‘A privataria telefônica está acabando onde devia ter começado: na polícia. O banco Opportunity, do magnata Daniel Dantas, contratou a investigadora multinacional Kroll, para xeretar a vida de concorrentes, inimigos, adversários e, quem sabe, futuros amigo$. Há nessa associação um toque de grife. Imagine-se o doutor Daniel dizendo que contratou o detetive Severino para xeretar arquivos de mensagens eletrônicas. Depois pense-se na Kroll fazendo o mesmo serviço, em inglês, globalizada, chique. O relatório da Kroll divulgado pelo repórter Marcio Aith mostra que Daniel Dantas meteu-se na xeretagem da vida do comissário José Dirceu, do presidente do Banco do Brasil, Cássio Casseb, e na captura de algumas mensagens eletrônicas (velhas) do então sindicalista Luis Gushiken, arquivadas no computador de um inimigo.
Faz tempo que o doutor Daniel meteu-se no mundo da meganha. Logo ele, que aos 48 anos administra algo como US$ 4 bilhões. Há as impressões digitais do banco Opportunity na divulgação de um grampo de conversas do jornalista Ricardo Boechat com o empresário Paulo Marinho. É um caso de 2001, que vale ser relembrado.
Apareceram em pelo menos duas redações pessoas interessadas em divulgar o resultado da interceptação do telefone da casa de Marinho. Um grande jornal recusou-se a usar o material. Publicadas pela revista Veja, as conversas provocaram a demissão do colunista de O Globo. O jornal condenou a conduta de Boechat, que lera para Marinho o conteúdo de uma nota, baseada em informações que recebera dele, contrária aos interesses de Dantas. Passados três anos, essa questão virou matéria vencida. Sobrou outra: Como a conversa de Boechat com Marinho foi grampeada, degravada e propagada?
Por incrível que pareça, o grampo teve autorização judicial. Ele foi obtido numa Vara de Duque de Caxias, por iniciativa de um delegado que investigava as traficâncias de Fernandinho Beira-Mar. Ele pediu 22 interceptações. Entre elas estava o número de Paulo Marinho. O empresário virou um daqueles jabutis que aparecem em cima de forquilhas. Esse estranho episódio está sendo investigado pela Central de Inquéritos do Ministério Público do Rio de Janeiro. Um dia se descobrirá como puseram o empresário na forquilha.
Segundo um depoimento de Marinho, o banqueiro Daniel Dantas contou-lhe que ‘tinha conhecimento’ doa grampos e ‘teria ouvido o conteúdo das gravações’. Nessa mesma conversa, Dantas contou-lhe que contratara os serviços da Kroll.
Se uma pessoa resolve grampear outra, comete um tipo de delito. Bem mais grave é grampear um cidadão por ordem judicial e suas conversas acabarem divulgadas no contexto de disputas comerciais privadas. Amigos de Dantas insistem em que não foi ele quem articulou a interceptação do telefone de Marinho. Em pelo menos uma redação, a equipe do Opportunity articulou, sem sucesso, a divulgação das conversas gravadas.
Se Daniel Dantas quiser começar uma carreira de policial, talvez venha a se tornar um dos maiores detetives do Brasil. Se continuar misturando métodos de polícia terceirizada com objetivos de banqueiro americano, produzirá apenas mais inquéritos.’
Marcio Aith
‘Empresa espiona alto escalão do governo Lula’, copyright Folha de S. Paulo, 22/07/04
‘Uma empresa privada espiona os passos, as mensagens e as contas de funcionários do primeiro escalão do governo Lula. É o que revelam documentos sigilosos obtidos pela Folha, indicando o monitoramento feito pela Kroll Associates, uma das maiores empresas de investigação do mundo, no interior da administração federal brasileira.
A investigação foi encomendada por Carla Cico, presidente da Brasil Telecom, companhia controlada pelo banqueiro Daniel Dantas, do Opportunity.
O objetivo formal do contrato era investigar a Telecom Italia, companhia com a qual o Opportunity disputa o controle da Brasil Telecom. As duas empresas travam uma batalha na Justiça, no Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) e num comitê de arbitragem em Londres.
A espionagem, porém, acabou extrapolando o mundo empresarial e atingiu o governo petista, administrações municipais controladas pelo PT e outras empresas fora do setor de teles.
Em sua investigação, a Kroll obteve e-mails antigos do ministro Luiz Gushiken (Comunicação) e o elegeu, em 2004, como alvo de ‘máxima prioridade’. Nesses e-mails, anteriores à posse do governo Lula, Gushiken troca informações com Luiz Roberto Demarco, ex-sócio de Daniel Dantas no Opportunity, com o qual trava hoje uma batalha judicial.
Num desses e-mails, de 2001, Gushiken discutiu com Demarco sobre oportunidades de negócios na área de previdência on-line. Em outro, de 2000, ofereceu a Demarco ajuda na obtenção de aliados dentro da CVM (Comissão de Valores Mobiliários) que o ajudassem na disputa contra Dantas. Gushiken confirma a existência dessas duas mensagens, mas nega qualquer irregularidade. Descreve a atuação da Kroll como ilegal e sórdida.
Além disso, a Kroll obteve dados pessoais e monitorou encontro secreto, em Portugal, do presidente do Banco do Brasil, Cássio Casseb, com executivos da Telecom Italia -companhia da qual fora conselheiro em 2000.
No dia 26 de maio de 2003, já no governo Lula, Casseb encontrou-se no hotel Four Seasons Ritz de Lisboa com os executivos da Telecom Italia Nicola Verdicchio, Carmelo Furci e Giampaolo Zambeletti. Não há relatos sobre o objeto do encontro, interpretado pela Kroll como prova de que Casseb se opõe aos interesses de Daniel Dantas dentro do governo. Contas pessoais de Casseb também foram listadas.
O monitoramento de Gushiken e de Casseb pela Kroll deve-se ao fato de ambos terem formulado a orientação, já sob o governo Lula, para que os cinco fundos de pensão de estatais que são acionistas da Brasil Telecom (Sistel, Telos, Funcef, Petros e Previ) desfizessem, em outubro de 2003, os acordos de acionistas que permitem ao Opportunity controlar a companhia mesmo sendo Dantas apenas um sócio minoritário.
Esses acordos foram costurados em 1998, no processo de privatização das telecomunicações, no governo Fernando Henrique Cardoso. Hoje, são objeto de uma complicada batalha judicial.
O governo soube inicialmente dos trabalhos da Kroll por acidente, ao investigar possíveis ligações do escândalo da Parmalat com empresas ligadas à Telecom Italia. Ao trabalhar no caso, a PF percebeu a existência de uma investigação paralela. Grampeou uma conversa entre um motorista da Parmalat e um investigador privado que, involuntariamente, revelou a atuação da Kroll -apelidada pela agência de ‘Projeto Tóquio’.
Além disso, no último dia 16, o delegado da Polícia Federal Emmanuel Henrique Balduino de Oliveira e o diretor de combate ao crime organizado do Departamento de Polícia Federal, Getúlio Bezerra dos Santos, receberam da Telecom Italia cópias de relatórios secretos da Kroll.
Contra-investigação
A Telecom Italia disse ao governo ter obtido esses documentos por um anônimo. Para o governo, trata-se de um dos mais sofisticados trabalhos de contra-investigação da história da arapongagem corporativa.
A Folha não sabe se a Telecom Italia entregou ao Ministério da Justiça todos os documentos da Kroll que conseguiu obter. O ministro Marcio Thomaz Bastos (Justiça) não quis comentar o caso. A Folha apurou na PF que ela obteve os mesmos papéis.
Entre eles, está uma mensagem, de 6 de maio passado, que teria sido enviada por Carla Cico ao diretor do escritório da Kroll em Londres, Charles Carr. Nessa mensagem -que Cico nega ter enviado- a executiva teria solicitado a Carr que investigasse pagamentos da Telecom Italia a políticos do PT ligados às prefeituras de Santo André e Ribeirão Preto.
Relatórios da Kroll repetem a mesma hipótese de que empresas ligadas à Telecom Italia tenham financiado irregularmente políticos do PT, principalmente no município de Ribeirão Preto. Não há provas nesse sentido.
Prefeitura paulistana
Os papéis da Kroll definem como aliado da Telecom Italia o investidor Naji Nahas. A prioridade é buscar eventuais relações entre Nahas e Luis Favre, marido da prefeita de São Paulo, Marta Suplicy. A investigação se concentra na suposta atuação conjunta de ambos para obter contrato de coleta de lixo para a Vega Engenharia Ambiental. Nesse caso, também não há provas nesse sentido.
O relatório da Kroll mostra que Casseb foi investigado por cerca de um ano. O encontro em Lisboa não foi o único que teria sido registrado. No dia 30 de março deste ano, uma outra reunião foi objeto de espionagem, desta vez no hotel Sofitel, no Rio.
Segundo o relatório da Kroll, o presidente da Previ, Sergio Rosa, também participou desse encontro, desta vez com executivos da TIM e de sua controladora, a Telecom Italia. De acordo com o documento da Kroll, o secretário de Planejamento do Estado de São Paulo, Andrea Calabi, também estava presente na reunião.
Ainda de acordo com o relatório, ‘o encontro foi organizado pela secretária da Telecom Italia, que solicitou que a reserva não fosse feita em nome da empresa’. O aluguel da sala, diz a Kroll, foi pago pela chefia de segurança do representante da empresa Pirelli no Oriente Médio e na África. A Pirelli adquiriu o controle da Telecom Italia em 2001.
O relatório da Kroll registra ainda um encontro, em maio de 2003, na Espanha, entre o empresário Carlos Jereissati e Tronchetti Provera, executivo da Telecom Italia. Segundo o relatório da Kroll, Jereissati teria proposto a formação de um ‘cartel’ para tirar a Brasil Telecom do mercado.
No relatório, o empresário Nelson Tanure, controlador do ‘Jornal do Brasil’, é apontado como líder de uma campanha contra a Brasil Telecom no país. Colaborou CATIA SEABRA, da Reportagem Local’
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‘Gushiken diz que investigações são ‘sórdidas’’, copyright Folha de S. Paulo, 22/07/04
‘O titular da Secretaria de Comunicações, ministro Luiz Gushiken, disse à Folha que as investigações da Kroll são ‘ilegais, sórdidas e vêm de interesses que não são públicos’. Segundo Gushiken, ‘a Justiça vai dar um tratamento adequado a essa questão’.
Gushiken confirma o envio de duas mensagens a Luiz Roberto Demarco, em 2000 e em 2001, mas nega qualquer irregularidade.
‘Tive com Demarco dois tipos de relacionamento. Eu atuava na área de previdência e me preocupava muito com o acordo de acionistas que os fundos de pensão fizeram com Daniel Dantas no governo passado. Demarco me contava como Daniel [Dantas] controlava esses fundos de pensão’, afirmou o ministro.
Segundo Gushiken, o outro assunto diz respeito a uma empresa de software que Demarco tinha na área de call center. ‘Ele queria saber como funcionava o setor de previdência complementar. Queria minha opinião a respeito.’
Viagem
Em férias, Cássio Casseb, presidente do Banco do Brasil, não foi localizado. A secretária-executiva do BB confirmou a viagem de Casseb a Portugal, mas disse que o motivo foi um encontro com a empresa Visa, administradora mundial de cartões de crédito. Durante a viagem, informou a secretaria, Casseb teria se hospedado no mesmo hotel Four Seasons Ritz, descrito no relatório, porque é lá que a Visa organizou um encontro de seu conselho.
A assessoria do banco disse ainda ser normal que, em viagens como essa, Casseb participe de encontros com executivos de outras companhias.
Embora tenha confirmado um recente encontro com um executivo da Telecom Italia num hotel do Rio, o secretário de Planejamento do Estado de São Paulo, Andrea Calabi, nega que a reunião tenha contado com a participação de Casseb ou do presidente da Previ, Sergio Rosa.
‘Fui conselheiro da Telecom Italia e estive lá para um aperitivo. Mas não tive nenhuma reunião com o Casseb. São loucuras mentais de você sabe quem’, afirmou, sem mencionar a quem se referia.
Calabi, no entanto, confirmou outra informação que consta do relatório da Kroll: ele e Casseb dividiram um escritório entre 2001 e 2002. As duas empresas, explica, compartilharam o mesmo prédio, além de projetos, inclusive na área de telefonia.
‘Fomos conselheiros da Telecom Italia. Ele já era conselheiro antes de mim’, lembra, chamando de paranóia empresarial a atuação da Kroll.
Procurado, o banqueiro Daniel Dantas negou-se a conversar com a Folha, assim como o empresário Luiz Roberto Demarco.’
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‘Brasil Telecom afirma que alvo são italianos’, copyright Folha de S. Paulo, 21/07/04
‘A presidente da Brasil Telecom, Carla Cico, confirmou à Folha ter contratado o braço europeu da Kroll para investigar a Telecom Italia. No entanto, Cico negou ‘com veemência’ que alguns dos alvos da investigação sejam autoridades do governo brasileiro.
‘O escopo das investigações é apenas corporativo’, disse Cico em entrevista telefônica. ‘Não tem nada a ver com governo.’ Mas fez uma ressalva: ‘Eventualmente, quando você entra numa investigação, não sabe quais são as ligações que você acha.’
A direção da Kroll, por sua vez, lançou dúvidas sobre a autenticidade de todo o material apreendido pela Polícia Federal. Essa, acusam, seria uma estratégia da Telecom Italia para manipular o governo, abalando o comando da Brasil Telecom, num momento decisivo da disputa por seu controle acionário. ‘Não há inocentes aqui. Isso não é a história da Branca de Neve e os Sete Anões’, disse Frank Holder, presidente mundial de investigações da Kroll, acrescentando que a empresa atua dentro da lei.
‘Não fazemos, nem fizemos nada ilegal. A Telecom Italia, sim, comete atos questionáveis.’
Enquanto Holder admite que os atos públicos do presidente do Banco do Brasil, Cássio Casseb, possam ter sido monitorados, a diretoria da Kroll no Brasil nega a investigação de autoridades brasileiras. ‘Nunca nos envolvemos em questões controversas, como espionagem de governo. Não existe gravação feita por nós sobre nenhuma autoridade, sobre nenhum funcionário da Telecom Italia. Sobre ninguém, aqui ou fora do Brasil’, disse Eduardo Gomide, diretor-executivo do escritório brasileiro da Kroll.
Segundo Gomide, a atuação da Kroll se restringe ao cálculo do prejuízo da Brasil Telecom com a briga pelo comando da empresa.
Além disso, foram investigados os antecedentes de Luiz Roberto Demarco. Mas, frisa, tudo dentro da legislação brasileira e da lei americana que proíbe a corrupção de funcionários estrangeiros.
Também diretor da Kroll, Vander Giordano alega que o teor de e-mails, como os entre o ministro Luiz Gushiken e Demarco, só é obtido quando autorizado pela empresa contratante ou quando consta de processos judiciais.
A Kroll não explicou por que a operação foi batizada de ‘Projeto Tóquio’. Cico descarta que seja uma referência à descendência japonesa de Gushiken, embora encontrar dados sobre o ministro seja descrito nos papéis da empresa Kroll como tarefa de ‘máxima prioridade’.
‘Nem sabia que a origem dele [do ministro Gushiken] era japonesa’, disse Cico.
Entre os documentos em poder da Polícia Federal está a cópia de um e-mail que teria sido enviado por Cico à Charles Carr, chefe do escritório da Kroll na Itália.
Nessa mensagem, Cico solicita que se investigue a hipótese de a Telecom Italia ter feito pagamentos a políticos nos municípios de Ribeirão Preto e Santo André, administrados pelo PT.
A Folha enviou a cópia dessa mensagem a Cico. E obteve a seguinte resposta: ‘Não comento minha comunicação pessoal com a Kroll. Mas posso dizer que essa mensagem não é minha’.
Segundo Cico, a obtenção de documentos sigilosos da Kroll pela própria Telecom Italia revela que a Brasil Telecom não é a única empresa a recorrer a espionagem corporativa. ‘Não sei quais documentos vocês têm em mãos, nem sei se foram falsificados ou não. Mas, evidentemente, a Telecom Italia está usando o mesmo instrumento’, declarou.
Procurada, a direção da Telecom Italia não quis se manifestar sobre o assunto, alegando que já adotou as medidas cabíveis.’
Eliane Cantanhêde
‘Ilegal, sórdido e malfeito’, copyright Folha de S. Paulo, 23/07/04
‘Não sei se seria correto dizer que não se fazem mais espiões como antigamente, mas alguns dos contratados pela Kroll para investigar a Telecom Itália (como revelou Márcio Aith, ontem, na Folha) fizeram boas trapalhadas. Uma delas é quase uma comédia: foi quando três espiões, dois homens e uma mulher, seguiram pelas ruas do Rio o homem errado. Eles queriam o ex-presidente do BNDES Andrea Calabi, que trabalhava para empresas privadas nessa área de telefonia. Mas acabaram seguindo o então presidente do Banco Central, Armínio Fraga. As coincidências: os dois estavam em solenidades diferentes no Copacabana Palace e têm o mesmo tipo físico. Uma descrição apressada de ‘um sujeito baixo, meio gordinho, meio careca e de barba’ cabe como uma luva tanto em Calabi quanto em Armínio. Os espiões deram de cara com Armínio cercado de gente e de microfones e não tiveram dúvida. Um sujeito meio careca por um sujeito meio careca deu no mesmo. Quem desconfiou da moto seguindo o carro foi o motorista de Armínio. Avisou a sede do BC, que acionou a polícia. O cara foi em cana e contou que ele e seus parceiros estavam espionando… a vítima errada. Soube-se assim que, na guerra da telefonia, havia algo no ar além de aviões de carreira. Mas não se falou mais nisso. Até que Aith enfim conta a verdadeira história: quem acabou caindo na rede da Kroll foram funcionários do primeiro escalão do atual governo federal. Até e-mails do ministro Luiz Gushiken e contas do presidente do BB, Cássio Casseb, entraram na roda. Para Gushiken, tudo isso é ‘ilegal e sórdido’. Tem toda a razão. Agora é saber o que fazer para não empurrar a ilegalidade e a sordidez para debaixo do tapete.’