Uma das modalidades em que se desdobra o direito à informação consiste no direito dos cidadãos ao conhecimento de sua história e à construção da memória coletiva. Tal direito se encontra em risco no Brasil, dada a proliferação dessa espécie de censura privada que é a proibição das biografias não autorizadas.
Por conta da abertura textual dos artigos 20 e 21 do Código Civil e da interpretação extensiva que lhes vem sendo dada pelo Poder Judiciário, biografias de pessoas notórias têm sido proibidas, em nome da proteção de sua vida privada. Em outras palavras, caminhamos para nos tornarmos um país onde somente as biografias chapa-branca têm vez. Como lembra o historiador José Murilo de Carvalho, o epíteto de biografia autorizada confere à obra uma conotação de fraude, pois significa que o biógrafo reportou apenas o que passou pelo prévio crivo do biografado.
As personalidades públicas cuja trajetória pessoal, profissional, artística ou política tenha dimensão pública gozam de uma esfera de privacidade e intimidade naturalmente mais estreita. Sua história de vida passa a confundir-se com a história coletiva na medida de sua inserção em acontecimentos de interesse público. Daí que exigir a prévia autorização do biografado, em tais casos, importa em consagrar uma verdadeira censura privada à liberdade de expressão dos autores e ao direito à informação de todos nós.
Privacidade e intimidade
O efeito da exigência de anuência prévia dos biografados é devastador sobre o mercado editorial e audiovisual: escritórios de advocacia negociam preços absurdos pelas licenças, transformando informação em mercadoria. Do ponto de vista da construção da memória coletiva, o País se empobrece pelo desestímulo aos historiadores, dramaturgos e autores em geral representado por essa situação esdrúxula, isso sem falar nas distorções provocadas por uma história contada apenas pelos seus protagonistas.
Os leitores atentos já devem ter observado como as biografias oficiais selecionam os fatos considerados relevantes, dando ênfase aos momentos de glória e suprimindo ou amenizando as situações menos abonadoras. Assim como ninguém é bom juiz de si próprio, ninguém costuma ser um biógrafo isento de si mesmo.
Nada obstante, a ninguém é dado cogitar de impedir a publicação das biografias autorizadas. Por mais apologéticas que sejam, representam a versão do personagem central dos fatos, cuja liberdade de expressão deve ser protegida. Num mundo marcado pelo pluralismo de visões, o grave é condenar o leitor à ditadura da biografia única – aquela ditada pelo biografado. Como preconizava Stuart Mill há cerca de 150 anos, o remédio para as distorções eventuais no exercício da liberdade de expressão não é a censura, mas a garantia de mais liberdade, para que as vozes dissonantes possam apresentar sua versão alternativa dos fatos.
Assim deve ser com as biografias de pessoas públicas. O ordenamento jurídico deve assegurar a publicação e a veiculação tanto das obras autorizadas pelos biografados como das elaboradas à sua revelia – ou mesmo contra a sua vontade -, cabendo aos leitores e espectadores formar livremente as suas opiniões e convicções.
Há projetos de lei tramitando no Congresso Nacional visando a corrigir essa anomalia e acertar o passo do Brasil com o mundo civilizado. Não causa surpresa que os maiores opositores desses projetos tenham sido políticos de reputação duvidosa. Como regra, os opositores das biografias não autorizadas são aqueles que temem a sua própria biografia.
Mas a correção legislativa é apenas um dos caminhos possíveis para solucionar esse problema. Ainda que não haja alteração legislativa expressa, entendo que as biografias não autorizadas podem ser liberadas desde já. Para isso basta que se imprima ao Código Civil, em especial aos seus artigos 20 e 21, uma interpretação conforme à Constituição federal que reconheça a primazia das liberdades de manifestação do pensamento, de criação intelectual e artística e do direito à informação sobre a restrita esfera de privacidade e intimidade de pessoas públicas. Toda e qualquer informação verdadeira, obtida de forma lícita, poderá ser publicada, sem necessidade do prévio consentimento do biografado. Eventuais abusos, como a utilização dolosa de informação sabidamente falsa, poderão ensejar providências judiciais no âmbito civil e penal, quando for o caso.
Direito de todos
O Supremo Tribunal Federal tem exercido, ao longo dos últimos anos, papel de vanguarda na defesa e promoção do chamado livre mercado de ideias. Em casos paradigmáticos, como na ação que sepultou a antiga e autoritária Lei de Imprensa, editada durante o regime militar, ou no julgamento em que liberou o uso do humor e a crítica jornalística nas eleições, a Suprema Corte brasileira tem reconhecido às liberdades de expressão e de informação a posição de proeminência que merecem no contexto dos demais direitos assegurados na Constituição.
Existe, assim, real chance de de que o Supremo, uma vez provocado pela via própria, declare a inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, dos artigos 20 e 21 do Código Civil, a fim de afastar a necessidade de consentimento do biografado – ou de seus familiares, em caso de pessoa falecida – para a publicação ou veiculação de obras biográficas de pessoas públicas ou envolvidas em acontecimentos de interesse público.
O conhecimento da História é um direito da cidadania. Contá-la é um direito de todos, independentemente de censura ou licença, do Estado ou dos personagens envolvidos.
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[Gustavo Binenbojm é professor adjunto de Direito na Universidade do Estado do Rio de Janeiro; foi o advogado da ação que liberou o humor e a crítica jornalística durante o período eleitoral]