Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Deonísio da Silva

‘O prazo fixado para requisição de compra maciça de material de consumo era improrrogável. Os quesitos exigidos na exposição das justificativas deveriam ser redigidos pelo autor da solicitação.

Havia mais. O total do dispêndio para a compra, sem licitação, do piche utilizado para recapear a calçada em frente à praça, onde estava o mais lindo chafariz do município, deveria ser analisado, item por item, até o dia seguinte, nem que a vaca tossisse.

A funcionária tropeçava nos empecilhos ortográficos. Foi quando recebeu por via eletrônica o aviso de que a universidade estava oferecendo um curso intitulado Português: Manual de primeiros socorros. Foi a primeira a inscrever-se.

Na aula inaugural, o professor, depois de explicar que algumas normas ortográficas poderiam ser justificadas pela etimologia, pela pressão dos usuários da norma culta e pelo costume, disse uma coisa que a deixou estupefata: ‘De outras, porém, ninguém sabe as razões, nem mesmo aqueles que as redigiram’.

Muito prática, perguntou o que deveria fazer quando tropeçasse na ortografia. O professor fez-lhe duas recomendações: que instalasse em seu computador versão eletrônica de um bom dicionário de Português e lesse cada vez mais. E ela deveria ler o quê? Livros, preferencialmente. Que compusesse sua dieta de leitura com obras de autores clássicos – como Antônio Vieira, Manuel Bernardes, Eça de Queiroz e Machado de Assis – e com autores modernos e contemporâneos – como Graciliano Ramos, Erico Verissimo e Rubem Fonseca.

‘E mulher, mulher não entra?’, perguntou uma aluna. ‘Não me venham com cotas’, disse o professor, ‘por mais que façamos todas as concessões exigidas, o saber será sempre elitista no mundo inteiro, em todos os tempos’. E acrescentou: ‘Sempre foi assim: quando o povo chega a um patamar dos saberes disponíveis, é evidente que os pesquisadores estarão em outro, muito mais avançado. Na universidade, só é bobo quem quer; em outras instâncias, às vezes é compulsório, em vista de inevitáveis contaminações, como, aliás, ocorre agora no ensino fundamental. Lá os professores são obrigados a aprovar todos os alunos, os que sabem e os que não sabem’. Fez uma careta para concluir: ‘O Brasil despenca nas listas de avaliação do mundo inteiro. Nossa juventude só ouve e vê, não lê nem escreve e ainda quer aprender. Assim não dá’.

‘O Brasil tem grandes escritoras’, relembrou a moça. ‘E quais delas você já leu?’, perguntou o professor. ‘Assim, de chofre, não lembro o nome de nenhuma.’ ‘Eu lembro. Mas leia os livros que elas escreveram não porque sejam mulheres, mas porque elas escrevem bem. É o caso de Cecília Meireles, Rachel de Queiroz, Patrícia Galvão, Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Nélida Piñon, entre outras tantas…’

O professor fez ainda outra recomendação: ‘Querem escrever melhor? Leiam jornais, revistas e comprem uma gramática para consultar sempre que necessário’. A seguir, disse que algumas dicas heterodoxas podem ser úteis. Assim, se o piche é passado no chão, só pode ser com ‘ch’. E que o chafariz, jorrando na praça, semelha à chuva, com a diferença de que, em vez de cair, sobe. Chafariz, chuva, ambos com ‘ch’, como o ‘chuchu’ que precisa de chuva para crescer, ainda que o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa aceite a forma ‘xuxu’, por pressão dos costumes e dos feirantes.

Foi quando a menina das cotas informou, a propósito de exercício que requeria ‘x’, ‘z’ ou ‘s’, que não encontrara ‘coxinha’ nos dicionários, mas que naturalmente era com ‘x’, pois deriva de ‘coxa’.

Coluna inspirada em oficinas que Reinaldo Pimenta e o signatário estão ministrando no Instituto da Palavra, da Universidade Estácio de Sá.’



JORNAL DA IMPRENÇA
Moacir Japiassu

‘Não tem dono mesmo!’, copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 22/07/2004

‘Nosso velho e considerado amigo Caio Mourão, o maior joalheiro do Brasil, companheiro de puritanos festins no Rio de Janeiro dos anos 60, envia de Iguaba Grande, onde vive e trabalha, esta pavorosa mensagem:‘Agora é oficial!!! C… de bêbado não tem dono mesmo!!!!’.

E para comprovar o tamanho da terrificância, Caio anexou este excerto colhido em O Globo:

BRASÍLIA. A sentença é insólita e inédita. O Tribunal de Justiça de Goiás decidiu que o homem que, por vontade própria, participar de uma sessão de sexo grupal e, em decorrência disso, for alvo de sexo passivo, não pode declarar-se vítima de crime de atentado violento ao pudor. O acórdão do TJ de Goiás, publicado no dia 6, é um puxão de orelhas no autor da ação que reclamava da conduta de um amigo.

Luziano Costa da Silva acusou o amigo José Roberto de Oliveira de ter praticado contra ele ‘ato libidinoso diverso da conjunção carnal’. Silva alegou que, como estava bêbado, não pôde se defender. Por meio do Ministério Público, recorreu à Justiça. Mas o tribunal concluiu que não há crime, já que a suposta vítima teria concordado em fazer sexo grupal.

Justamente atemorizado, Janistraquis determinou: ‘Considerado, se está oficializado que c… de bêbado não tem dono, acho melhor a gente beber se-pa-ra-da-men-te!’

Concordei na mesma hora. E, a respeito do episódio em questão, convém ressaltar que, antes, só conheciam o lamentável acontecimento os participantes da suruba; agora, depois da publicação da notícia, o mundo inteiro já sabe que comeram Luziano.

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Passaralho

Obra-prima do humor negro saiu na capa do UOL. Nesta terça-feira, 20/7, dia em que o mercado jornalístico ficou sabendo do tamanho do passaralho, saiu esta discreta chamada:

Folha Classificados – Você quer um novo emprego?

Janistraquis recordou um ‘contrabando’ que os leitores encontraram no falecido Correio da Manhã, em meados dos anos 60, quando o jornal atrasava os pagamentos por causa do boicote publicitário ordenado pelos militares. No meio de um texto, o redator, em conluio com o revisor e o linotipista, meteu lá: ‘Niomar, pague-nos o 13o salário’. (O recado era dirigido a Niomar Muniz Sodré Bittencourt, dona do jornal. Teria sido pago o 13o atrasado? O colunista não se lembra mais…)

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Ilustre companhia

Botafogo, entre o céu e o inferno é o título do livro que o genial Sérgio Augusto lançará no campo neutro da livraria Cultura, de São Paulo (Av. Paulista, 2073, Conjunto Nacional), no dia 3 de agosto, às 19 horas . Infelizmente, este colunista e vascaíno está impedido de comparecer, digamos, de corpo presente, mas o fará em espírito, para servir salgadinhos e vinho branco a alguns personagens do livro, como Heleno de Freitas, Didi e Garrincha. E o Botafogo, que já conheceu o céu com esses três e tantos mais, está precisando desta força, no instante em que novamente põe os pés no inferno da Segundona, agora na ilustre companhia do Mengão.

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Batata e Aleluia

Diretor da sucursal desta coluna no Ceará e arredores, Celsinho Neto acabou de ler o jornal e, sem nem mesmo sair da rede armada na Praça do Ferreira, escreveu e despachou as linhas abaixo:

‘Depois da palhaçada feita no campeonato cearense de futebol, onde não houve final e, conseqüentemente, deixou de existir o campeão do corrente ano, eis que o glorioso Ceará Sporting preocupa-se agora com a Segundona e o nosso estimado Diário do Nordeste sapecou este título:

Batata chega e Aleluia deve acertar.

Se bem entendi, aos que serão rebaixados para a Terceirona este ano, as batatas; caso o alvinegro esteja fora desse inferno, aleluia!’

Janistraquis recordou um comentário já antigo feito pelo Apolinho (Washington Rodrigues) sobre a derrota iminente de um time carioca cujo nome esquecemos: ‘Agora, é calça de veludo ou bunda de fora; e do jeito que vai, a coisa está mais pra bunda de fora…’

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Cinismo revoltante

Saiu aqui mesmo, na coluna da semana passada, sob o título Denuncismo:

‘(…)Janistraquis leu, releu e quedou-se deveras impressionado: ‘É extraordinário, considerado, extraordinário! Antes da ascenção de Lula, 99,9% das tais ‘informações precipitadas’ a respeito de qualquer pessoa tinham como fonte justamente os políticos e militantes do PT…

Ascenção de Lula; ASCENSÃO, com cê-cedilha. O considerado leitor Ubirajara Loureiro foi logo pegando no pé do colunista, este respondeu na área de comentários e avisou que pediria correção e assim foi feito. Depois, chamei Janistraquis às falas e escutei esta resposta: ‘Considerado, mantive ascenção porque é um misto de ascensão e assunção. Conheço a inteligência dos leitores do Comunique-se e tinha certeza de que entenderiam a ‘sutileza’, pois ascenção significa que Lula subiu, sim, de corpo e alma, porém foi ajudado pelos anjos, que nem a Mãe de Deus…’

Devo reconhecer que em matéria de cinismo não existe, em Parlamento algum, quem chegue aos pés do meu secretário.

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Adeus, clareza!

Diretor da sucursal desta coluna no Planalto, de cujo varandão vê-se o presidente Lula aumentando a auto-estima dos brasileiros, o mestre Roldão Simas Filho relia o Correio Braziliense de 25 junho, página 6, quando foi agredido por um texto enterrado logo abaixo do título Adeus, Brizola:

‘O governador Leonel Brizola, morto na segunda-feira no Rio de Janeiro, foi enterrado ontem em São Borja (RS), cidade tida como o ‘berço do trabalhismo’. Segundo cálculos do comando da Polícia Militar, 25 mil pessoas participaram da homenagem a Brizola no município, que tem 64.820 habitantes e fica na fronteira com a Argentina. O corpo de Brizola foi enterrado às 16h no jazigo onde já estão os presidentes Getúlio Vargas e João Goulart e sua mulher Neusa Brizola.’

Roldão fez o seguinte comentário:

‘A redação confusa dá a entender que dona Neuza Brizola teria sido a mulher de João Goulart. Mas o pior é que parece que a reportagem não foi até o cemitério de São Borja ver o enterro, pois o texto acabou colocando todos esses mortos no mesmo jazigo, o que não é verdade.

Os jazigos costumam pertencer a famílias. Em São Borja essa regra é respeitada. O jazigo nº 1 é da família Vargas. É lá que jaz Getúlio, junto com seus parentes. O jazigo nº 3 é da família Goulart. É ali que estão os restos mortais de João Goulart e de sua irmã Neuza Brizola ao qual foi se juntar o corpo de Leonel Brizola, marido de dona Neusa. Entre os dois jazigos fica o da família Fortunato, onde está o corpo de Gregório, tomando conta dos dois ex-presidentes mesmo depois de morto.’

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Nota dez

O melhor texto da semana está no site No Mínimo e foi escrito por nosso considerado Ricardo Setti:

Viegas ainda deve uma explicação ao país

‘(…)Cerca de 50 brasileiros sumiram no Araguaia. Suas ossadas evaporaram-se. Houve denúncias e testemunhos de tortura, assassinatos a sangue frio de guerrilheiros que se renderam, vilipêndio de cadáveres e outros crimes por parte de integrantes das Forças Armadas na época. Um contingente de 3 mil militares, fortemente armados, com amplo apoio logístico e o suporte de aviões e helicópteros, chegou a ser mobilizado. Gastou-se grosso dinheiro público. A coisa toda durou quase quatro anos – e agora vem um ministro dizer, sem se dar ao trabalho de fornecer detalhes elementares, que o registro de uma operação desse vulto virou fumaça?(…)’

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Errei, sim!

‘CONFUNDINDO – Legenda de foto do Diário Catarinense: ‘Casanova retrata a vida do maior amante do século 18’. Acima, ao redor do piano de Dooley Wilson, encontravam-se Humphrey Bogart e Ingrid Bergman. Quer dizer: o redator, que não se pode chamar de cinéfilo, confundiou Casanova com Casablanca. Janistraquis comentou: ‘Isso, considerado, apesar do piano de cauda e do jaquetão de Bogart, os quais, sem a menor dúvida, inexistiam no tempo de Casanova…’. Esta jóia da Imprensa moderna pertence à coleção do leitor Arden Zylbersztajn.’ (março de 1995)’



LITERATURA & JORNALISMO
Lêdo Ivo

‘Otto Lara Resende, um dos quatro mineiros’, copyright Jornal do Brasil, 21/07/04

‘As portas do jornalismo e da vida literária escancararam-se a fim de que Otto Lara Resende se tornasse um dos nossos. Para ele, abriram-se muitas outras portas: a das redações dos grandes jornais e revistas, como o Jornal do Brasil, O Globo, Última Hora, Folha de São Paulo e Manchete; as portas dos palácios presidenciais, das relações prestigiosas, dos salões sociais, do Serviço Público qualificado, dos gabinetes ministeriais, das adições culturais nas embaixadas brasileiras; dos mais conceituados bares na boemia do Leblon.

E após treze anos de permanência entre nós na Academia transpôs uma última porta: a do nosso Mausoléu no Cemitério de São João Baptista, que espera a nós, acadêmicos, com a paciência e a tolerância de todos os mausoléus.

Este texto me devolve à década de 40 do século passado, quando o Rio de Janeiro, que então vivia uma época de singular efervescência literária e artística, foi invadida por quatro jovens mineiros inquietos, envolventes e ambiciosos: Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Hélio Pellegrino e Otto Lara Resende.

Hoje, podemos ter uma idéia bem nítida da trajetória de cada um desses notáveis e impetuosos invasores que, na diversidade dos seus temperamentos, irradiavam talento, inteligência e simpatia.

Os dois primeiros, Sabino e Paulo Mendes Campos, destacaram-se na crônica, esse gênero anfíbio que, pertencendo simultaneamente ao jornalismo e à literatura, assegura a notoriedade e garante o esquecimento.

A psicanálise desviou Hélio Pellegrino do mundo das letras e Otto Lara Resende se tornou o Otto. O dissílabo do seu nome dizia tudo, resumindo o jornalista extraordinariamente competente que, em seus passos cotidianos, era sempre seguido, num borboletear triunfante, por um enxame de admiradores boquiabertos e de companheiros deslumbrados, ante aquele cronista irônico, um causeur incomparável e o phraseur que, com o sal de algumas palavras, se transformava num respeitado e temido La Rochefoucauld tropical.

Otto era uma aura, um halo e um resplendor. A reverência com que seu nome era mencionado num coquetel ou numa mesa de bar, na redação da Manchete ou na Câmara dos Deputados, numa sala ministerial ou num táxi, remetia a uma entidade rara e misteriosa ou ao patamar de um mito.

Quando ele entrava numa redação de jornal, os repórteres surpresos e aturdidos exclamavam: ‘É o Otto!’ E os estagiários mantinham um silêncio respeitoso diante daquela formidável aparição.

Mas, quem era ele? Hoje, transcorrido mais de meio século, e varridas tantas esperanças e ilusões, a pergunta não se apagou nem se esvaeceu. Um livro já foi escrito sobre a amizade que unia os quatro mineiros e suas existências esplendorosas. Em crônicas, livros de memórias e recente epistolografia, o zeloso Fernando Sabino, guardador emérito de tantos documentos juvenis, procura responder às perguntas e indagações que também o envolvem.

Numa entrevista de 1979, que foi o ano do seu ingresso na nossa Academia, concedida ao Cartas na mesa, de Fernando Sabino, declarou Otto Lara Resende: ‘No que me diz respeito, pessoalmente, sou hoje uma pessoa insatisfeita de ser quem sou. Não gostaria de conviver comigo. Parodiando Fernando Sabino, diria que ‘não sou meu tipo’. O Otto dos vinte anos é uma figura que adoro. Hoje, tantos anos depois, não acredito mais que seja importante para mim exprimir-me literariamente’.

Quer dizer: dentro do Otto, que com frases felizes deslumbrava contínuos e ministros, havia outro Otto, que foi o autor de O lado humano e de O braço direito, o Otto secreto, que se debruçava sobre a miséria da condição humana e produzia pequenas e deliciosas histórias, nas quais transparecem, ostensivas, as influências de Georges Bernanos, Machado de Assis, Lúcio Cardoso e Cornélio Penna.

Uma porta ficou fechada para ele. E daí o desconforto e a nostalgia de si mesmo, o sonho dos vinte anos que a idade madura deixou para trás. Foi a porta da realização literária plena e continuada, da solidão criadora e do sonho juvenil transformado em obra pertinaz.

Esse Otto que o vento dispersou é o Otto que está no meu coração.’