Tentamos abordar, neste texto, a questão das relações entre mídia e poder político no Brasil, isto é, qual o quadro geral destas relações e quais as propostas que estão postas pela sociedade organizada com o intuito de fomentar novas perspectivas de democratização da mídia no país.
Há um consenso entre os pesquisadores da área de comunicação de que o novo milênio se inicia sob o signo da chamada “era digital”. Esta expressão (“era digital”) nos remete à ideia de convergência tecnológica entre as telecomunicações, os meios de comunicação de massa e a informática, colocando a mídia no centro da engrenagem da globalização econômica e cultural e, simultaneamente, tornando-a o setor dinâmico da economia internacionalizada, para onde estão sendo destinados os grandes investimentos dos conglomerados transnacionais.
Outra ideia também consensual entre nós, que se tornou um verdadeiro truísmo, é de que o conjunto dos meios de comunicação, isto é, a mídia, é o quarto poder nas sociedades capitalistas contemporâneas (ver o filme O Quarto Poder, direção de Costa-Gavras, com Dustin Hoffman e John Travolta, lançamento de 1997). Isto sugere que não só a mídia se junta aos outros três poderes constituídos, de acordo com a repartição dos poderes formulada pelo filósofo iluminista francês Montesquieu (Executivo, Legislativo e Judiciário), para combater as monarquias absolutistas, cuja expressão do poder absoluto está bem representada na famosa frase de Luís XIV, rei de França, “L’État c’est moi” (“o Estado sou eu”), mas, principalmente, que ela se põe acima deles, isto é, tornou-se um poder que supostamente é mais poderoso e ainda fiscaliza todos os outros.
Jornal Nacional detona pré-candidata
Pensa-se que em primeiro lugar devemos discutir de quais meios de comunicação estamos falando. Certamente as Organizações Globo, da família Marinho, no contexto brasileiro, ou a News Corporation, do senhor Rudolph Murdoch, no contexto mundial, são mídias poderosas que movimentam enorme volume de capital, influenciam ideias e comportamentos individuais e coletivos e agem politicamente em favor de seus próprios interesses e dos interesses da sociedade capitalista em geral. Organizações deste porte não podem ser colocadas em um mesmo conjunto com outras pequenas empresas que se utilizem de algum recurso tecnológico para produzir e veicular mensagens.
Estas grandes organizações detêm a capacidade de produzir e distribuir imagens em larga escala e estas, por sua vez, exercem um imenso poder na sociedade contemporânea. O pensador francês Guy Debord, autor do livro A Sociedade do Espetáculo, defende o ponto de vista de que nesta sociedade o conjunto das relações sociais é mediado pelas imagens. O conceito de “sociedade do espetáculo”, criado e utilizado por ele, é a tentativa de explicar os mecanismos de funcionamento da sociedade contemporânea onde das relações interpessoais às manifestações sociais, políticas e religiosas, tudo está mediado pela presença onipotente das imagens.
Para os brasileiros, é de fácil compreensão o conceito de Guy Debord se for lembrado do episódio em que uma busca da Polícia Federal, em 2002, no escritório do marido da governadora do Maranhão, Roseana Sarney, onde foram encontrados dólares supostamente fruto de transações ilícitas, foi divulgada pela Rede Globo de Televisão em horário nobre, o Jornal Nacional, fato este que se mostrou suficiente para detonar a ascensão da pré-candidata pelo DEM à presidência da República, favorecendo o então pré-candidato pelo PSDB, José Serra.
Eleição perdida
Em 2006, outro episódio similar marcou a campanha eleitoral. Às vésperas do 1º turno, no dia em que ocorreu um trágico acidente com um Boeing da Varig, provocando a morte de aproximadamente 200 pessoas entre passageiros e tripulantes, novamente a Rede Globo, em seu principal telejornal, o Jornal Nacional, deixou de divulgar esta notícia já divulgada por outras redes, isto é, levou um “furo”, para centralizar seu telejornal na exibição das imagens do dinheiro (imagens obtidas ilegalmente) que supostamente seria utilizado por militantes do PT para a compra de dossiê contra o candidato adversário, José Serra. Os analistas consideram que este fato provocou a realização do 2º turno das eleições presidenciais, o que era considerado improvável, mesmo depois de uma intensa campanha de divulgação de escândalos envolvendo figuras importantes do PT e do governo, em muitos casos militantes que detinham as duas condições (exemplos: José Genoíno, José Dirceu, Antônio Palocci etc.). Ainda assim, Lula venceu com ampla margem o 2º turno das eleições.
Em 2010, novamente os grandes meios de comunicação de massa voltaram a serrar fileiras com Serra (desculpem o trocadilho). Mais um episódio se tornaria o epicentro da campanha para esta fração da mídia: a suposta “agressão” sofrida pelo candidato José Serra no palanque de campanha no Rio de Janeiro. Tentou-se criar um clima de violência e intolerância atribuído aos militantes e simpatizantes da candidata Dilma Rousseff. Posteriormente, o episódio foi desmascarado, através de vídeo gravado na ocasião, ficando evidente que a tal “agressão” não passou de uma bolinha de papel atirada por um manifestante (não é improvável que tenha sido um partidário de Serra, insatisfeito) e que atingiu a calvície do candidato. Cita-se este episódio para não adentrar na cobertura feita pela revista Veja, de sistemática desqualificação da candidata Dilma Rousseff. Novamente, o candidato dos grandes meios de comunicação perde a eleição e Dilma é eleita no segundo turno, como já havia acontecido com Lula.
Interesses e poder
Os dois últimos episódios citados acima devem levar à reflexão para que possamos tirar deles algumas conclusões:
A primeira conclusão a que chegamos é que o poder da mídia, ao menos no Brasil, não é tão grande quanto se costuma imaginar. Por três eleições consecutivas, o candidato dos grandes meios de comunicação foi derrotado, apesar dos esforços quase explícitos da mídia em torná-lo vencedor.
A segunda conclusão é que, apesar de manifestar, sempre que possível, a sua fé na objetividade e na imparcialidade como valores fundamentais para a prática do “bom jornalismo”, o que se assiste, particularmente nas campanhas eleitorais citadas, é um vergonhoso “vazio ético”, para citar a expressão do jornalista brasileiro Bernardo Kucinski quando este se refere ao comportamento antiético dos grandes meios de comunicação no Brasil.
A terceira, e mais importante, conclusão a que chegamos é que a expressão da mídia como o quarto poder não encontra respaldo em observações empíricas. Longe de se manifestar como uma fantasmagoria que está distante e acima dos poderes constituídos da República, as observações mostram que os grandes conglomerados de comunicação comportam-se, apesar da singularidade das mercadorias que produzem e distribuem, de forma muito próxima a todas as outras grandes corporações capitalistas; isto é, defendem interesses próprios, particularistas e, quando possível e necessário, os interesses gerais do sistema político e econômico vigente, através de intervenções diretas nos jogos de interesses e poder que transcorrem no seio da sociedade capitalista. Os grandes conglomerados de comunicação são, portanto, atores no palco onde outros atores (outras empresas, sindicatos de trabalhadores e patronais, partidos políticos, igrejas etc.) também se fazem presentes.
Um marco regulatório para a mídia
Para finalizar, pretende-se levantar a seguinte questão: é a mídia um poder incontrolável? É a mídia um dragão enfurecido e fora de controle? Na metáfora do dragão, lembramos que a sociedade é o São Jorge no filme de Glauber Rocha (O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro). O Santo Guerreiro que vence o dragão, neste caso, domestica a mídia.
O Santo Guerreiro, isto é, a sociedade brasileira organizada, participou em Brasília, em dezembro de 2009, da Primeira Conferência Nacional de Comunicação e aprovou inúmeras propostas para a regulamentação da mídia dentro dos valores políticos e culturais de uma sociedade democrática. Por esta razão, pensa-se que devemos ampliar as discussões em torno destas propostas e ao cabo disto pressionar o governo brasileiro para enviar projeto ao Congresso Nacional a fim de torná-las leis que possam estabelecer um marco regulatório para a mídia no país, criando um ambiente que favoreça um comportamento ético das empresas de comunicação de massa e fortaleça a consolidação da sociedade democrática no Brasil.
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[Valério Cruz Brittos e Augusto Sá Oliveira são, respectivamente, professor titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos; e professor de Comunicação Social e doutor em Ciências Sociais pela mesma instituição]