A mídia tem dado grande repercussão ao recém-lançado livro de Eduardo Scolese e Leonencio Nossa, Viagens com o Presidente – Dois repórteres no encalço de Lula do Planalto ao exterior, da Editora Record. Por serem setoristas no Palácio do Planalto e acompanharem as viagens presidenciais, os jornalistas da Folha de S.Paulo e do Estado de S.Paulo estão próximos do presidente da República em situações onde ele sente sua privacidade protegida e, portanto, são capazes de revelar a face mais humana de Luiz Inácio Lula da Silva, que brinca ou se irrita com os auxiliares mais próximos, toma cerveja ou uísque e se refere a outros chefes de Estado ou políticos usando palavrões. Revela-se um ser humano com qualidades e defeitos como qualquer um de nós.
Há, no entanto, uma pequena passagem no livro, às páginas 214 e 215, que ainda não mereceu a atenção dos colegas de Scolese e Nossa na grande mídia. Trata-se da descrição de um encontro ocorrido no auge da crise política, em 20 de julho de 2005, entre os dirigentes do PFL Jorge Bornhausen e José Agripino Maia e o principal executivo das Organizações Globo, João Roberto Marinho.
O livro narra que, enquanto o presidente estava em Recife para a aula inaugural do Programa Nacional de Inclusão de Jovens, ‘os líderes pefelistas e um dos donos da mais poderosa rede de TV da América Latina discutem e projetam os próximos passos do país’ (sic).
Segue-se então uma descrição pormenorizada da conversa entre os líderes da oposição e o dirigente da Globo. Primeiro, João Roberto Marinho, referindo-se à crise política, afirma que ‘não vamos livrar a pele de ninguém. Vamos fazer o registro factual e fidedigno de tudo, absolutamente tudo o que for descoberto’. Segundo, o executivo da Globo revela seu desencanto com o presidente Lula relatando que, com o desenvolvimento da crise, entre os seus amigos mais próximos, ‘por incrível que pareça, até ele [um simpatizante do PT] está decepcionado com o que está acontecendo no país’. Terceiro, os interlocutores passam a conversar sobre a sucessão presidencial. Cito textualmente:
‘O dirigente da poderosa TV Globo afirma aos líderes do PFL que um segundo mandato de Lula poderá levar o país a uma situação caótica. E admite que prefere Geraldo Alckmim a José Serra na cabeça de chapa da oposição’.
Duas horas depois de iniciado, termina o encontro e os líderes da oposição retornam a Brasília.
Cobertura política
Mais de um ano já se passou desde o encontro. Geraldo Alckmim – e não José Serra – se tornou o principal candidato de oposição à presidência da República, como preferia João Roberto Marinho. E, em princípio, não haveria nada de especial – ademais do reconhecimento implícito da mídia como ator político determinante – no encontro entre líderes da oposição política e o principal dirigente da maior rede de televisão do país.
O problema começa quando se considera, em primeiro lugar, o envolvimento histórico das Organizações Globo com o processo político e, em particular, com as disputas eleitorais no país, nos últimos anos. São numerosas as situações – desde as eleições para governador no Rio de Janeiro em 1982 até as eleições de Fernando Collor, em 1989 – em que esse envolvimento aconteceu e, tudo indica, teve conseqüências no resultado final.
E, em segundo lugar, resta saber até que ponto a posição pessoal do principal dirigente da Globo se confunde com a opinião da empresa – e se isso está interferindo na cobertura política que os veículos sob o seu comando devem fazer da disputa eleitoral, com isenção e sem partidarismo.
Pouca atenção
Em outra ocasião já tratamos neste Observatório da ‘igualdade de tempo’ prometida na cobertura dos candidatos pela Rede Globo (ver ‘Cobertura das Eleições: o significado de `tempos rigorosamente iguais´‘). Por outro lado, os primeiros resultados do acompanhamento que o Observatório Brasileiro de Mídia vem realizando, revelam, a exemplo de eleições anteriores, um flagrante desequilíbrio na cobertura da grande mídia a favor do principal candidato de oposição.
Será que as revelações do livro de Scolese e Nossa, além de nos escancarar a intimidade do presidente da República, nos ajudariam a compreender o que de fato acontece nos bastidores da cobertura política das eleições presidenciais?
Pena que a atenção dos nossos colegas jornalistas ainda não tenha se voltado para a questão.
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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor, entre outros, de Mídia: crise política e poder no Brasil (Editora Fundação Perseu Abramo, 2006)