Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Lampião, bandido de marketing

Nos últimos 70 anos a imagem de Lampião tem sofrido transformações maiores que as suas proezas. Antes de ser vítima do covarde massacre de Angicos, em 1938, na língua da imprensa ele oscilou entre o Terror do Nordeste e o Rei do Cangaço. O que não queria dizer, já então, mesmo quando era o ‘rei’, uma imagem positiva, porque o seu reinado era o cangaço, a vida marginal dos cangaceiros, os bandidos do sertão nordestino. Depois, em anos de ascensão da democracia no Brasil, a sua imagem viajou do ponto de injustiçado, do rebelde sem partido – de um aliado, portanto – até o ponto do marginal que serviu ao poder de atraso dos ‘coronéis’, os senhores feudais do Nordeste.

Em 1978, com a cara de couro curtido de macho, serviu de contraponto e ironia para um jornal dirigido ao público homossexual, O Lampião da Esquina. Nos últimos tempos, em lugar do homem bárbaro e brutal, ganhou refinamento e sensibilidade em novas interpretações, pois chegou a beber uísque White Horse e a se perfumar com exagero, e sabe-se lá como a partir disso ele tenha ficado menos bárbaro, mais sensível… Mas nada talvez se compare a sua última releitura, ou rara e original interpretação. Com a palavra, uma reportagem ‘A estética do cangaço’, da Folha de S.Paulo de sábado (2/9).

A estética do cangaço

‘Historiadora vê nas fotos de cangaceiros feitas por Benjamin Abrahão e outros a gênese da manipulação da mídia por criminosos…’ – isto por si só nos conduziria de imediato a um intervalo indispensável para respirar, esfregar os olhos e suspirar: foi isto mesmo o que li? Foi. Manipulação da mídia por criminosos, sim, não, é claro, isto não se refere aos donos da mídia no Brasil de 2006. Mas não devemos realizar o paradoxo do preconceituoso por experiência. Continuemos.

‘A literatura de cordel e o cinema novo heroificaram o cangaço e seus líderes mais notórios, Lampião e Corisco. Bandidos sanguinários, eles souberam usar, antes das letras e do celulóide, uma outra mídia para se autopromover e intimidar. Nos anos 30, Lampião deixou que o mascate libanês Benjamin Abrahão fotografasse a si e a seu bando, uma história já contada pelos cineastas Paulo Caldas e Lírio Ferreira no longa ‘Baile Perfumado’’.

Expressão bárbara posta de lado, porque um esforço de leitura já nos fez entender que ‘antes das letras e do celulóide’ significa ‘antes da glorificação, dos bandidos sanguinários, na literatura de cordel – as letras – e no cinema novo – o celulóide’, assim como também será bom olvidar os magníficos bandidos que usam as letras e o celulóide post mortem, e, de passagem, nada lembrar da altura de Corisco na frase, um dos líderes mais notórios do cangaço, posto que alcançou com a devida permissão de Antonio Silvino, em suma, coisas menores como estas postas à parte, é de se notar a impropriedade que faz da permissão para ser fotografado e filmado uma autopromoção calculada e pensada. Mas não se deve usar de pós-conceito, ainda que depois destas linhas. Adiante.

‘Aqueles registros de corpos paramentados para ação ou de cabeças cortadas e exibidas como numa feira de horrores reaparecem agora reunidos no livro ‘Cangaceiros’, que a editora Terceiro Nome acaba de lançar. As fotos foram coletadas pela historiadora da arte Élise Jasmin, 39, francesa, para uma tese de doutorado na Sorbonne, em Paris, sobre a construção do mito Lampião.

Além dos retratos de Abrahão, o livro traz registros de outros fotógrafos, recolhidos em São Paulo, Rio, Recife, Fortaleza, Aracaju e Maceió, imagens na fronteira entre o fotojornalismo e a propaganda’.

Observem e mirem bem, já que o texto remete à fotografia. Notem que pouco importa ao senhor repórter a contradição, que dizemos!, a oposição, que escrevemos!, queremos dizer, a franca e aberta guerra e aberração entre o marketing de imagem realizada por bandidos. Nunca esquecer o adjetivo, sanguinários, e a foto de suas próprias cabeças cortadas, talvez em um máximo esforço do tudo pela imagem. Pois é tão simples o escrever, não é? Corpos paramentados para a ação e cabeças cortadas cabem em uma só frase, em uma só linha.

Poder-se ia dizer, a favor do texto: menos dureza, por favor, ponha-se no lugar do repórter, porque o repórter, esse pobre homem explorado pelo ritmo industrial, pela política miserável de salário dos criminosos donos da imprensa, e, ao ouvir tal consideração, tamanha é a sua força, como resposta nada mais deveria ser escrito. Pero essa desculpa não deve obscurecer o crime.

Se permitem uma comparação, digamos de outra maneira. Que os pilotos de avião sejam submetidos a um ritmo insano de trabalho é uma injustiça muito grande, mas que essa injustiça nos leve também o nosso corpo, quando cai um avião, isto é mais que uma injustiça, é um clamoroso crime. Há que denunciar e punir, com a mais absoluta urgência. Por isso mirem como cai o avião.

A se acreditar no repórter

O repórter, esse pobre homem explorado, está submetido à ditadura do tempo, que sempre lhe falta, à ditadura do editor, que nunca lhe falta, à ditadura do salário, que muito lhe falta, à ditadura da realidade, que sempre o mata. Sem piedade. Daí que nem sempre podemos acreditar no repórter. Mesmo quando ele se levanta da cadeira e vai lá fora, ao aeroporto, cobrir a chegada do avião, que cai, é sensato não acreditar no número de vítimas que ele anuncia. Por vezes ele confunde o número do vôo, o nome da empresa, e, não pensem que é broma, por vezes não se pode nem mesmo ter certeza se o avião caiu. O avião, quem sabe, pode nem sequer ter se erguido do solo.

Pero há uma coisa que se deve confiar a um repórter. Melhor dizendo, há uma coisa que se deve confiar de um repórter. São as afirmações do entrevistado. Pois foi outro que lhe declarou as linhas, não é mesmo? Se ele não ‘edita’ o que lhe dizem em alto e bom som, deve-se acreditar nas palavras que ele copia sem tirar nem pôr. Bem sabemos, é claro, que na imprensa brasileira dos últimos tempos não se deve confiar nem mesmo em afirmações entre aspas. Mas até mesmo no método arrasador de Descartes alguma coisa se salva. Que sejam os símbolos ‘ ‘ a prova última de que pensamos. Logo …

Existe crédito nas linhas a seguir. Até então, pelo que se escrevia do livro Cangaceiros, da historiadora Élise Jasmin, poderia existir alguma dúvida sobre o acerto do texto na Folha. Dizíamo-nos, não, isto não é possível, ocorre aqui alguma preciosa imprecisão. Impossível que seja assim. No entanto, a se acreditar na cópia das declarações publicadas pelo repórter, mirem.

‘Estas imagens dos bandidos no auge de sua glória e poder, ao lado das fotos com o jogo cênico de suas mortes, fazem parte desta espetacularização da violência que encontramos nas sociedades modernas. É um fenômeno que vemos se desenvolver especialmente nas grandes cidades atingidas pelo crime organizado. Lampião e seu grupo foram os primeiros a se apropriar deste modo de comunicação, a instrumentalizá-lo, para desafiar seus adversários, impor seu poder e mostrar que seu sistema de valores, a vida que levavam, tinha um sentido para eles.’ (Declaração da historiadora.)

Sabemos todos que alguns intelectuais franceses têm um extraordinário poder de retórica, a ponto de escreverem um volume inteiro sobre o Nada, com o Ser por acréscimo, mas aqui vai um pouco além o abuso do verbo, do substantivo, do sujeito, do agente. A chamada espetacularização, neologismo em português, mas que bem entendemos como uma mistura de especulação com espetacular, esse fazer da violência um espetáculo não foi uma criação dos bandidos sertanejos em 1936. Eles não são os agentes do espetáculo. As lentes de Benjamin Abrahão, que os filmou, é que fazem o espetacular. Em um filme, isto é básico, o ator não é bem o agente. Quem dirige é quem age.

Nas imagens os cangaceiros se mostram, se exibem, mas a direção, o agente, está por trás do que eles fazem e encenam. A pedido, deve-se dizer. Diríamos até, a existência do espetáculo havia sido feita antes por toda a imprensa brasileira. Lampião jamais se declarou ou se julgou o rei do cangaço, por exemplo. Isto foi uma criação da imprensa e do cinema, nos estúdios Vera Cruz. Acompanhem aqui uma entrevista de Lampião, que pode ser lida, na íntegra, no sítio da sua neta Vera Ferreira, neste endereço.

‘– Desejamos um autógrafo seu, Lampião.

– Pois não.

Sentado próximo de uma mesa, o bandido pegou da pena e estacou, embaraçado.

– Que qui escrevo?

– Eu vou ditar.

E Lampião escreveu com mãos firmes, caligrafia regular.

‘Juazeiro, 6 de março de 1926
Para… e o Coronel…
Lembrança de EU.
Virgulino Ferreira da Silva.
Vulgo Lampião’.

Os outros facínoras observavam-nos, com um misto de simpatia e desconfiança. Ao lado, como um cão de fila, velava o homem de maior confiança de Lampião, Sabino Gomes, seu lugar-tenente, mal-encarado.

– É verdade, rapazes! Vocês vão ter os nomes publicados nos jornais em letras redondas…’

Aqui nota-se o homem que se mostra feliz porque vai aparecer em letras redondas. Ele e todo o bando. Na ocasião dessa entrevista, o bandido sanguinário se encontrava no Juazeiro do Norte, no Ceará, aonde fora a convite do Padre Cícero, para integrar o Batalhão Patriótico, nome pomposo da legalidade para combater a Coluna Prestes. Fizeram-lhe uma foto nesse dia. Dela, assim declara a historiadora:

‘É aí que o personagem aparece pela primeira vez na imprensa, que vemos seu rosto. Parece uma verdadeira foto de estúdio que se apropriou dos modelos de figuração cinematográficos da época. Lembra Rodolfo Valentino’.

Quem utilizava quem? Quem fazia espetáculo de quem?

Cogitamos, logo somos, levados a concluir: em francês o absurdo estúpido da retórica soa mais feliz.

Sous le règne de Lampião, les cangaceiros ont été les personnages les plus recherchés de tout le Brésil et pourtant ils se sont donnés à voir en permanence, manipulant habilement les médias, défiant le pouvoir et construisant leur légende. Ils sont les premiers bandits à avoir théâtralisé leur vie, utilisé le moyen de communication le plus moderne de l’époque : la photographie.

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Jornalista e escritor