“Tudo pode entrar na tua espécie de jornal, mesmo uma canção bem feita; nada desdenhes”. (Voltaire, 10 de maio de 1737)
O conselho de Voltaire aos jornalistas de seu tempo parece-me muito pertinente para introduzir a discussão que proponho sobre o jornalismo cultural contemporâneo. A rigor, todos os acontecimentos, sejam eles, por exemplo, políticos ou econômicos, são também culturais. Mas a moldura jornalística reconhece como cultural apenas aqueles acontecimentos que refletem as diretrizes temáticas das editorias de cultura. A noção de editoria circunscreve, portanto, uma abordagem arbitrária e convencional dos acontecimentos, a qual delineia simbolicamente certa concepção social de cultura. Assim, aquilo que o jornalismo cultural elege como pauta permeia, em grande medida, a concepção de cultura dominante na sociedade, pois o jornalismo reflete ao mesmo tempo em que delineia visões sociais de cultura.
A visão mercantilista da cultura, relacionada à agenda de artes e espetáculos, e a visão antropológica da cultura, relacionada ao reconhecimento daquilo que difere do comportamento social padronizado, configuram tradicionalmente o escopo editorial do jornalismo cultural. As duas visões sublinham pautas preferencialmente articuladas às atividades estéticas, intelectuais, sociais e de entretenimento, observadas no âmbito da arte, do lazer e do comportamento.
O problema dessa perspectiva editorial, que remonta ao século 19, está relacionado tanto ao estreitamento da concepção de cultura que ela supõe quanto à opacidade midiática de outras manifestações culturais. A abordagem da agenda, por exemplo, permeia vigorosamente iniciativas midiáticas alternativas no campo da cultura, como se observa na proliferação de sites relacionados às agendas culturais locais. São exemplos o site Agenda Cultural, da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, o blog Agenda Cult, sobre programação cultural em São Paulo, Agenda Cultural, do governo da Bahia, o site colaborativo Agenda Recife, Agenda Cultural, da Prefeitura de Belo Horizonte, e Agenda BH, aberto a parcerias. O site colaborativo Overmundo, um dos mais conhecidos do país nessa perspectiva, deu origem a um instituto e mais recentemente se desdobrou em uma rede de sites colaborativos que compartilham dos mesmos princípios, a Overmídia. O escopo editorial de Overmundo e de suas ramificações reflete, porém, a perspectiva dominante nas editorias de cultura, destacando as agendas culturais em cada região do país.
Esses poucos exemplos nacionais, que se inserem em tendência internacional de cobertura de cultura, referendam uma constatação óbvia: ninguém mais precisa comprar o jornal local para saber das estreias do final de semana. Isso não apenas impõe uma revisão dos parâmetros editoriais relativos à cultura nos jornais diários, com vistas ao refinamento do modelo de negócio, como permite que a circulação intermidiática de perspectivas culturais diferenciadas incida sobre a representação jornalística da cultura.
Comunidades de interesse
Aspectos culturais de acontecimentos cotidianos normalmente subtraídos da lógica editorial alcançam hoje visibilidade midiática por meio de plataformas colaborativas como blogs, wikis e redes sociais. Tornam-se, assim, potencialmente relevantes na concepção coletiva de cultura porque seu alcance social se expande em conexões das mídias digitais, mesmo que não dialoguem rigorosamente com os recortes editoriais mais tradicionais. O sociólogo espanhol Manuel Castells chama de mass self communication (auto comunicação de massa) essa nova forma de comunicação, que é produzida, recebida e experenciada individualmente, porém difundida em larga escala por meio de interações sociais em rede. Trata-se de uma forma contemporânea de agendamento intermidiático, ou seja, tanto os meios tradicionais de comunicação de massa tematizam cotidianamente a conversa social, como era a regra ao longo do século 20, quanto a conversa social registrada em conexões de mídias digitais pauta os meios tradicionais de comunicação de massa.
O jornalismo cultural do século 21 se equilibra, portanto, entre referências provenientes da cultura de massa e da cultura de compartilhamento. O fundador e diretor do Programa de Estudos de Mídia Comparada do MIT (Masschusetts Institute of Technology), Henry Jenkins, chama de cultura da convergência esse processo cultural contemporâneo, no qual os conteúdos circulam em dinâmicas reticulares que integram lógicas comunicacionais simultaneamente relacionadas à transmissão massiva e ao compartilhamento entre pares. Manuel Castells relaciona a emergência do mass self communication à cultura de convergência. Nessa linha de raciocínio, sugerimos que se a cultura de massa modelou certa concepção editorial de jornalismo cultural, a cultura de convergência deve ser preponderante no delineamento de perspectivas editoriais mais sintonizadas com o cenário contemporâneo da circulação intermidiática de informação cultural.
As conferências online TED (Technology, Entertainment and Design), das quais a maior parte encontra-se disponível em vários idiomas, exemplificam o alcance social de iniciativas desse tipo. É o caso do depoimento da escritora nigeriana Chimamanda Adichie sobre o perigo da história única, acessado 2.844.730 vezes até o momento no qual este texto foi escrito. TED é uma organização sem fins lucrativos que, desde meados dos anos 1980, se dedica a divulgar “ideias que merecem ser espalhadas”.
Outro exemplo é o escopo editorial da revista eletrônica Salon.com, que destaca, entre os tópicos de cobertura continuada da publicação, desdobramentos do movimento Ocuppy Wall Street e a as eleições norteamericanas em 2012. Fundada em 1995, Salon.com aposta em uma perspectiva de cultura que inclui política, economia e vida, com base em produções de equipe própria, colaborações online e comentários de internautas.
Há ainda agregadores de informações dispersas na rede, como é o caso do IMDb (The Internet Movie Database), especializado em notícias e críticas de cinema. As informações disponibilizadas pelo IMDb são provenientes tanto de grandes veículos de comunicação quanto de blogs especializados e de usuários. O IMDb é um dos dez sites mais acessados do mundo, conforme dados de Alexa, uma organização de grande prestígio na aferição de tráfego na internet.
Perspectivas diferenciadas de cobertura online de cultura estão em expansão também no Brasil, como é o caso da revista eletrônica Trópico, do Portal UOL. Com interesse predominante na cultura digital, a publicação é editada conjuntamente por jornalistas e por pesquisadores, sendo a produção majoritariamente realizada por colaboradores convidados. Já o Portal Literal, do Portal Terra, especializado em literatura, abriga sites de autores brasileiros sob curadoria da pesquisadora Heloísa Buarque de Holanda. Há ainda iniciativas bem-sucedidas sem vínculos com grandes portais de comunicação, como é o caso do blog coletivo Trezentos, uma comunidade em expansão continuada que reúne posts e comentários de autoridades e anônimos interessados em cultura digital.
Embora tais publicações dialoguem com recortes editoriais consolidados pelo jornalismo cultural, é nítido que o fazem em perspectivas próprias, muitas vezes investindo em composições produtivas híbridas, nas quais o jornalista é apenas um dos mediadores possíveis. O percurso histórico do jornalismo cultural demonstra que especialistas e jornalistas sempre partilharam o mesmo espaço editorial, o que legitima tais propostas como um caminho provável para o jornalismo cultural contemporâneo.
A ideia predominante nessas iniciativas parece ser a de constituir espaços de referências na rede sobre temas específicos, em abordagens variadas. De certo modo, o jornalismo cultural aposta nisso como uma de suas facetas desde o surgimento das revistas especializadas, no século 18. A novidade estaria na variedade de formatos (portais, blogs, sites institucionais, agregadores etc), no acesso gratuito e nas possibilidades de agenciamento social em torno de assuntos de interesse comum. As publicações online na área de cultura despontam, desse modo, como espécies de comunidades de interesse, nas quais jornalistas, especialistas e internautas dividem, cada vez mais, as funções de informar, interpretar, opinar, editar, difundir. Nesse cenário dinâmico e heterogêneo da circulação intermidiática de informações culturais, o conselho de Voltaire nunca foi tão atual: “nada desdenhes”.
Fluxo intermidiático
O que pauta o jornalismo cultural contemporâneo, subtítulo deste ensaio, é uma indagação de natureza ambígua. Tanto pergunta por aquilo que o jornalismo cultural pauta quanto por aquilo que pauta o jornalismo cultural. Parece-me que a resposta aponta para ambiguidade semelhante, uma vez que tanto os preceitos editoriais que regem a atividade demandam revisão, quanto a própria concepção de jornalismo como prática comunicacional modelada pela cultura de massa. Não se trata, obviamente, de refutar o percurso histórico do jornalismo, nem sua deontologia. Trata-se, isso sim, de buscar aprimorar o exercício jornalístico considerando o modo pelo qual a informação cultural circula hoje nos interstícios da rede.
Nesse sentido, gostaria de finalizar meu argumento evocando as palavras do filósofo Charles Sanders Peirce, proferidas no final do século 19, sobre o fato de as palavras crescerem com o tempo. A esse respeito Peirce argumentava: “quanto mais não significa hoje a palavra eletricidade do que significava ao tempo de Franklin? Quanto mais não significa hoje o termo planeta do que ao tempo de Hiparco?”. Parafraseando Peirce, poderíamos perguntar: quanto mais não significa hoje a palavra jornalismo do que significava no apogeu da comunicação de massa? Se os significados das palavras crescem com o tempo, talvez seja útil observar como as informações culturais circulam hoje, sob quais escopos editoriais e conforme quais processos produtivos, para nos arriscarmos a tecer considerações acerca do significado de jornalismo cultural na contemporaneidade e, mais especificamente, acerca do que ele pauta – ou deveria pautar. Para isso, suponho, deve-se necessariamente observar o que pauta o fluxo intermidiático de informações culturais, considerando, nesse exercício analítico, toda a ambiguidade que for possível aferir da questão.
Endereços eletrônicos
** Agenda Cultural,da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo
** Blog Agenda Cult, sobre programação cultural em São Paulo
** Agenda Cultural, do governo da Bahia
** Agenda Cultural, da Prefeitura de Belo Horizonte, e Agenda BH
** Overmídia
** TED(Technology, Entertainment and Design)
** Salon.com
** IMDb(The Internet Movie Database)
** Alexa
** Trópico
** Trezentos
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[Geane Alzamora é professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social/UFMG e pesquisadora do Centro de Convergência de Novas Mídias (CNPq/UFMG). Possui Doutorado e Mestrado em Comunicação e Semiótica (PUC/SP). Co-organizou 7 Propostas para o jornalismo Cultural (2009), Kulturdialoge Brasilien-Deutschland: Design, Film, Literatur, Medien (2008), e Cultura em Fluxo – novas mediações em rede (2004)]