Em artigo que aponta algumas ressalvas sobre a Comissão da Verdade (O Estado de S. Paulo, 28/05/2012), o renomado jurista Yves Gandra Martins, logo de início, faz a seguinte formulação:
“Depois de muita expectativa – e com grande exposição na mídia –, foi constituída comissão para ‘resgatar a verdade histórica’ de um período de 42 anos da vida política nacional, objetivando, fundamentalmente, detectar os casos de tortura na luta pelo poder. A História é contada por historiadores, que têm postura imparcial ao examinar os fatos que a conformaram, visto serem cientistas dedicados à análise do passado. Os que ambicionam o poder fazem a História, mas, por dela participarem, não têm a imparcialidade necessária para a reproduzir.”
O que incomoda é o fato do jurista acreditar que historiadores têm o pressuposto da imparcialidade no fazer de sua profissão. E prossegue com o seu primeiro reparo:
“A Comissão da Verdade não conta, em sua composição, com nenhum historiador capaz de apurar, com rigor científico, a verdade histórica da tortura no Brasil, de 1946 a 1988. O primeiro reparo, portanto, que faço à sua constituição é o de que ‘não historiadores’ foram encarregados de contar a História daquele período.”
Alguns historiadores poderiam pulular de suas sepulturas, caso estivessem mortos, com a utilização do termo “verdade histórica”. Principalmente aqueles que seguem as correntes relativistas não acreditam que o produto do trabalho dos historiadores possa ser chamado de verdade. Consideram que existem vários pontos de vista sobre cada fato e o ponto de vista do historiador nessa reflexão poderia ser chamado, sim, de versão, verdade nunca. Nas últimas décadas, o termo verdade, nas ciências humanas, foi entrincheirado e nessa guerra declarada contra a “verdade absoluta” a busca pela verdade deixou de fazer sentido.
Restituição ao diálogo
Ao final de seu texto, Gandra Martins volta à verdade histórica: “Estou convencido de que tudo o que ocorreu no passado será, no futuro, contado com imparcialidade, não pela comissão, mas por historiadores, que saberão conformar para a posteridade a verdade histórica de uma época.” Já utilizamos em outro texto, http://www.teste.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/a_midia_pensada_por_historiadores, um panorama traçado pelo historiador José Carlos Reis a respeito da crise da verdade, que Yves Gandra Martins parece não compactuar e parece vir a calhar também neste momento:
“Penso que se podem distinguir pelo menos três posições em relação ao ‘relativismo pós-estruturalista’, à crise da verdade, após a euforia cientificista estruturalista:
A primeira é articulada por Hayden White, para quem o relativismo é libertador. Ele não vê oposição entre história e ficção. O historiador produz construções poéticas e se ilude quanto à realidade e verdade de seus relatos. Mesmo que se irritem com o apagamento da fronteira entre o real e o ficcional, os historiadores não podem evitar de pensar no seguinte: a explicação histórica não é dada pelo conteúdo factual. A história adquire sentido da mesma forma que o poeta e o romancista dão sentido ao real. E, para White, isso é bom. A história não é diminuída quando aproximada da literatura, que é também um saber superior. Afinal, só o conhecimento científico é válido? Se o mundo é tal como você o narra, tal como lhe parece, ninguém mais se deixará dominar por discursos dogmáticos e ‘verdadeiros’, que só são ideologias perigosas. O passado pode ser mudado, a história não precisa ser um fardo insuportável.
Do lado contrário, há a posição de Carlo Ginzburg, o ‘combatente pela história’ mais radical contra o ponto de vista histórico pós-moderno. Rejeita vigorosamente a ‘máquina de guerra cética’. Para ele, a metodologia da história, hoje, está distante do trabalho concreto dos historiadores, pois nenhum historiador quer produzir apenas ‘retórica’. Ginzburg vê graves consequências epistemológicas, éticas e políticas na negação da distinção entre narrativas históricas e imaginárias. O discurso histórico relativista é visto como empático com os ‘vencedores de 1989’, protegendo o Ocidente da sua culpa e tornando-o irresponsável por sua história de conquistas, genocídios, escravidões, holocaustos e terrorismos.
Por fim, Paul Ricoeur aponta um outro caminho para a historiografia. Sua abordagem não toma o texto em si mesmo, não aceita a suspensão que faz do mundo, mas o restitui ao diálogo. O texto deixa de ser fechado em si mesmo porque permite que o leitor se aproprie dele e o transforme, para aplicá-lo ao seu mundo, interpretando a si mesmo, compreendendo-se melhor, pela mediação dos textos.”
Ausência de historiadores
O relativismo exagerado que anula a possibilidade de os historiadores chegarem a uma verdade histórica parece estar em voga, mas existem outras alternativas teóricas contrárias e bastante plausíveis. Nesse sentido, concordamos com Gandra Martins quando utiliza o termo verdade histórica, mas não quando agrega à formulação o termo isenção. O historiador, como qualquer outro profissional, não pode ser isento. Seu fazer não permite isso, suas experiências e seus preconceitos vão permear seu trabalho. É de sua subjetividade que surgirão as perguntas a serem respondidas sobre o passado e o futuro.
Já no que diz respeito ao 1º “reparo” que o autor faz a respeito da Comissão da Verdade não ter historiadores em sua composição, isso não é de se estranhar. Parece natural que os profissionais da história, que não têm a habilidade necessária para apresentar amplamente seus trabalhos e cuja uma das principais funções é “não esquecer o passado”, sejam preteridos.
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[José Alexandre é professor de História, Ponta Grossa, PR]