Thursday, 28 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Jornalista vs. censor

Atenta e sensível como sempre, Dorrit Harazim chama a atenção dos jornalistas brasileiros para um livro editado nos Estados Unidos e que não podem deixar de ler: as memórias de Edward Kennedy (nada a ver com o homônimo irmão de John Kennedy): Ed Kennedy’s War: V-E Day, Censorship and the Associated Press.

Ele reconstitui o momento mais importante da sua carreira. Foi obrigado a tomar uma decisão grave, que teria profunda e ampla repercussão de imediato: descumprir o acordo feito com o comando das tropas aliadas na Segunda Guerra Mundial, para que a notícia da rendição incondicional da Alemanha nazista permanecesse embargada por 36 horas. Esse era o período de tempo necessário para que Harry Truman, Josef Stalin e Winston Churchill, em nome dos Estados Unidos, União Soviética e Grã-Bretanha, fizessem comunicados simultâneos sobre o fim da guerra na Europa aos seus respectivos povos e ao mundo.

O comandante-em-chefe das tropas aliadas (e futuro presidente dos EUA), Dwight Eisenhower, gostaria de antecipar a divulgação, que pouparia milhares de vidas de soldados ainda em combate. Mas o acerto entre as três potências (que viriam a ser protagonistas da guerra seguinte, a ideológica, chamada de fria por não usar canhões) exigia a equidade entre os grandes líderes. Isonomia que viraria farelo pouco depois.

Não fosse esse arranjo político, o anúncio podia ter sido feito a partir das 3h24m da tarde de 7 de maio de 1945. Foi quando o escritório da agência de notícias americana Associated Press (a AP) em Londres recebeu o telefonema do chefe do seu escritório em Paris, que usou um canal militar não sujeito à censura para driblar o controle militar oficial. O texto era curto, com 300 palavras, mas era a notícia mais importante, o maior dos “furos”, desde o início da guerra, seis anos antes.

Censores sem função

Ao invés de ser consagrado por essa iniciativa, 34 horas depois de tomá-la Kennedy foi suspenso por tempo indeterminado e demitido discretamente mais tarde. A AP divulgou – só agora – um comunicado lamentando “profundamente” o monumental furo obtido pelo jornalista. Seus colegas no front europeu recomendaram a revogação de sua credencial. Kennedy foi expulso da França pelo Comando Supremo das Forças Aliadas e teve de retornar aos Estados Unidos. Embora a partir daí sua carreira tenha entrado em queda, nas memórias ele afirma que faria tudo de novo.

Por mero capricho, vaidade ou excesso de profissionalismo? A própria AP, quase 70 anos depois, reconhece que o erro foi seu, “que administrou o fato da pior maneira possível”, lamentou Tom Curley, atual diretor-executivo da agência noticiosa e coautor do prefácio do livro, de onde Dorrit Harazim tirou as informações para artigo que escreveu O Globo, reproduzido pelo Observatório da Imprensa (ver “A maior notícia do século“).

Além do endosso retardado dos seus chefes, no livro Kennedy defende a sua atitude pela metodologia que utilizou para tomar a decisão difícil, diante da qual, mesmo que sem a mesma dramaticidade, os jornalistas costumam ser postos. Seu procedimento serve de modelo a seguir em tais momentos.

Relata Dorrit:

“Kennedy tomou a decisão de furar unilateralmente o acordo ao constatar que não estaria colocando em risco a vida de nenhum soldado. Pelo contrário, abreviaria a matança em algumas horas, o que já era muito. De fato, naquele mesmo 7 de maio, um submarino alemão afundara duas embarcações na costa da Escócia e os combates prosseguiram na Checoslováquia e na Iugoslávia. Ademais, com a assinatura da rendição, a própria função dos censores militares perdia validade, a seu ver”.

Formas de exceção

Ao se encontrar pela primeira vez com Eisenhower depois do episódio, Wes Gallagher, substituto de Kennedy no escritório da AP em Paris, confessou ao general que teria repetido a iniciativa do seu antecessor, acrescentando: “Apenas teria lhe telefonado antes”. Ike retrucou que, nessa hipótese, teria ordenado sua prisão. Resposta de Gallagher: “Mas isso não teria abortado a notícia”.

Ela não foi antecipada pelo privilégio do “furo”, da exclusividade, na busca pela notoriedade e seus eventuais dividendos. O livro de Kennedy parece demonstrar que ele pensou no interesse público, na obrigação de informar a sociedade, e na economia de vidas, muito mais importante do que os ritos do poder.

Para mantê-los, a censura, abstraindo as pessoas concretas e a realidade imediata, age, seduzindo ou coagindo os mensageiros das notícias, que são os jornalistas. Mas eles não podem ceder. Afinal, é contra o poder institucional, para controlá-lo e limitá-lo, impedindo que se expanda até formas de exceção e tirania, que eles têm seu próprio poder. Movido por um combustível sem qualquer efeito nocivo nesses casos: a inteligência.

***

[Lúcio Flávio Pinto é jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)]