Tuesday, 17 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

João Ubaldo Ribeiro

‘Em episódio que não sei mais se se estuda na História do Brasil, pois nem mesmo sei se ainda se estuda História do Brasil, nos contavam, às vezes com admiração, que D. Pedro, o da Independência, irritado com a primeira Assembléia Constituinte brasileira, por ele considerada folgada e ousada, encerrou a brincadeira e outorgou a Constituição do novo Estado. Decerto a razão não é esta, é antes um sintoma, mas vejo aí um momento exemplar da tradição de encarar o Estado (que, na conversa, chamamos de ‘governo’) como nosso mestre e os nossos direitos como por ele dadivados. Os governantes não são mandatários ou representantes nossos, mas patrões ou chefes.

Claro, há muito o que discutir sobre o conceito de praticamente cada palavra que vou usar – isto sempre, de alguma forma, é possível -, mas vamos fingir que existe consenso sobre elas, não há de fazer muito mal agora. Nunca, de fato, tivemos democracia. E a República não trouxe nenhuma mudança efetivamente básica para o povo brasileiro, nenhuma revolução ou movimento o fez. Tudo continua como era dantes, só que os defeitos, digamos, de fábrica, vão piorando com o tempo e ficam cada vez mais difíceis de consertar. Alguns, na minha lúgubre opinião, jamais terão reparo, até porque a Humanidade, pelo menos como a conhecemos, deve acabar antes.

Os tempos recentes têm sido um pouco menos ruins, levando-se em conta um bom indicador de democracia, que é a liberdade de informação e de expressão, bem como de opinião e criação artística. Nisto, vimos sendo felizes, pois de fato, dando-se o abatimento das limitações que qualquer um poderá arrolar indefinidamente, fala-se o que se quer e se manifesta o que se quer, dentro dos limites da lei. Se isso não é conseguido por alguém ou por grupos e setores, não se deve à ação direta do governo. No que diz respeito a ele, cada pessoa ou grupo pode pensar como quiser e dizer o que quiser. Não é assim?

Não, não é. Era, quando o governo atual estava na oposição, como, aliás, tudo mais em política. Naquela época, não havia denuncismo, não só na imprensa quanto entre os oposicionistas, como o presidente mesmo (não canso de lembrar: que excelente candidato foi o nosso presidente!), que chamava uns e outros de ladrão a torto e a direito e, sobre os deputados, cujo trabalho atualmente elogia, disse que não passavam de 300 picaretas, sem que ninguém, o que podia ter sido feito, procurasse a Justiça, para que ele provasse que pelo menos crime de injúria ou difamação não havia cometido. Mas, como alieno culo piper refrigerium est continua princípio basilar da vida, agora campeia a denúncia irresponsável e leviana, a que urge dar cobro.

Sim, repita-se a cantilena. A imprensa comete erros e excessos, como toda atividade humana. Para coibi-los, existem leis. Mas não foi o governo que deu ao cidadão o direito de estrilar publicamente contra o que ele faz ou não faz. O direito a pensar e opinar é básico para a plenitude humana. O direito a expressar esse pensamento também não é uma benesse do governo, faz parte da dignidade e da liberdade de cada um de nós. Agora, a pretexto de regulamentar uma atividade profissional bastante diferente, por exemplo, da de um médico ou advogado, o governo revive uma idéia de odor mussolínico e encaminha ao Congresso (ainda bem que não foi uma medida provisória, instrumento legislativo ditatorial hoje costumeiro e que o presidente, quando ainda não havia denuncismo, prometeu não usar e acabar e não só não a acabou como a usa mais do que faz embaixadinhas) um projeto que cria o Conselho Federal de Jornalismo, para ‘orientar, disciplinar e fiscalizar’ o exercício do jornalismo. Tudo na melhor das intenções, é claro. É só com a trivial finalidade de regulamentar uma profissão como qualquer outra.

Não é. É o começo do arrolhamento da imprensa. E é um caminho para o peleguismo. Já existem, no projeto, os embriões completos de um sistema de censura e tutela, que poderá calar a boca de qualquer jornalista, mesmo que não faça denúncias, mas apenas críticas consideradas, digamos, destrutivas ou de mau gosto, como é o meu caso e o de incontáveis outros – nunca se sabe a que limites chegará o burocrata. Podemos esperar até ouvir de novo que o povo brasileiro ainda não está preparado para a democracia. Ou seja, eles nos deram o direito de falar, alguns de nós talvez tenhamos abusado e eles vão tirar esse direito, pronto.

Vão tirar uma conversa, não vão tirar coisa nenhuma. O povo, assim ou assado, por esse canal ou por aquele, por um jornal mambembe ou jornalão, numa rádio fuleira ou em cadeia, na tevê do condomínio ou em rede nacional, vai continuar a poder falar mal do governo e a dar curso ao que ouve e vê escancaradamente todo santo dia, em tudo quanto é canto para que olhe. O governo não tem nenhum direito, quem tem direito é o cidadão. Não se cumpre, mas está escrito e um dia se cumprirá: ‘Todo poder emana do povo e em seu nome será exercido.’ Qualquer coisa que o governo faz só tem legitimidade se alicerçada na vontade popular. Dirão que tal vontade é expressa pelos representantes eleitos. Está certo, mas representantes eleitos que estão aí porque sua existência institucional contou com uma imprensa capaz de avaliar, criticar e denunciar. Vamos ter responsabilidade com denúncias, não vamos antecipar julgamentos, mas não vamos calar a boca, nem obedecer a manual de burocrata. Eu não vou calar a boca, ainda mais diante de um Estado que não só toma essa iniciativa como preparou, quase à sorrelfa, um plano cultural solertemente dirigista e assustadoramente policialesco. Mas que não há de prosperar. Porque, como mostrou a imprensa, nesse e em tantos outros casos, temos mente, boca e voz livres, e não foram um presente do Estado. O direito a elas é parte de nossa essência e nenhum conjunto de aspirantes a tiranetes o vai cassar.’



Olavo de Carvalho

‘Quanta gentileza!’, copyright O Globo, 15/8/04

‘Não é só o governo federal que está promovendo o estrangulamento da classe jornalística. É ela própria que, através da sua Federação Nacional, oferece o pescoço ao garrote, tão gentilmente quanto vem ocultando há anos as centenas de páginas das atas do Foro de São Paulo, a matança geral de cristãos em países islâmicos e comunistas, os apelos desesperados de presos políticos torturados em Cuba, a corrida armamentista na China e a ajuda que lhe prestou Bill Clinton, o contínuo genocídio cultural no Tibete, a repressão ao cristianismo nos EUA e na Europa, a disputa feroz entre globalistas e nacionalistas americanos, a colaboração cada vez mais intensa do terrorismo islâmico com as Farc e Hugo Chávez ( http://www.frontpagemag.com/Articles/authors.asp?ID=1921 ) e, enfim, tudo o que o leitor precisaria saber para se dar conta de que a realidade das coisas não corresponde exatamente aos belos discursos do Fórum Social Mundial.

O recorte que sai na nossa mídia é tão fictício que chega a induzir o público brasileiro — militar inclusive — a acreditar que o perigo para a soberania nacional na Amazônia vem dos EUA e não da ONU, o QG do antiamericanismo universal.

A ditadura, com um censor em cada redação, conseguiu suprimir menos fatos essenciais do que aqueles que o filtro mental de uma classe culturalmente pré-moldada não tenha talvez chegado nem mesmo a enxergar. Se a autocensura é pior do que a censura, pior ainda é a autocensura automatizada, integrada nas rotinas inconscientes, que o jornalista obedece com a docilidade de uma ovelha no instante mesmo em que se imagina um leão rugindo em defesa da liberdade de imprensa. Era precisamente a esse fenômeno que Gramsci se referia ao anunciar que um dia o Partido-Príncipe viria a ter sobre a sociedade pensante ‘a autoridade onipresente e invisível de um decreto divino’. A liberdade de opinião, afinal, pressupõe a liberdade da mente, sem a qual não passa de um rótulo enganoso colado sobre o ‘centralismo democrático’ leninista.

As honrosas exceções de sempre – um Denis Rosenfield, um Ali Kamel e mais meia dúzia – não modificam em nada o estado de coisas. Ao reclamar contra o projeto de controle oficial, nossa mídia está apenas exigindo seu direito de calar a boca por iniciativa própria.

O projeto ‘Adeus, Lênin’, como bem a propósito o chamou Míriam Leitão, é mesmo um luxo desnecessário. Esta semana, o ministro Amir Lando não precisou de nada disso para investir contra o jornalista e economista Ubiratan Iorio, de Polícia Federal em punho, intimando-o a ‘prestar declarações’ sobre um artigo publicado em março no ‘Jornal do Brasil’ com críticas ao aumento das contribuições previdenciárias.

Terá sido com objetivo análogo que o sr. Frei Betto, consultor metafísico da Presidência, andou sondando meu endereço residencial? Não sei. Mas sei que, na mesma semana, uma nota do jornalista Cláudio Humberto, com denúncias graves contra o prefeito petista do Recife, desapareceu misteriosamente da sua coluna no ‘Jornal do Commercio’, sendo publicada só em sites da internet e em alguns outros jornais.

O dilema do jornalismo brasileiro é escolher entre a mordaça explícita e o silêncio obsequioso.

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Quando o governo vetou a divulgação da ‘História oral do Exército: 1964, 31 de março’, dei aqui a notícia. O que é justo é justo: liberados, os dez volumes, com depoimentos importantíssimos de testemunhas oculares, estão em circulação e podem ser adquiridos na Biblioteca do Exército ( bibliex@ism.com.br ).

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Andaram-me pedindo que indicasse algum livro do professor J. Pinharanda Gomes, o notável filósofo português a que me referi aqui meses atrás. Recomendo enfaticamente a originalíssima ‘História da filosofia portuguesa’ (Ed. Lello), organizada não pela ordem cronológica mas segundo as três correntes de pensamento que formaram a mentalidade ibérica: cristã, judaica e muçulmana. Numa época em que o diálogo ecumênico desperta possibilidades de compreensão antes dificilmente imagináveis, essa obra se torna leitura obrigatória para os estudiosos de religiões comparadas.’



Augusto Nunes

‘José Dirceu parece saudoso do Granma’, copyright No Mínimo (www.nominimo.com.br), 14/8/04

‘Nos anos vividos em Cuba, quando treinava para ser um tremendo guerrilheiro e tomar pelas armas o poder no Brasil, José Dirceu de Oliveira só lia o Granma. Até por faltar-lhe alternativa: na década de 70, se alguém quisesse ler jornal na ilha de Fidel Castro, era o Granma ou o Granma.

Qualquer cérebro com mais de três neurônios haverá de concordar: desde Gutenberg, poucos papéis impressos (incluídos prospectos de lançamentos imobiliários ou atas de reuniões de condôminos) conseguiram ser mais tediosos que o velho Granma. (De volta ao Brasil na primeira metade dos anos 70, Dirceu dedicava-se com evidente prazer à leitura do semanário que circulava em Cruzeiro do Oeste, interior do Paraná, onde viveu clandestinamente por muito tempo. O tablóide paranaense talvez lhe parecesse melhor que o similar cubano. Mas estou divagando).

A primeira página do Granma seguia meia dúzia de módulos básicos. Quase sempre, a manchete reproduzia frases de Fidel – ataques ao Grande Satã ianque, elogios a proezas decorrentes do esforço revolucionário, algo nessa linha. Nas grandes datas do regime, frases carregadas de pompas e fitas se conjugavam com imagens dos imensos comícios destinados a celebrar alguma vitória dos combatentes de Sierra Maestra. Nessas edições, ficava especialmente fácil preencher as páginas internas: bastava publicar a íntegra do discurso de Fidel. O palavrório nunca durava menos que cinco horas.

E havia também o módulo, utilizado com frequência aterradora para cabeças capazes de pensar, que incluiria para sempre o Granma entre os piores jornais de todos os tempos. Era a primeira página concebida para anunciar a chegada a Cuba de representantes de nações amigas, pertencentes ao bloco comunista liderado pela União Soviética, implodido a partir dos anos 80. Era um bloco e tanto: gordo e barulhento, reunia países cujos figurões pareciam apreciar com particular entusiasiasmo a ensolarada ilha no Caribe.

Além das comitivas que Moscou não parava de mandar, viviam desembarcando companheiros procedentes da Bulgária, da Polônia, da Hungria, da Tchecoslováquia, da Coréia do Norte, de vários pontos do império socialista. De vez em quando baixavam em Havana delegações de partidos comunistas de países ainda sob o jugo capitalista. O Granma não esquecia nenhuma, mas só as que estavam no poder valiam manchete.

Ilustrado pela foto do bando de forasteiros risonhos, cumprimentados por anfitriões com o rosto tomado por sorrisos tão amplos quanto as barbas, lá vinha o texto padronizado. O primeiro parágrafo registrava a relevância do evento. O segundo saudava a consistência dos laços fraternais que uniam visitantes e visitados. O terceiro parágrafo forjava aquela inverossímil contrafação da lista telefônica: uma relação interminável enunciava os nomes de todos, rigorosamente todos os recém-chegados. Imagine-se uma página inteira com dezenas, centenas de nomes coreanos, tão semelhantes quanto os de príncipes sauditas. Pois era assim a coisa no Granma.

São bem mais raras essas páginas, as velhas nações amigas viraram peças de museu. Mas o Granma não mudou na essência, como acaba de constatar José Dirceu. Premiado com alguns dias de descanso, o atual ministro, que acumula a chefia da Casa Civil com o posto de capitão do time de Lula, resolveu passar férias em Cuba. Reviu o jornal. Pode até ter confirmado que o semanário de Cruzeiro do Oeste é mais atraente. Mas também pôde conferir as vantagens da fórmula caribenha.

No Granma, jamais são publicadas notícias desagradáveis aos donos do poder. Críticas a Fidel? Nem pensar. Restrições ao regime, nenhuma. Denuncismo ali não tem voz nem vez. Diários assim até dispensam conselhos federais de jornalismo.

É com esse tipo de imprensa que sonham os governos. O governo de Lula e Dirceu também adoraria conviver só com filhotes do Granma.’



Adauri Antunes Barbosa e Nélson Gonçalves

‘Dirceu reage: ‘Estão querendo ganhar no grito ‘’, copyright O Globo, 15/8/04

‘RIO CLARO e BAURU (SP). O chefe da Casa Civil, José Dirceu, afirmou ontem que o governo não vai desistir da criação do Conselho Federal de Jornalismo (CFJ) e classificou as reações à proposta como terrorismo e patrulhamento. Segundo o ministro, os opositores da proposta estão tentando cercear o debate ‘com gritaria, querendo ganhar no grito’.

Em visita a Bauru (a 350 quilômetros de São Paulo), Dirceu informou que recebeu orientação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para que o debate sobre a criação do CFJ seja feito no Congresso.

– O governo não vai retirar o projeto. O presidente me deu orientação clara sobre isso ontem (sexta-feira), antes de viajar – afirmou o ministro.

Ele repetiu que o projeto partiu da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj).

– O governo atendeu e encaminhou (ao Congresso). O projeto agora está no Congresso e é lá que tem que ser debatido e modificado, se for o caso.

Dirceu afirmou que cabe às entidades de classe e às empresas jornalísticas discutirem o projeto junto aos deputados.

– Quem vai dizer quando e como vai ser aprovado é o Congresso. Se as empresas jornalísticas consideram que alguns artigos atentam contra a liberdade de imprensa, proponham a mudança.

Dirceu defendeu o debate e atribuiu à oposição político-partidária e à política eleitoral a acusação de surto autoritário e a reação contra a criação da Agência Nacional de Cinema e Audiovisual (Ancinav) e do CFJ. Ele disse que ‘não parece democrático’ a imprensa imaginar que o governo quer cerceá-la e classificou as reações como terrorismo e patrulhamento. Para ele, os setores que hoje gritam contra o autoritarismo do governo são os mesmos que apoiaram a ditadura militar.

– Querer cercear o debate com gritaria, ganhar no grito, isto é autoritarismo. Isso é cercear a liberdade de imprensa e não me parece razoável, democrático. Isso, sim, me parece autoritário – disse Dirceu, que também participou ontem em Rio Claro, a cerca de 180 quilômetros da capital, de um encontro de petistas. Em discurso, o ministro criticou os que apoiaram a ditadura e agora gritam.

– Se alguém abrir aqui uma revista ou outra, vai pensar que o governo está montando uma conspiração, nós que lutamos pela democracia contra muitos que estão gritando agora, que apoiavam a ditadura militar. Inclusive alguns jornais que apoiaram abertamente a ditadura militar durante anos.

Dirceu: Código de Ética para servidor não é mordaça

José Dirceu disse também que o decreto que muda o Código de Ética do funcionalismo público não tem como objetivo amordaçar os servidores, como alguns setores da oposição têm interpretado, mas criar um projeto que trate da troca de informações entre órgãos dos poderes Judiciário e Executivo sobre o crime organizado e a lavagem de dinheiro.

– É essa a quebra do sigilo, a do criminoso, da organização criminosa, das empresas que estão envolvidas com o crime. O cidadão não precisa ficar com qualquer temor.

No caso do projeto que propõe a criação da Ancinav, Dirceu afirmou que é preciso discutir melhor se vale a pena fazer uma agência de regulação e fiscalização para a área cultural.

(*) Especial para O GLOBO’