso do habeas-corpus concedido pelo Supremo Tribunal Federal, bem como sobre a conduta do comando da CPI em relação aos limites da salvaguarda, o advogado Arnaldo Malheiros envia mensagem cujos pontos são aqui resumidos.
1. ‘Uma investigação deve apurar a existência ou não de ilícito independentemente da participação do suspeito. O fato de um investigado não colaborar na ação contra si próprio não é insolência; é apenas defesa.’
2. ‘A Constituição garante a qualquer acusado o direito ao silêncio, ou seja, o direito de não responder a nenhuma pergunta sobre qualquer assunto, a critério exclusivo da defesa.’
3. ‘Não tem fundamento jurídico a afirmação de que o presidente da CPI poderia recorrer contra a liminar concedida pelo STF.’
4. ‘Quanto a minha postura na CPI, asseguro que não há desrespeito ou pouco caso contra ninguém. É muito difícil passar 15 horas num depoimento como esse, e é comum que os presentes (parlamentares, assessores, jornalistas, funcionários) conversem, sorriam ou exibam expressões faciais’.
Bem comparando
Observação de um brasileiro em busca de explicações: ‘Talvez o marxismo tão defendido pelo senhor José Dirceu seja baseado na obra dos irmãos Marx e não em Karl Marx.’’