Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Notícias do bar

Paul McMullan, ex-editor de variedades do extinto News of The World, é um homem sinistro. Deixou a profissão e agora trabalha em bar noturno na Inglaterra. Frio e cínico, ele acredita que a privacidade é “um lugar sujo, onde pessoas fazem coisas sujas”. Expulso do jornalismo com desonra, ele foi pelo menos um informante menos hipócrita que Rebekah Brooks e Andy Coulson no Inquérito Levinson – a comissão criada para investigar com profundidade e extensão os danos e consequências para a imprensa das práticas sujas de Murdoch e companhia. McMullan admitiu uma série de crimes diante da comissão de inquérito e ainda tentou justificá-los das formas mais bizarras possíveis.

Ele acredita que a existência de uma sociedade livre envolve escutas irregulares e grampos digitais e analógicos de conversas telefônicas. Sempre foi conhecido entre seus colegas como um homem sujo e imoral. Frio e cínico, McMullan era um dos dois principais hackers do infame tabloide. Sempre acreditou no vale-tudo para obter conteúdo sensacionalista. O outro era o próprio editor Andy Coulsen, preso no dia 30 de maio último por obstrução à justiça. Os dois formavam uma parceria em que Coulsen ficava nos bastidores e McMullan fazia o serviço sujo, com a convicção de que era boa prática jornalística, como confessaria diante da comissão do inquérito.

O canal pago GNT (6/6) apresentou um documentário da série de reportagens Frontline, da TV pública norte-americana PBS sobre o assunto, intitulado Os escândalos de Rupert Murdoch, com reapresentação programada para o dia seguinte. O programa foi postado na web (27/5) pouco tempo depois de seu lançamento original na PBS (27/3), com o título Murdoch’s Scandall. A emissora também postou na web a transcrição do documentário (ver aqui).

Confessou tudo que sabia

McMullan é um personagem interessante. Esguio, olhos castanhos, olhar malicioso, sua vida daria um bomroteiro cinematográfico. Único a confessar seus crimes, ele agora tem outra ocupação: é dono de um bar na Inglaterra. Hugh Grant (isso mesmo, Hugh Grant, o ator) conseguiu localizá-lo e arrancar muita coisa dele numa conversa gravada em seu estabelecimento. The Statesman publicou a matéria (12/4/2011).

McMullan foi expulso do jornalismo. É uma serpente perigosa. Mas o ex-editor ainda carrega na lógica de seu raciocínio anos e anos de práticas sujas e mantém ainda a trajetória marcada por anos e anos na profissão. Na reportagem da TV pública americana, ele faz algumas afirmações muito importantes para o jornalismo contemporâneo, que demonstram que ele ainda permanece profundamente ligado à profissão que perdeu o direito de exercer.

O ex-jornalista agora é dono de uma casa noturna no sudeste da Inglaterra, o “Castle Inn”, em Dover, no condado de Kent. Ele pediu licença para shows com dançarinas topless em seu pub, o que foi negado pela administração local. Tentou a franquia mais bem sucedida do país nos tradicionais pubs britânicos, a “Punch Taverns”. Conseguiu, mas teve que desistir pouco depois devido a reclamações por excesso de barulho. Mas ainda tem muito para contar de grande interesse jornalístico. O ex-editor preferiu confessar tudo que sabia e teve um destino melhor do que Rebekah Brooks e seu comparsa Andy Coulsen.

O lado sórdido e ordinário da vida

No documentário da TV americana, atrás do balcão do bar, ele fez algumas afirmações importantes sobre o poder da imprensa escrita na Inglaterra e que também se aplicam, parcialmente, à mídia escrita em geral. Eis a tradução da transcrição de sua fala no programa, onde apresenta seu raciocínio manipulador:

“Nós tínhamos poder real. Quer dizer, cinco milhões de cópias, e isso – o Guardian vende o quê, 200 ou 300 mil? Você sabe… para um bando de lésbicas barbadas que têm suas opiniões muito bem estabelecidas. Algumas vezes pessoas vêm a este bar e repetem as mesmas opiniões que leram no jornal. E é muito interessante como você pode realmente moldar o humor de uma nação, como podemos fazê-la inclinar-se numa direção ou outra.”

A declaração do ex-editor está referenciada especialmente a Inglaterra e sua cultura de tabloides, um mundo que Murdoch e McMullan conheciam e conhecem até hoje muito bem. Mas em certa medida aplica-se também à grande imprensa. O público, eu e você, leitor, nós procuramos por notícias que estejam de acordo com nossos pontos de vista. Buscamos informação para reafirmarmos o que conhecemos. Ou para conhecer o pensamento de quem não pensa como nós, e nos armarmos com mais argumentos para afirmarmos o que acreditamos contra quem pensa diferente.

Os jornais procuram apenas repetir aquilo que o público quer ouvir. Com os tabloides, a forma de explorar isso é muito mais intensa. Continuam sua busca pelo exagero, pelo lado sórdido e ordinário da vida. Com suas manchetes bizarras, McMullan acreditava (e ainda acredita) no poder da circulação deles aos milhões à custa da exploração da privacidade alheia, que ele, viciadamente, vê sempre como algo sujo.

Manipular o humor

Confessou que era pressionado para produzir um número excessivo de reportagens no jornal semanalmente e que precisava recorrer a todos os meios para saciar a sede de seu chefe pela imundície e pelo lado escuro da humanidade. Precisava pagar a polícia, contratar detetives e tramar artifícios ilegais para ludibriar a justiça. Precisava seguir o ritmo louco imposto por Murdoch, o homem sem alma que acreditava poder ter sempre alguma coisa contra qualquer um. E que cada um de nós, invariavelmente, esconde segredos sujos.

Ele e seu patrão Murdoch têm muito em comum. Mas o atual proprietário de bar em Dover ao menos teve a coragem de dizer a verdade sobre o que acontecia na redação do tabloide de Murdoch. Sem pesar ou culpa. Ao contrário: McMullan, de forma torta, foi instrumental para demonstrar onde levam os impulsos que dirigem nossa busca por notícias, e como ele pode ser explorado por quem sabe produzir o que eles acham que queremos ler. Por qualquer meio necessário.

Por trás do balcão do bar que dirige, Paul McMullan hoje vê as coisas por outro ângulo. Como jornalista por formação e anos de prática, ele acredita que o povo ainda se apoia muito no que lê na imprensa para formar suas opiniões e eu creio que ele está certo: minimizar o poder da imprensa escrita é um erro muito grande. Ela pode não ter o poder de transformar diretamente a sociedade, mas é capaz de, com disse o ex-editor, “manipular o humor” da população e fazê-la mudar de rumo em uma ou outra direção.

É teimoso e conhece a profissão

Olho em volta, acompanho o comportamento diário de parte da mídia e vejo que o ex-jornalista está certo neste ponto: dois pressupostos básicos da vida numa República verdadeiramente livre são o respeito à democracia e à liberdade de expressão, mas o vale-tudo da imprensa mostra que a mídia impressa tem ainda grande poder, através da manipulação indireta das mudanças dos imprevisíveis e inconstantes humores da população. O mesmo pode ser dito das mídias digitais. Aliás, esta é uma lição que o mundo já deveria ter aprendido há muito tempo, com os exemplos históricos de Orson Welles e Josef Goebbels nas décadas de 1930 e 1940.

Por isso, um homem como Paul McMullan não pode ser um jornalista, nem fazer parte da mídia de forma alguma. É perigoso demais para a frágil condição humana. Mas ele é um homem teimoso e conhece a profissão. De modo torpe, mas conhece. Ele não demonstra desajustes com a nova atividade ou arrependimento pelo que fez. Mas suas palavras desafortunadamente mostram que estará ligado para sempre ao jornalismo. Aliás, atualmente, além de gerenciar seu bar, ele ainda escreve e publica como freelance para um grupo multimídia do sul de seu país.

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[Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento urbano, consultor e tradutor]