Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

As crônicas do Sr. Pinto

O Diário do Pará lançou neste ano o melhor livro de crônicas editado em Belém em muitos anos, dos melhores de todos os tempos escritos por aqui, cujo padrão de qualidade é universal.

É difícil chegar a essa constatação vendo o volume, com 101 páginas, em formato tão pequeno que lembra o biquíni de bolinhas tão pequenininhas que cabiam na palma da mão da dona, a Ana Maria da música dos anos dourados.

Falo de Crônicas a sangue frio, de Elias Ribeiro Pinto, um dos livros da coleção “Pará de todos os versos, de todas as prosas”, da qual ele próprio foi o organizador (na nomenclatura emprestada às artes plásticas e ampliada ao abuso, curador). A antologia inclui apenas 29 dos milhares de crônicas que Elias escreveu em 10 anos de lide diária nas páginas do jornal.

A seleção foi feita às pressas, sem um critério bem definido nem na amplitude necessária para ser representativa da obra do autor. Mas são das mais saborosas crônicas que Belém já inspirou. Textos límpidos, sólidos e de um humor raro dentre uma turba nacional de cronistas sem marca, identidade, originalidade.

Coisa viva

Feita a apresentação, em livro tira-gosto (com o hífen mesmo), do seu mais representativo cronista, o Diário podia agora patrocinar uma obra mais sólida: nova reunião de crônicas, com ilustrações do irmão do autor, Luiz Pinto, fotos, vinhetas, cercaduras, formato maior e papel melhor. Um livro para ficar – e estar à altura de Elias Ribeiro Pinto.

Introduzi Elias no jornalismo em 1975. Foi um dos integrantes da equipe do semanário Bandeira 3, cujo primeiro número (dos sete dados à luz) foi para as bancas em janeiro daquele ano, logo depois do meu retorno a Belém. Também iniciei nas lides redacionais os Pintos mais velhos: Raimundo, que, infelizmente, já se foi, tão jovem, e Luiz, conhecido pelo seu traço, mas que também rabiscas bons textos.

Elias começou na reportagem e nela se manteve por mais tempo do que imaginávamos possível. Com os anos, foi passando para a crítica literária. Pulou em seguida para a crônica, mantendo um pé nos outros departamentos do jornalismo. A crônica é o seu sítio por excelência, o locus da sua realização. Deve singrar por ela em rumo fixo ou bordejar por outros territórios, quando necessário, mas sempre em complementaridade ao melhor de si.

Diz-se que a crônica é a mais legítima criação literária brasileira. E é. Desafiando os exegetas, tenho pelo Nelson Rodrigues cronista uma admiração que não mantém a mesma modulação quando passo ao teatrólogo. A crônica resiste como criação maior mesmo quando está em causa um excelente ficcionista como Carlos Heitor Cony (e que fiquemos por aí, deixando de lado o caráter da pessoa, felizmente isolada da persona do escritor). Alguns conseguiram se equilibrar entre estas duas lâminas das letras, mas alguns, que talvez imaginassem a crônica como um gênero menor, se feriram, às vezes mortalmente.

Poucos têm tantos atributos combinados na formação do grande cronista quanto meu irmão, 10 anos mais novo do que este já sexagenário repórter. Elias leu muito, guiado por uma curiosidade sem controle comum nos quatro irmãos jornalistas (e no pai, o velho Elias também jornalista, além de político, que pediu a saideira em 1985, aos 60 anos).

A estética do prazer foi seu prumo. Por isso pulou de academia em academia até dar adeus à obtusa universidade, fonte de taxonomias insalubres: “Entre o prazer da leitura e a penitência universitária, fiz minha escolha: larguei a universidade”, confessa.

Sem se preocupar com normas escolásticas e regras sacramentais, Elias leu de tudo, leu muito e aprendeu a ler pelo extravasamento das leituras. Lendo bem, passou a escrever bem. A gramática, indispensável quanto a etimologia, semântica e sintaxe, deu-lhe a ossatura do verso, que se fez carne na carne do leitor pela intimidade dos dois mundos.

É esse domínio da cultura como coisa viva que dá a escritores como Elias a capacidade de saltar da realidade, ao alcance de todos nós, viventes do cotidiano, para seus arquétipos, legendas, símbolos e códigos.

Amostra grátis

A representação literária é um dom, uma dádiva, a chave para ver melhor o que está diante de nós, contemplando os fatos pelo espelho das grandes cabeças, dos melhores efeitos da engenharia humana. A boa literatura (nada de “alta literatura”, que parece ser definição de sábios autoproclamados) vale muito mais do que as psicologias, psicanálises, terapias e outros arranjos da autoajuda e ajuda de terceiros.

Ao observar personagens de rua, cenas do dia a dia, e participar dos rituais desse cotidiano, Elias dialoga com suas sombras, espectros, fantasmas, duendes, gnomos e toda uma legião de personagens que saltam das páginas impressas no papel (seu melhor e mais genuíno depósito) para aderir ao corpo dos que com ele tiveram contato através do meio mais diabolicamente humano: a inteligência.

Em suas crônicas, Elias faz crítica dos costumes, resenha literária, indicação bibliográfica, ensaio de fino sotaque britânico (ah, Bertrand Russell ou George Bernard Shaw!), humor, piada, jornalismo, ficção, despachado e resolvido, senhor dos temas de que trata, atualizado ao linguajar das ruas e das gerações. e à agenda do dia. Mas distanciado dessa transitoriedade indispensável e indescartável pela intimidade com os clássicos, as melhores cabeças, as maiores obras.

Sem o mais remoto tom professoral, às vezes precário e imperfeito, redundante ou contraditório. Transferindo ao seu leitor o que hauriu de moto próprio: o prazer de ler, o privilégio de viver o que se lê, sofrendo ou rindo, angustiado ou enlevado, conforme as mudanças ocorram no compasso da virada de cada página de um Thomas Mann, Dostoievski, Joyxe, Rimbaud, Dante, Kafka ou Raymond Chandler, Dashiell Hammet ou, por que não, Ken Follet e Tom Wolffe.

Depois da amostra grátis das Crônicas a Sangue Frio, o Diário do Pará podia nos brindar com As aventuras e desventuras do Pinto que lê (ou as desventuras do Fantasma que anda). Se já foi boa a primeira dose, a repetição será muito melhor. Será ótima – e rara.

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[Lúcio Flávio Pinto é jornalista e editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)]