Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um escritor que redefiniu uma época

Era o final dos anos 70, quase início dos anos 80. Em correspondência a um amigo, Caio Fernando Abreu pergunta, para logo em seguida lançar o desafio: quem está fazendo literatura pop hoje no Brasil? Ninguém? Então façamos nós. E Caio fez.

Seria simplista demais dizer que o escritor gaúcho Caio Fernando Abreu limitou-se a ser um escritor pop no sentido menor da palavra, se é que ser pop signifique ser menor. A escritora Ligia Fagundes Telles definiu-o como uma espécie de “biógrafo das emoções”. E se esse termo for considerado num sentido mais amplo, tanto no terreno individualizado do leitor, como no aspecto do compartilhamento de experiências geracionais, não há definição melhor.

Morto no dia 25 de fevereiro de 2006, mesmo ano em que também morreu Renato Russo, líder da Legião Urbana, Caio redefiniu uma época na literatura brasileira. O interesse acadêmico cada vez maior sobre o legado de sua escrita e a procura crescente pelo trabalho dele vinda de jovens que sequer eram nascidos quando Caio lançou obras já consideradas clássicas, como Morangos Mofados, Os Dragões não conhecem o paraíso e Onde Andará Dulce Veiga, só realçam a importância de um autor que fugiu à tentação de ser um escritor da moda para enveredar numa literatura cujo estilo se tornou único e, portanto, difícil de ser copiado.

Mochileiro e dramaturgo censurado

Lendo, no entanto, os primeiros livros lançados, é difícil imaginar que ele chegaria a esse patamar. Pode-se dizer que a obra de Caio divide-se em quatro partes. Na primeira, final dos anos 60 e início dos anos 70, há um escritor cheio de ideias e angústias, mas carente de um estilo próprio. Inventário do Irremediável, de 1968 – ano tão simbólico –, e o romance Limite Branco, de 1970, são rascunhos de possibilidades, ainda entranhadas numa literatura por demais reverente a influências como a de Clarice Lispector, a mais patente. Caio diria que depois de um tempo recusou-se a ler Clarice para não mais ser influenciado. Seus dois primeiros livros são o equivalente ao que foi Perto do Coração Selvagem para a mais misteriosa de nossas autoras.

O miolo da década de 70 é a segunda fase da escrita de Caio. Místico e hippie, embrenhou-se na experimentação total do corpo como laboratório, seja para o sexo, como para as drogas e a religião, assim como na própria literatura latino-americana, que vivia o auge do realismo fantástico. Essa miscelânea de influências externas, tão ao feitio do clichê que se referenciam os anos 70, misturada ao cenário opressor da ditadura militar, resultou em livros experimentais, um tanto confusos, um tanto enigmáticos e em busca de uma linguagem pessoal, mas que traduzisse sentimentos comuns a uma geração. O resultado é desigual, mas a busca não deixa de ser intrigante. Pedras de Calcutá e O Ovo Apunhalado, dois livros de contos, simbolizam o período.

Entre o chamado “desbunde” da contracultura e os horrores da censura e da repressão, os anos 60 e 70 passaram e deixaram marcas profundas em seus protagonistas. Caio foi um deles. O jornalista que fez parte da primeira equipe de redação de Veja, o jovem autor premiado, o mochileiro que foi lavar pratos na Europa e o dramaturgo censurado, uniram os fragmentos de um quebra-cabeça geracional multifacetado e se tornaram, então, apenas um, o Caio Autor, com ‘A’ maiúsculo mesmo. Era o início dos anos 80 e o auge da criatividade literária de Caio Fernando Abreu.

A aventura da descoberta

Essa pode ser considerada a terceira fase dele. A que vai do melhor livro de contos da década, Morangos Mofados, de 1982, ao romance Onde Andará Dulce Veiga, de 1990. Dois livros que já assumiram condições de clássicos recentes da literatura brasileira. Entre eles, há ainda Triângulo das Águas e Os Dragões Não Conhecem o Paraíso. Esses quatro livros compõem um retrato fiel e exato do que foi a década de 1980. A urbanidade caótica e solitária das metrópoles, a realidade crua da Aids, a perda da esperança em grandes revoluções, a busca por pequenos nichos de carinho e amizade, a fragmentação de informações, a troca da natureza solar do movimento hippie pelos flashes néons e artificiais das noites urbanas, todo esse cenário caleidoscópico encontra em Caio seu melhor tradutor e cronista.

Caio escreveu peças teatrais, foi roteirista de cinema, tradutor de obras estrangeiras, editor de revistas, autor de livros infantis, cronista de jornais. Múltiplo e intenso. Colecionou amigos para todo o sempre e desafetos para a semana seguinte. Encerrou em si mesmo todo um inventário de experiências e influências. Profundo e superficial, culto e descartável, dotado de antíteses, foi um dos primeiros a dar sentido pleno à característica múltipla do chamado pós-modernismo. Exigia dos leitores uma cumplicidade cultural que poderia tornar impenetrável o universo da leitura de seus textos, sem a absorção dessas referências. E elas podiam trafegar da última canção de Tom Waits a um bolero cafona. Da literatura latina ao novo cinema alemão. Não era fácil. Em compensação, a aventura da descoberta se tornava deliciosa.

Linguagem única, estilo inconfundível

A última fase da literatura de Caio já é sob a égide total da descoberta da Aids em seu próprio corpo. Disposto a dar sentido à própria obra, resgata textos perdidos e esquecidos, inicia projetos não concluídos e ganha coletâneas. Algumas póstumas. Inserem-se aí Ovelhas Negras, Estranhos Estrangeirosm e Pequenas Epifanias. O primeiro reúne desde o primeiro conto escrito, como novelas, textos rejeitados e uns dois contos recentes e inéditos à época. O segundo tenta dar sentido ao sentimento de exílio interior que sempre acompanhou o escritor. O terceiro reúne textos de uma coluna semanal no jornal O Estado de S. Paulo, inclusive com as famosas “cartas para além do muro”, onde abre o jogo com os leitores a respeito da Aids que consumia seu organismo.

Depois de morto, Caio ganhou duas pequenas biografias, de Jeanne Calegari e Paula Dip, teve o melhor de sua obra dividida em períodos e uma reunião de suas correspondências publicadas. Nas universidades, passou a ser estudado com mais afinco por jovens acadêmicos, superando o ranço de mestres e doutores mais velhos – de cabeça. Por biografar emoções, mas principalmente por usar uma linguagem única e ter um estilo inconfundível, Caio sobreviveu ao próprio tempo. Longe de se tornar datado, transformou-se em eterno.

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[Ismael Machado é jornalista e professor, Belém, PA]