É chocante a capa da revista Primeira Leitura (número 26, abril de 2004). Minha avó perguntaria: ‘Por que fizeram isso com o homem?’ A síntese é impressionante. Cruzaram o rosto do presidente Lula com os de Sarney e Figueiredo. O resultado é um Frankenstein presidencial.
Na chamada para a matéria ‘É ele que governa o Brasil?’, a explicação, também na capa:
‘A imagem desta capa traz um estranho híbrido que funde os ex-presidentes João Figueiredo e José Sarney com Lula, o atual titular da Presidência. O resultado soma a abulia de um e a descoordenação de outro à falta de projeto e à inépcia que hoje têm endereço certo no Planalto’.
A matéria é assinada por Rui Nogueira e Reinaldo Azevedo. O que se questiona nada tem a ver com a inusitada declaração do ministro da Secretaria de Comunicação Luiz Gushiken, que recomendou uma ‘agenda positiva’ para a imprensa e teve brilhante resposta de Augusto Nunes no Jornal do Brasil, que utilizou o exemplo da ginasta Daiane dos Santos para rebater:
‘Alguma alma misericordiosa deveria informar ao ministro Luiz Gushiken, agora travestido de professor de jornalismo, que ‘agenda positiva’ é isso aí. A imprensa gosta, sim, de noticiar fatos animadores, desde que verdadeiros. A explosão da ginástica no Brasil é real, e não decorre do acaso. Gênios surgem só de vez em quando, não é possível a fabricação em série de Daianes’.
Outros métodos
O ministro pisou na bola, mas os editores da Primeira Leitura também. Com efeito, certamente haverá limites para o tratamento da imagem do presidente. João Figueiredo, aos olhos de quem concebeu a capa e a matéria, teria sido um ditador abúlico? Será?
Perguntemos a quem teve bancas de revistas destruídas por bombas se teriam a mesma opinião. E as vítimas do atentado do Riocentro, que, dando errado, causou os estragos que causou? Imaginemos que tivesse dado certo e as bombas tivessem explodido no meio do show onde estavam milhares de pessoas. O jornalista que teve em seu pescoço, literalmente, as mãos do nada abúlico general Newton Cruz, então executor das medidas de emergência, concordará que era abúlico o general que dava as ordens ao colega de farda e de poder?
É equivocada também a comparação com o outro presidente, José Sarney, em cujo governo a inflação teve picos de mais de 80% ao mês. Ou, descendo à comparação com outros ministros, a gestão de Antonio Palocci à frente do ministério da Fazenda não lembra nem de longe os atrapalhos do outro, Maílson da Nóbrega, hoje esbanjando conselhos em consultorias.
Quem sabe, poderíamos ir mais além e comparar o ministro Tarso Genro, hábil e experimentado negociador de conflitos, com os outros métodos da ministra Ester de Figueiredo Ferraz, que nomeava interventores para as universidades, quando servia ao governo Figueiredo.
Plantinha frágil
Não será necessário fazer brotar muito a memória para se ver que as comparações são equivocadas. Mas, afinal, que seus autores a externem e se submetam ao contraditório que o ministro Gushiken recomendou evitar. O que está em questão é a montagem da capa, claramente ofensiva a um presidente que freqüentou os cárceres de uma ditadura para cuja derrubada ele foi peça das mais importantes. Tanto que aí está, no posto, por meio de eleições diretas.
É só a capa que está em questão. O texto é sólido, pertinente e muito bem argumentado. E a matéria é uma das mais densas análises de um momento crucial da gestão do presidente Lula, quando os índices de aprovação despencam de forma assustadora.
Que o governo anda atrapalhado, ninguém pode negar. Mas também para as críticas é indispensável seguir a liturgia do cargo, tão reiteradamente invocada pelo ex-presidente José Sarney, hoje presidente do Senado. O presidente Lula cuja foto sofreu a esquisita montagem goza do respeito dos brasileiros. Não apenas dos que o elegeram. E não usufrui desses créditos porque foi eleito, o que pode parecer tautológico, mas pelo modo como exerce a presidência. Afinal, Collor também foi eleito, mas as discordâncias eram de outra natureza.
Que a maioria está descontente, é a mais pura verdade, capaz de ser aferida de vários modos, incluindo as recentes pesquisas de opinião. Não ajuda em nada a democracia, plantinha ainda tão frágil entre nós, travestir as críticas – aliás, muito pertinentes, reitere-se – em montagens cujos deboches investem contra o rosto do presidente.