Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Balanço geral, sem golpismo

Às portas de mais um ano findo, é sempre hora propícia para uma revisão geral, como aquela que um livro terminado solicita. Dentre outros, um tema em particular ocupou a vida nacional durante, pelo menos, o último semestre. O Observatório da Imprensa, como bom observador (desconto para a redundância), não se furtou em abordá-lo. Refiro-me às acusações que, por parte do governo federal, a mídia e, em especial, o jornalismo impresso – para respeitarmos a diferença que ajustadamente Muniz Sodré defende – têm recebido, insinuando (ou até explicitando) a existência de uma estratégia golpista.

Pelo tanto de artigos que bem pontuaram a relação mídia/governo, é de bom-tom evitar repetições. Todavia, não me isento de acentuar que, de minha parte, ao longo dos anos de 2003 e 2004, assinei alguns artigos com o intuito de justamente patentear o contrário – ou seja, naquele período, a prática jornalística dominante no Brasil dava conta de uma cordialidade que chegava a preocupar.

Os ventos mudaram? Não. O que mudou foi o que veio à tona. E não foi pouco. Diante de tantas denúncias atreladas a fatos graves, o jornalismo exerceu o papel de dar-lhes visibilidade. É bem verdade que, aqui e ali, terá havido inclusive o mau exercício, mas essa não foi a tônica, felizmente.

Imprensa cordial

É preciso registrar que, ao lado de matérias incômodas às hostes governamentais, não faltaram outras tantas a assinalarem (até excessivamente) a positividade dos números alcançados pela economia. Algo que, por exemplo, passou ao largo diz respeito ao anúncio feito pelo governo quanto à decisão de quitar, antecipadamente, a dívida com o FMI. Tal fato foi anunciado pelo governo – e referendado pela imprensa – como uma decisão épica, aliada aos inevitáveis arroubos de ufanismo. A verdade, porém, foi outra.

O ato da quitação não decorreu de uma iniciativa isolada do governo brasileiro. Três dias após, igual medida estava sendo divulgada pelo governo argentino, quando então se soube – mais por lá que por cá – a verdadeira razão. Tratava-se, na realidade, de acordo firmado entre os países.

Como bravata, o presidente brasileiro antecipou-se, vindo a público para divulgar o ato de coragem. Houvesse realmente, no país, atmosfera golpista, tal fato teria sido largamente abordado pela imprensa, o que deixaria a figura do presidente um tanto ridicularizada. Por algum motivo, pouparam-no. E, de certo modo, a imprensa ainda mantém certo tratamento cordial, se levarmos em conta as bobagens, nos mais diferentes assuntos, que, quase diariamente, em distintos palanques, o presidente da República lança no ar.

Se a imprensa efetivamente quisesse demolir teria pauta assegurada todos os dias. Assim também procederia a oposição, ante o quadro de corrupção que nenhum tapete persa consegue esconder. A oposição optou por outra estratégia e a imprensa procura preservar o equilíbrio. Se há alguma intenção golpista, é mais fácil detectá-la em âmbito governamental quando este tenta incutir na população a existência da coisa.

Diante de tantos fatos que vieram a público – afora outros sussurrados nos bastidores –, há enorme saldo que o governo deve creditar à imprensa. O esquema do ‘valerioduto’ e de outros ‘dutos’, em outro país, por muito menos já teria causado deposições em todos os escalões.

Chega a ser pífio, portanto, quando alguns setores tentam associar o comportamento da imprensa brasileira ao da Venezuela. Ainda assim, porém, lá, o presidente da República não perde votos em eleições e plebiscitos. O contingente que apóia Hugo Chávez tem mais força que a pressão da mídia. A causa é simples: na Venezuela, o governo efetivamente implantou ações públicas transformadoras, seja no campo da educação, seja no da habitação. Na Venezuela, a retórica é acompanhada por realizações. Bem diferente, pois, de um país que se tenta sustentar pela garganta e por imagens.

Mudar o disco

Ao concluir-se o ano, não há como deixar de ecoar algumas falas de Ferreira Gullar, quando de seu comparecimento à ‘Sabatina Folha’, e cujas passagens a Folha de S.Paulo (23/12) reproduziu. Aqui repasso algumas, para, em seguida, observar o tratamento que o jornal conferiu à matéria.

** ‘Eu não votei em Lula, primeiro ponto. Havia muito tempo que não acreditava que o PT fosse um partido capaz de governar o Brasil de maneira a atender aos interesses da maioria do povo brasileiro.’

** ‘Eu não chamo para dirigir o meu time como técnico um cara que não entenda de futebol. Vou chamar para dirigir a minha empresa um cara que não entenda de administração?’

** ‘Sinceramente, eu sei que não é o presidente que decide tudo, mas o que está acontecendo aí não é por acaso. Tem coisas que surpreenderam a todo mundo, inclusive a mim, que é a corrupção. Aí, realmente, com essa eu não contava. Eu contava com um fracasso administrativo, agora, com roubo, realmente, eu não contava.’

Antes que pareça o contrário do que vinha desenvolvendo no artigo, a própria Folha, na mesma edição, afora a chamada na primeira página (‘Gullar critica Lula e elogia o comunismo’), optou por publicar a matéria no caderno ‘Ilustrada’, dando destaque ao que Gullar disse a respeito de poesia. O título da matéria era ‘Ferreira Gullar ilumina sua poesia’.

Na chamada da primeira página não há alusão às questões políticas que ficaram, mescladas às de cultura, na página E4. É nesta página que se encontram as frases acima mencionadas. Será que algum leitor considerará esse tratamento jornalístico como golpista? Jornais da véspera (22/12) davam, em canto de página, a notícia de que a ‘Argentina tem o maior crescimento em 100 anos’. Lá, como se sabe, a subserviência a ditames do capital financeiro passou longe.

O governo de Néstor Kirchner, pagando adiantado a dívida com o FMI no valor de 9 bilhões de dólares (venceria em 2008), renegociando a dívida externa e implementando incentivos internos, atingiu expansão, entre 2003 e 2005, de 29,5%, com câmbio alto e superávit elevado. Com tudo isso, está assegurando um crescimento superior a 8,5% para o PIB.

Para arrematar, recordemos que não decai o índice de popularidade e de aceitação do presidente argentino. Além do mais, lá não há registro de estratégias ‘valerianas’, ‘delubianas’ etc. Ninguém, lá, para chegar ao poder (e, menos ainda, para nele se manter) precisou recorrer a ‘esquemões’ e outras práticas de assalto aos cofres públicos.

Como se vê, portanto, a imprensa brasileira está longe de fomentar construção golpista. Vamos virar o ano, tentando mudar o disco…

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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha, Rio de Janeiro)