‘‘Ouvindo e lendo a comunicação social parece que está tudo resolvido, que há um novo presidente da Comissão [Europeia], um novo primeiro-ministro e até ministros’. Isto dizia o presidente da República, Jorge Sampaio, no ‘longínquo’ dia 27 de Junho, logo nos começos da agitação política que se tem vivido em Portugal. Na véspera, tinha-se tornado público que o primeiro-ministro Durão Barroso se dispunha a aceitar ser o novo presidente da União Europeia e que iria, em consequência, abandonar a chefia do Governo. Estávamos num sábado e, nesse dia, os principais meios informativos entregavam-se à tarefa de identificar quem ocuparia que pasta ministerial no Governo a constituir. Era como se fosse óbvio e natural que a responsabilidade de conduzir o Executivo já estivesse definida de uma vez por todas, interessando apenas saber quem continuava e quem saía, quem teria mais chances ou quem já poderia já ter sido sondado.
Não compete ao provedor do leitor fazer comentário político, pelo que o alcance interpretativo do aviso de Jorge Sampaio, feito em 27 de Junho, está fora do âmbito desta coluna. Mas quando o presidente invoca o papel da comunicação social, vale a pena perguntar se o modo como, em geral, os media se comportaram ajudou a informar sobre o que se estava a passar e contribuiu para esclarecer os cidadãos. Até porque, ao mesmo tempo, outras vozes, nomeadamente oriundas do espaço político que apoia a maioria política, alertavam para a eventualidade de a mesma comunicação social estar a ser manipulada.
Sobre o tratamento dado às diligências desenvolvidas pelos diversos agentes político-partidários neste período e ao que de substantivo nelas se jogava, convém examinar vários aspectos. Em primeiro lugar, importa indagar sobre o destaque dado ao assunto.
Dei-me à tarefa de rever o trabalho feito pelo JN, desde que se desencadeou a perturbação política. Foram, em termos gerais, duas semanas intensas, a primeira das quais ainda com o Euro 2004 de permeio. Em 15 dias, o Jornal fez dez vezes a manchete com as movimentações políticas, e nos escassos dias em que não seleccionou o tema foi sobretudo porque as atenções se concentravam nas meias-finais e na final do campeonato da Europa. Nesses títulos fortes de primeira página dedicados à política, a ênfase foi quatro vezes colocada em Durão Barroso, três em Sampaio e duas em Santana Lopes. Nenhuma nas posições ou iniciativas dos partidos da Oposição. Por três vezes se concede o principal título da capa a factos previstos para os dias seguintes: ‘Santana Lopes eleito amanhã líder do PSD’ (dia 30/6); ‘Durão demite-se na segunda-feira’ (dia 3/7) – este publicado no dia em que havia a notícia da morte de Marlon Brando e de Sophia de Melo Breyner – e ‘Decisão de Sampaio só no fim de semana’ (dia 8/7). É pelo menos discutível esta tendência para inserir manchetes centradas no ‘quando’, tanto mais que algumas nem sequer podiam ser garantidas. O presidente, por exemplo, decidiu, afinal, na sexta-feira, antes, portanto, do fim-de-semana.
Outra questão interessante centra-se no modo como o que se passou foi, digamos assim, formatado e enunciado. A grande maioria dos observadores tendeu a designar o que se passou como uma ‘crise’ e a atribuir essa responsabilidade antes de mais a Durão Barroso. Mas a catalogação dos factos como uma ‘crise’ não é consensual. Os termos para referenciar o que se passou foram desde ‘a mais grave crise’ da democracia (expressão atribuída a Lurdes Pintasilgo) até à recusa de que tenha havido uma crise (cf. edição de 1.7), por parte de dirigentes da coligação, para quem, quando muito, terá havido uma recomposição ou remodelação. Crise, sim, haveria se o presidente recorresse à ‘bomba atómica’ e convocasse eleições antecipadas. Quando há dissonâncias profundas na interpretação do que se está a passar, não é inócuo o modo como os media classificam a onda de acontecimentos à matéria ligados. Mas, analisando a matéria publicada, verifica-se que este Jornal deu à ‘crise’ o destaque devido – porventura até exagerado na primeira página e tratou-o com equilíbrio e independência.
O que não quer dizer isento de problemas e mesmo de erros, alguns deles merecedores de nota e de reflexão mais circunstanciadas. Enuncio-as apenas, podendo eventualmente voltar ao tema proximamente: 1) as peças publicadas pelo JN ao longo dos últimos quinze dias contradizem-se relativamente a saber se existiu ou não um compromisso entre Jorge Sampaio e Durão Barroso de que não haveria o recurso a eleições; 2) estreitamente ligado a este ponto, verifica-se que o tratamento jornalístico assenta excessivamente na iniciativa dos agentes políticos e pouco na iniciativa dos jornalistas; 3) a tendência dos meios políticos para a repetição de argumentos não tem que ter uma tradução na cobertura jornalística; 4) finalmente, observa-se um défice acentuado na identificação das fontes ou na explicação das razões pelas quais elas não são explicitadas. Sobre estes pontos e outros que sejam entendidos como relevantes, convido, desde já, os leitores, os agentes políticos, os estudiosos do jornalismo e, naturalmente, os editores e jornalistas – particularmente os directamente envolvidos na cobertura da crise – a pronunciar-se. Voltaremos, por isso, ao assunto.’