O caso Para-Sar, denunciado no ano-dobradiça de 1968, condensou alguns dos aspectos mais torpes do regime militar. Em resumo, o brigadeiro João Paulo Burnier queria empregar o Para-Sar, unidade da Aeronáutica especializada em busca e salvamento, para provocar na cidade do Rio de Janeiro um morticínio que servisse de pretexto ao massacre de comunistas e outros opositores e dissidentes da ditadura. Oficiais e sargentos – entre eles o capitão Sérgio Miranda de Carvalho (Sérgio Macaco, 1930-1994) − discordaram de Burnier e o denunciaram a outras autoridades da Força Aérea.
O plano foi abortado depois que o deputado federal Maurílio Ferreira Lima (MDB-PE) o denunciou da tribuna da Câmara e o jornal carioca Correio da Manhã publicou uma carta da nora do brigadeiro Itamar Rocha, solidário com os denunciantes. Nos muitos relatos existentes sobre o episódio, vários deles bem documentados [ver nota no final], não se esclarece como o deputado soube de uma história que circulava apenas entre oficiais e sargentos da Aeronáutica e o que o levou a fazer a denúncia.
Nesta entrevista ao Observatório da Imprensa, Ferreira Lima conta a movimentação oposicionista por trás de seu pronunciamento e afirma que sem a insistência do Correio da Manhã no assunto a cúpula da Aeronáutica teria conseguido desacreditar os denunciantes.
A investigação e a denúncia de crimes cometidos com pretexto político durante o regime militar foi desde o primeiro momento iniciativa da imprensa, como se procurou mostrar no tópico “Mídia e cidadãos não têm prazo para apurar“, escrito a propósito do trabalho de que está incumbida a Comissão da Verdade.
Entre salvamento e extermínio
Para-Sar (“para” de paraquedista e “sar” de search and rescue, busca e salvamento) era o nome pelo qual se tornara conhecida a 1ª Esquadrilha Aeroterrestre de Salvamento, destacamento especializado em missões de resgate a acidentados, informa o verbete Eduardo Gomes do Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro.
Em abril de 1968, seguindo orientação do brigadeiro Burnier, lê-se na publicação Nosso Século (seis volumes, 1980), da extinta Abril Cultural, que…
“…um grupo de homens do Para-Sar, à paisana e armado com pistolas, é destacado para acompanhar uma manifestação estudantil no Rio de Janeiro. Os oficiais deviam ajudar na prisão de estudantes, vigiar o alto dos edifícios e eliminar sumariamente os que de lá arremessassem objetos contra a polícia. A primeira parte da missão é cumprida, a segunda, não.”
Burnier foi um dos expoentes da extrema direita das Forças Armadas brasileiras no século 20. Chefiara a Revolta de Aragarças (Goiás), em 1959, contrária a Juscelino Kubitschek e favorável, segundo Burnier, à manutenção da candidatura de Jânio Quadros à presidência da República. O oficial da Aeronáutica esteve ao lado de Carlos Lacerda, governador do então estado da Guanabara, durante o movimento que derrubou João Goulart.
Ele foi o criador do Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica (Cisa). Atribui-se à sua passagem por um curso de informações na Escola das Américas do Exército Americano, no Panamá, em 1968, uma exacerbação de conceitos calcados na Guerra Fria e a defesa de todo e qualquer método que pudesse ser útil à causa do anticomunismo.
Em junho de 1968, promovido a brigadeiro-do-ar, ocupava a chefia da seção de informações do gabinete do ministro da Aeronáutica, brigadeiro Márcio de Souza Melo. Antigo integralista, Souza Melo integraria a Junta Militar que tomou o poder em 31 de agosto de 1969 para evitar que o vice-presidente, Pedro Aleixo, um civil, substituísse o general Arthur da Costa e Silva, incapacitado por uma trombose.
Roteiro de atrocidades
Burnier fez várias preleções a integrantes do Para-Sar. Teriam agora novas tarefas, para as quais se requeria sua capacidade operacional, resultado de intenso treinamento e grande experiência. Elas incluíam explodir a loja de departamentos Sears, na Praia de Botafogo, a embaixada dos Estados Unidos e o Citibank, no centro da cidade; dinamitar a represa de Ribeirão da Lajes, deixando a antiga capital da República parcialmente sem água; explodir o gasômetro que ficava a 250 metros da Estação Rodoviária Novo Rio, em dia de semana, por volta das seis da tarde, para matar um grande número de pessoas; atribuir os atentados aos comunistas e promover uma matança que, nessas condições, poderia ser aplaudida pela população.
Em meio à confusão criada, seriam presos e assassinados 40 altos personagens da política, entre eles dois dos líderes da Frente Ampla, Juscelino e Lacerda. Seus corpos seriam jogados no mar, a 40 quilômetros da costa. A Frente Ampla, criada em outubro de 1966 e proibida pelo governo em abril de 1968, foi entre 1966 e 1968 o movimento mais importante pela redemocratização do país.
Em junho, Burnier mandou todos os homens do destacamento embarcarem num ônibus que os levou da Base Aérea de Santa Cruz ao gabinete do ministro, no centro do Rio. Durante tenso monólogo, disse que o soldado, para saber matar na guerra, tinha que ser capaz de matar na paz, com gosto de sangue na boca e sem que sua mão tremesse.
Resistência da oficialidade
A exposição do plano e a recusa do Para-Sar a levá-lo à prática, encabeçada pelo capitão Sérgio, provocaram grave crise na Força Aérea. Havia também uma questão de comando: o Para-Sar não era subordinado ao gabinete do ministro, e sim ao Departamento de Rotas Aéreas, dirigido pelo brigadeiro Itamar Rocha. Ele abriu inquérito que confirmou os fatos, negados por Burnier. Rocha levou o assunto ao ministro e foi punido. Também foram punidos, com penas de prisão menos simbólicas, oficiais e sargentos do Para-Sar.
Cerca de trezentos oficiais da Aeronáutica assinaram manifesto contra a utilização do Para-Sar preconizada por Burnier. Um deles foi o brigadeiro Délio Jardim de Matos (futuro ministro da Aeronáutica), que levou o assunto ao brigadeiro da reserva Eduardo Gomes, figura mais reverenciada da Aeronáutica e ministro no governo Castelo Branco (1964-1967). Gomes preferiu abafar o caso e tentar resolvê-lo dentro da hierarquia do regime.
O assunto circulou entre oficiais-generais da reserva, entre eles os brigadeiros Adamastor Cantalice, que contou a história a Juscelino, e Francisco Teixeira, ligado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) e cassado em 1964.
Obrigação de democrata
E aqui entra na história Maurílio Ferreira Lima. Antes do golpe, ele fora oficial de gabinete do então prefeito do Recife, Miguel Arraes, eleito em 1959. Em 1963, se tornara assessor do ministro da Agricultura Osvaldo Lima Filho, deputado eleito pelo PTB e um dos criadores da Frente Parlamentar Nacionalista. Ferreira Lima havia sido eleito suplente pelo MDB de Pernambuco em 1966 e assumira o mandato em 1968.
O deputado frequentava na Cinelândia, centro do Rio, o escritório do advogado Marcelo Alencar (futuro prefeito do Rio e governador do estado), “ponto de encontro de tudo quanto era gente de esquerda e de oposição ao regime”, descreve. Em setembro de 1968, Alencar levou Ferreira Lima ao encontro do brigadeiro Teixeira. Este lhe perguntou se poderia fazer na Câmara a denúncia da maquinação de Burnier e o relato do conflito na Aeronáutica.
“Ele me disse que um texto já havia sido preparado e que era minha obrigação denunciar o plano assassino”, narra Ferreira Lima. “No dia combinado, emissários levariam uma cópia ao Correio da Manhã, onde jornalistas democratas já estavam avisados e providenciariam sua publicação. Eu não deveria revelar o assunto a ninguém, nem mesmo ao líder do MDB, deputado Mario Covas.”
Aeronáutica “invade” o Congresso
Ferreira Lima foi para Brasília e em 1º de outubro falou no pequeno expediente da Câmara dos Deputados. O presidente da Casa, Zezinho Bonifácio (José Bonifácio Lafayette de Andrada, da Arena de Minas Gerais), imediatamente suspendeu a sessão. O ex-deputado relata: “Ao voltar ao plenário, fui abordado por dois colegas e amigos. O general Amaury Kruel [do MDB do então estado da Guanabara] e Aureliano Chaves [Arena-MG, futuro vice-presidente da República]. Kruel me disse: ‘Acho que você se meteu numa fria’. Aureliano me perguntou se eu tinha emprego fora da Câmara, ou patrimônio. Como eu lhe respondesse que não, externou sua preocupação: ‘Você vai ser cassado. Vai viver de quê?’”
“Logo depois, houve uma coincidência cômica”, relata Ferreira Lima. “Integrantes da Força Aérea dos Estados Unidos em viagem ao Brasil foram visitar o Congresso Nacional, acompanhados por oficiais da Aeronáutica. Fardados, todos. O deputado Raul Brunini [radialista muito conhecido e lacerdista eleito pelo MDB-GB] entrou esbaforido no plenário e me disse que eu precisava imediatamente me esconder, porque a Aeronáutica acabara de invadir o Congresso. Tomado de ímpeto cívico, respondi que se tratava de um atentado às instituições democráticas e que iria permanecer sentado no plenário. Até que o equívoco se desfez.”
Trincheira no Correio da Manhã
Saindo do plenário, Ferreira Lima telefonou para Marcelo Alencar e lhe comunicou que a missão fora cumprida e que se tinha criado em Brasília um clima de grande confusão. Alencar informou ao deputado que as pessoas encarregadas de levar o texto ao Correio da Manhã haviam sido presas naquela manhã.
A notícia da denúncia de Ferreira Lima seria publicada no dia 4 de outubro em diversos jornais – entre os quais o próprio Correio da Manhã, a Última Hora, o Jornal do Brasil e o Estado de S.Paulo.
“Mas o que mudou os dados da questão foi a publicação, no Correio da Manhã, de uma carta da nora do brigadeiro Itamar Rocha. Dias antes, ele havia sido afastado da Diretoria de Rotas Aéreas e punido com dois dias de prisão domiciliar”, conta Ferreira Lima. “Nesse período, o carro do brigadeiro Eduardo Gomes foi abalroado no Aterro do Flamengo e ele quebrou uma perna. O Correio da Manhã, por orientação expressa de dona Niomar Muniz Sodré Bittencourt [proprietária do jornal], mandou dar na primeira página: ‘Atentado contra o brigadeiro Eduardo Gomes’.”
Depois de receber na Câmara quatro salários de deputado a que, segundo o diretor-geral da Casa, tinha direito, Ferreira Lima passou alguns dias abrigado na casa do senador Pedro Ludovico, do MDB de Goiás, pai do governador cassado Mauro Borges. Ele se lembra de um diálogo com o senador:
− É bronca grande, senador.
− Mas eu estou habituado. Vamos enfrentar juntos.
Segundo Ferreira Lima, Ludovico, quando governador de Goiás pela primeira vez, abrigara esquerdistas de Pernambuco envolvidos na tentativa insurrecional comunista de 1935, evitando que fossem presos.
Fora de circulação
De volta ao Rio, Ferreira Lima encontrou no escritório de Marcelo Alencar expoentes do antigo PTB. Eduardo Chuai, José Gomes Talarico, Doutel de Andrade e Wilson Fadul lhe recomendaram sair de circulação.
Ele resolveu então procurar o deputado Etelvino Lins, da Arena, ex-governador de Pernambuco, onde eram adversários políticos. “Etelvino era um homem muito bem informado”, explica Ferreira Lima. “Ele me avisou que eu seria cassado e me perguntou o que eu ia fazer da vida. Eu disse que iria para a Argélia, onde estava Miguel Arraes. De fato, na primeira lista de cassações publicada depois da edição do AI-5, eu apareci em quinto lugar. O primeiro era Carlos Lacerda.”
Rede de ajuda do PTB
Em sua fuga do Brasil, Ferreira Lima foi ajudado pelo ex-presidente João Goulart, exilado no Uruguai, por intermédio de correligionários do antigo PTB. Antes, porém, recebeu apoio de Márcio Alves, pai do jornalista e deputado federal Mário Moreira Alves, autor de discurso usado como pretexto usado pelos militares para dar o “golpe dentro do golpe” – a edição do AI-5, o fechamento do Congresso, o fim das garantias constitucionais.
Depois de ser recebido por Goulart em sua fazenda no Uruguai, Ferreira Lima foi para o Chile, onde se havia refugiado Moreira Alves. De Santiago, Ferreira Lima viajou para Paris. Aí permaneceu alguns meses antes de ir para a Argélia.
O fim do Correio da Manhã
O Ato Institucional número 5 (AI-5), editado em 13 de dezembro de 1968, transformou o regime de exceção em regime de puro arbítrio. Mediante a censura prévia, suprimiu a liberdade de imprensa. Esmagado pelo poder, o Correio da Manhã, um dos mais importantes jornais do país no século 20, publicaria sua última edição em 1974.
Burnier continuou chefe da seção de informações do gabinete de Souza Melo até abril de 1970, quando assumiu o comando da III Zona Aérea, onde o estudante Stuart Edgar Angel Jones, filho da estilista Zuzu Angel, foi torturado e assassinado em junho de 1971 (informação do livro Direito à Memória e à Verdade, publicado sob a responsabilidade da Presidência da República em 2007). O ministro da Aeronáutica, brigadeiro Márcio de Souza Melo, que sempre deu cobertura a Burnier, ficou no cargo até novembro de 1971.
Em 1968, o plano de assassinato em massa foi barrado ainda na origem, mas 13 anos depois, em show dedicado ao Primeiro de Maio de 1981, no Riocentro, ele foi seguido e só não se consumou porque uma das bombas levadas ao local explodiu no colo do sargento do Exército que a carregava.
Anistiado em 1979, Ferreira Lima voltou ao Brasil e foi eleito deputado federal constituinte em 1986, pelo PMDB de Pernambuco. Reeleito em 1990, em 1994 transferiu-se para o PSDB e perdeu eleição de senador para Roberto Freire, do PPS. Foi nomeado em 1995, pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, presidente da Radiobrás. Em 1998, de volta ao PMDB, foi eleito suplente de deputado federal. Em 1999 e 2000, representou em Brasília o governo de Pernambuco, com o status de secretário de Estado, concedido por Jarbas Vasconcelos. Exerceu mandato em 2001-2002. Mantém um blogue e participa regularmente de programas de rádio.
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Entre as fontes que podem ser consultadas sobre o assunto estão:
** Arquivo do CPDOC (Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, da Fundação Getúlio Vargas), disponível aqui (inclui todos os verbetes do Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro);
** Coleção da extinta Última Hora (disponível no Arquivo Público do Estado de São Paulo);
** Coluna do Castello no extinto Jornal do Brasil; informações e comentários sobre política entre 1963 e 1993 estão disponíveis aqui;
** Acervo digital do Estado de S. Paulo;
** Acervo digital da Veja (ver edições de 1/3/1978 e de 26/6/1985);
** Arquivo da jornalista Ana Lagoa, digitalizado pela Universidade Federal de São Carlos (leia aqui reportagem da revista Fatos 1/7/1985), da Editora Bloch, datada de 1/7/1985);
** Elio Gaspari, A Ditadura Envergonhada, 2002, primeiro volume da tetralogia As ilusões armadas.